Fratura Exposta – Shasça

Fratura Exposta

Shasça*

Carl Andre

1. ESCURIDÃO. SILÊNCIO ROMPIDO POR SOM EM OFF: PASSOS DE ALGUÉM CAMINHANDO PAUSADA E FIRMEMENTE. AOS POUCOS, OS PASSOS VÃO SE MULTIPLICANDO. CORTE SECO NO SOM DOS PASSOS. ACORDES DA 5ª DE BEETHOVEN (TCHAN TCHAN TCHAN TCHANNN!!!). SILÊNCIO. ATOR DECLAMA CARTÃO DE VISITA.

 

Ator (voz calma, firme, quase debochada):

 

dentro de mim vos garanto

há um jekyll e um hyde

não sei qual vos apresento

qual de maior intensidade

 

LUZ FORTE SOBRE A PLATÉIA. PALCO VAZIO

 

 

Segundo Ato

 

2. ESCURIDÃO. BOLERO DE RAVEL (TRECHOS).

 

Ator brada em off:

 

LEVANTEM AS BARRAS DAS SAIAS!

 

CONTINUA O BOLERO. FOCO DE LUZ ACOMPANHA ATOR QUE ENTRA. ATOR DECLAMA SARCÁSTICA E RITMADAMENTE O RAP

 

Ator:

 

não te assustes minha nega

hoje não tou afim das tuas belas coxas

o buraco é mais

na verdade tem buraco pra cá…

e o que vos trago

meus queridos

é apenas um singelo convite

 

façam vossa escolha e

pau na jaca!

 

aqui

não há a pré tensão

de vos oferecer outras paisagens

é apenas outra viagem

pela nossa mesma casa

apenas outro olhar

injetado de sangue e de talhes

sobre algo

que apenas sobrevoado temos

nestes tempos que voam

 

às janelas em pal-m

pedras lançar

 

mãos aos cacos

é sob as unhas que se encontram

os sinais de quem se foi na calada

não no olho arregalado

nas garras

assim o ensinam os sherloques

 

just an american movie

deserto estrada posto bar

uma garçonete gorda e sorridente

alguém pede carona

 

a vida de tocaia

 

toda superfície

é nada além

um convite

 

FOCO APAGA-SE.

 

3. VOLTA O SOM DOS PASSOS. PROJEÇÃO DO VIDEO URBE I

SONS URBANOS. ATOR DECLAMA FRATURA EXPOSTA. CENAS URBANAS PIPOCAM NA TELA. FOCO NO ATOR

 

Ator:

 

tênis havaianas cromo alemão solas nuas

e apesar de tudo

destinos nus

num único sentido

                 contra-mão

calçadas feridas explícitas

passadas calmas coxas aflitas

fingir desviar a atenção para o sexo dos cães na esquina

                 (sequiosos

                  babam pudicos olhos)

apreender o viver precisum est

as várias terras da Terra

nos empurram contra o muro da miséria

a fome não vem só do agreste

sob todas as pontes queimam-se secas panelas

enquanto a quitanda urbana oferece prateleiras de cassetetes

cães camburões (SOM DE SIRENE)  invasões

rajadas sobre a desnutrição baderneira

que cisma que merece melhorias nos currais

além do alambrado cada vez mais forte

da pós-moderna arquitetura ante-o-mendigo

e apitos e sirenes noturnas diurnas diárias

entrementes

eternas diarréias continuam um serviço

                        que não se completa

à luz dos olhos da cega justiça

de há muito

embebidos de sangue e tramóias

que escorrem das coberturas palanques

                         smokings & batinas

transbordantes da sua balança

 

4. TRECHO DE “O GUARANI” DE CARLOS GOMES MIXADO COM SONS DE FLORESTA E DE GUERRA (TIROS?) FOCO NA ATRIZ QUE ENTRA GRITANDO NÃO CARA-PÁLIDA!

 

Atriz:

 

sei que só

não salvarei a tribo

mas não serei o batedor

que dirá à cavalaria

qual é a melhor hora para o ataque

 

não me cativam

teus espelhos e contas de vidro

 

TIRO. ESCURIDÃO. ATRIZ SAI. VOLTAM SONS E CENAS URBANAS. FOCO NO ATOR

 

Ator:

 

a fratura

exposta na vitrine planetária

signo da presente velha estética

arreganha-se

ganha o espaço

neste mundo que é só deste

ao contrá

         rio de todas crenças

 

a fratura exposta arremete-se

contra a atmosférica derme

a

 po

   dre

      c

       sida

sede de conquista

 

o fedor de urina do bêbado caído

insiste e invade o nariz dos passantes

é sua aura

ainda se pode desviar torcer o nariz

não há como tapá-lo

e o que é com (ou sem) esforço ignorado

rompe a tênue película do disfarce

refluindo como o esgoto da privada

 

já nos dizia dos Anjos

“a consciência é este morcego”

 

BALADA SERTANEJA. PROJEÇÃO DO VÍDEO CÃO SEM LUZ

 

há bares com sisudas gravatas assépticas

   bares coloridos com o brilho do momento

   bares

        pai (distribuindo a vida entre

               o balcão, o chão e as lambidas

               no saco do patrão)

        mãe (boca que já nem sabe

               quantos corpos percorre

               até o fastio

               no flagelar de uma noite)

        filha (espremido por dedos amarelados

                                   de cigarro

               o pequenino seio

               como se já fosse

               a bucha que breve será)

 

 

5. RAP/BATUCADA QUASE-COTIDIANO (DO CHICO). FOCO MUDA PARA ATRIZ QUE DECLAMA COTIDIANO III.

 

Atriz:

 

 

o olho sem brilho

a cara suja

a barriga vazia

a roupa rasgada

esperando a mãe

voltar da ronda

trazendo o rango

 

quem chega é o pai

outra vez bêbado

atira-a ao chão

do quarto/sala/cozinha

e estupra-a

outra vez

 

chocante!

         diria o surfista

 

 

 

6. PROJEÇÃO DO VÍDEO ÁLBUM DE FAMÍLIA. VALSA DE STRAUSS NUM CRESCENDO. FOCO NO PAR ATOR/ATRIZ QUE DANÇA SENSUALMENTE.  VOZ GRAVE EM OFF DECLAMA BAILEEM TOM DE SERMÃO.

 

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabom pai de família

é aquele que encabeça abaixo-assinado

pra expulsar as putas

que ultrajam sua pacata cidade

e quando sua filhinha faz quinze aninhos

enfeita-a de branco e jóias

e a leva pela mão

ao leilão anual do clube

 

 

ESCURIDÃO. SONS URBANOS. FOCO NO ATOR.

 

Ator:

 

o murro na boca o baque o calafrio

o nosso mal estar

nossa pressa em nos limparmos dos respingos

                                    do sangue

que insiste que testemunhemos que esta vida

                                       existe

e de novo

reflui

como aquele esgoto

que como vitrines de shoppings

         papos bovinos inspirados em teses

 

7. PROJEÇÃO DA IMAGEM DIGERINDO A REVOLUÇÃO. FOCO NA ATRIZ QUE DECLAMA OLHANDO PARA A TELA.

 

Atriz:

 

O intelectual não come

Estuda o cardápio e arrota

 

ESCURIDÃO. FOCO NO ATOR. TRECHOS DA 5ª DE BEETHOVEN.

 

Ator (ou ator/atriz em jogral):

 

                           chopp & gorgonzola

         ninfetas preibóis putas reputados

              cidadãos surpreendidos pelo sol

                na volta da ronda pelo prazer

                                de ter prazer

como tudo que se mistura à moral sucupirana

daqueles olhares dos que acordam mais cedo

para em meio a pragas e maledicências

lavar as calçadas e os becos coloridos de

                 camisinhas e vômitos

sombrios porque frustrados olhares

que se abrem e fecham com as galinhas

por não terem com quem pecar

                 (como será trocar o perfume

                  da dama-da-noite

                  pela náusea do pinho sol

                  às seis?)

 

chuto de leve o chapéu do cego

ele agradece e me abençoa em nome de deus

pelas moedas que não lhe dei

 

é meu modo de caminhar

e hoje é o meu tempo

 

8. ESCURIDÃO. VOZ GRAVE EM OFF DECLAMA TROVA DE PÓLVORAEM TOM DE AMEAÇA.

 

tivesse poder e pontaria

pra num átimo de segundo

dar um fim neste mundo

por vezes não exitaria

 

 

ESCURIDÃO. SOM DE EXPLOSÃO, DESMORONAMENTO, VIDRO ESTILHAÇANDO.  TRECHOS DO BOLERO DE RAVEL. FOCO NO ATOR.

 

Ator:

 

feridas cachorro/menino

ciscando nas latas de lixo

sei não há sangue neste meu lado

                            lodo latino

quem há de derrubar portas?

mortos banguelas sorriem para a tela

estrabicamente

um olho na marca da calcinha

outro nos rostos/fuzis

 

não cavo trincheiras

não espero o derradeiro tiro

salto espreito passo de fino

apesar de ti

amo-te meu irmão

porém minha vida é meu caminhar

meu tempo podre atoleiro

farinha pouca meu pirão primeiro

farinha muita meu pirão primeiro

não me interessam palpos de aranha

 

quem ama não mente

mata

mas são tantos

nem sei em quem atirar

                 (talvez em ti primeiro)

 

sei que toda a morte é vã

e tenho que caminhar

meu tempo é este

voa

não nasci para ser ponta de lança

tampouco fiel escudeiro

 

sigo

vendo meu peixe

sem tirar-lhe as escamas

sem palavras prá depois

apenas outra bactéria

exposta nesta fratura

 

DECLAMAÇÃO TERMINA COM ACORDES FINAIS DO BOLERO.

 

9. ESCURIDÃO. FOCO SOBRE ATOR E ATRIZ QUE PASSEIAM DE BRAÇOS DADOS.

Ator (outro?) (em off):

 

TURNOS

 

Findo o noturno repasto,

faz-se mister uma volta.

Gentil, ele oferece o braço

a ela que, discreta, arrota.

 

Devido ao ausente repasto,

mais urgente é a volta.

FOCO NOUTRO CASAL (BONECOS?) ESCONDIDO NA PENUMBRA

Ele, punhal junto ao braço;

ela, de olho na Rota.

 

PROJEÇÃO DO VÍDEO NOITE

Bêbados e doidivanas

navegam em caravanas.

E, sob a luz do neon,

 

a fofa barriga burguesa

e o vestido azul-turquesa

versus a fome de plantão.

 

CASAL DE BONECOS É LANÇADO SOBRE ATOR/ATRIZ. GRITO. CAEM OS QUATRO. JUNTO COM GRITO, ACORDES DE TRECHO DA 9ª DE BEETHOVEN EM FADE OUT.

 

ADENDOS

 

 

VÍDEOS:

1. URBE I – montado a partir de 3 cenas sobrepostas:

– cena 1 (filmada rente à calçada, imagem acelerada): pés calçados e descalços caminham em várias direções

– cena 2 (câmera sobe dos pés até à cintura dos passantes, imagem em velocidade normal sobreposta em fade in sobre imagem dos pés): pernas caminham em várias direções

– cena 3 (câmera sobe dos pés até tomar o coro inteiro dos passantes, imagem em slow motion sobreposta em fade in sobre imagem dos pés) pessoas anônimas (desfocadas) caminham em várias direções cruzando umas com as outras.

 

2.CÃO SEM LUZ – um homem puxando algumas cordas, devagar como se marchasse. A corda está amarrada a uma mesa em torno da qual um homem grisalho, uma mulher de meia idade e uma adolescente estão sentados. Mesa com copos e garrafas. O homem grisalho, sentado entre as duas, beija a mulher enquanto aperta o seio da adolescente.

 

3.ÁLBUM DE FAMÍLIA – filmagem de making off de foto com família em pose tradicional.

 

4. NOITE – pessoas caminhando à noite em calçada; sons de risadas, copos e de carros que passam.

 

FOTOS:

DIGERINDO A REVOLUÇÃO – pessoa em traje social levemente despojado; sentada à mesa sorve um café enquanto lê um livro em cuja capa lê-se Bakunin; num pratinho à sua frente há um pão-de-queijo já mordido.

*Aluno do Curso de Cinema da UFSC.