Uma breve reflexão sobre “Not I” – Larissa Ceres

Uma breve reflexão sobre Not I

Larissa Ceres*

Samuel Beckett nasceu em 1906 nos arredores de Dublin e faleceu em Paris no ano de 1989. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1969, foi autor de extensa produção (que varia desde ensaios até contos, romances, poesias, um roteiro de filme e áudio-dramas), contudo, é conhecido largamente por sua atividade no teatro.
Esperando Godot, a história da espera por esse personagem que “não virá hoje” é talvez a sua peça mais conhecida e encenada. Escrita em francês entre os anos de 1948 e 1949, foi encenada pela primeira vez em 1953 no Théâtre de Babylone em Paris. Outras famosas peças de sua autoria são Fim de Partida (escrita em 1954/56) e Dias Felizes (1961).
Ao refletir sobre a linguagem dentro da obra de Beckett, é perceptível que a própria ficção apresenta elementos que justificam seu projeto literário, como o seguinte trecho de O Inominável:

(…) é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar. (BECKETT, 2009, p.185)

A respeito da língua, é sabido que as produções mais conhecida do autor foram escritas em francês – ou primeiramente em francês (como é o caso das obras citadas anteriormente) e traduzidas para o inglês. Essa proximidade de Beckett com a tradução levou-o à construção de uma abordagem “enxuta” do próprio texto, pesando na engenharia da palavra. Para Esslim (1969, p.35) “Escrevendo numa língua estrangeira, Beckett tem a garantia de que sua obra permaneça numa luta constante, uma dolorosa confrontação com o próprio espírito da língua.”.
A ficção de Beckett é pautada pela fragmentação dos corpos de seus personagens e pela linguagem, as palavras surgem como cortes secos na narrativa. Afinal, as palavras são a única espécie de ação, de movimento que encontramos na sua obra, bem como a repetitividade e intensificação das situações potencializadas e cíclicas. É através da palavra que se faz a tentativa (talvez falida?) de comunicação em seus níveis mais básicos – ainda que a faça de uma maneira elaborada. O desenvolvimento em torno da falta de um sujeito identificado ao qual o espectador pode criar a relação faz parte do estranhamento proposto.
O processo de negatividade e desmembramento da palavra e também do sujeito marcam sua ampla produção artística. Not I foi traduzida para o francês pelo próprio Beckett como Pas Moi (1972). Nesta peça, contamos com apenas duas figuras distintas presentes em cena, enquanto o texto é interpretado por uma delas – chamada MOUTH, cuja descrição indica estar fracamente iluminada e com o restante do rosto nas sombras – temos a presença e breves movimentos silenciosos– nomeada AUDITOR, coberta da cabeça aos pés por uma djellaba.
Algumas das características da obra de Samuel Beckett são levadas ao extremo em Not I. Personagens marginalizados (como no caso de Vladimir e Estragon) ou de alguma maneira impedidos fisicamente de se movimentar com liberdade (Hamm, cego e cadeirante, Winnie, enterrada na areia), monólogos e cenário minimalista. Em Not I, o espectador é levado de uma maneira extraordinária até a sensação de imobilidade não só visualmente, mas também no própria construção da cena.
Para Barthes,

Talvez essa neutralidade do cenário além de instalar um lugar absurdo e romper com a familiaridade tradicional do espaço, tenha como função libertar a palavra, deixar-lhe toda sua preeminência: para que a palavra seja espetacular, retira-se toda a significação do cenário, que, ao contrário, no teatro conformista, entrega ao espectador uma grande quantidade de informações. (2007,  p.300)

Billie Whitelaw, uma das grandes interpretes de Beckett, comenta, a respeito da interpretação em Not I:

Ele ficou dizendo ‘Estável, sem emoção, sem cor, estável,’ E eu dizia, ‘Sim, sim.’ Eu acho que voltamos a alguma coisa sem atuação; só acontece. Com Not I o que aconteceu para mim foi um grito interno terrível, como cair de costas no inferno. Foi o grito que eu nunca dei quando meu filho estava desesperadamente doente. Quando eu li pela primeira vez sozinha, levou cerca de uma hora antes que eu conseguisse pegar o telefone e falar com Anthony Page, meu diretor, e dizer, sim, Eu adoraria fazer isso – se Glenda Jackson não fizer .  (GUSSOW, 1996, p.85)

Em documentário, a atriz também fala que na primeira apresentação da peça, o teatro estava na mais completa escuridão. Foram retiradas, inclusive, as luzes que indicavam a saída de emergência e o único foco de iluminação era a boca. O foco somente no frenesi da linguagem do monólogo. O cenário se torna uma boca iluminada contando vagamente com uma presença que só se manifesta eventualmente.

Em suma, pede-se aos elementos vivos que se despersonalizem e aos elementos despersonalizados que se anime. É essa lei de inversão que parece regular a teoria do ator na dramaturgia de vanguarda: o ator aí pode ser tudo, menos “natural”; pode ser neutro como um cadáver ou possuído como um mago; o importante é que não seja uma pessoa. Essa é, sem dúvida, a exigência mais revolucionária desse teatro, porque choca o valor mais sólido de nossa dramaturgia corrente (desde há um século e meio): a naturalidade do ator. (BARTHES, 2007, p.300-301)

Uma característica marcante no texto da peça é que não há, em nenhum momento, identificação do sujeito a não ser pela palavra MOUTH. O pronome pessoal “I” não aparece em nenhum outro lugar a não ser no título (justamente com a negação), sendo que o pronome “she” é a única marcação de que o texto se refere a alguém – ainda que seja com a generalidade e imprecisão do pronome.
Mais que uma tentativa de abrir mais uma corrente de interpretação sobre quem é “she”, se “mouth” conta a sua história ou a de outra pessoa, se “auditor” é uma complementação física da voz ou não, o que temos de concreto é somente o texto, já que Beckett se não explicava de que se tratavam suas peças .
O monólogo inicia com algumas palavras ditas ininteligivelmente antes que as cortinas sejam abertas, para seguir conseguir distinguir as seguintes palavras: “…. out… into this world… this world… tiny little thing… before its time… in a godfor-… what?.. girl?… before her time… in a godforsaken hole called… called… no matter” (BECKETT, 1986, p. 376). “Girl” é a única pista que temos da personagem (que pode ou não ser a voz de MOUTH). Em seguida, “(…) drifting around… when suddenly… gradually… all went out… all that early April morning light… and she found herself in the-… what?.. who?.. no!.. she!.. [Pause and movement 1.]” (Ibdem, p. 377). A essa marcação, temos o primeiro movimento de AUDITOR. Os movimentos desta segunda figura aparecem sempre que MOUTH menciona “she”.
São elementos de cena como os acima exemplificados que diferenciam o teatro de vanguarda das demais produções da dramaturgia até então conhecidas. Barthes (2007, p.302) afirma

Para o teatro tradicional, a palavra é a pura expressão de um conteúdo, é considerada a comunicação transparente de uma mensagem independente dela; para o teatro de vanguarda, ao contrário, a palavra é um objeto opaco, destacado de sua mensagem, bastando-se, por assim dizer, a si mesmo, desde que venha a provocar o espectador e agir fisicamente sobre ele; em suma, de meio, a linguagem se torna fim. Pode-se dizer que o teatro de vanguarda é essencialmente um teatro da linguagem, em que a própria palavra é dada como espetáculo.

O seu trabalho com a problematização linguagem (inclusive por causa da atividade de tradutor e de tradutor dos próprios textos) pode ser considerada um dos grandes epicentros da sua criação artística.
Não há mais fixidez de significação. Ao contrapor repetidamente as palavras, usá-las em uma mesma frase, usar da repetição de situações em um eterno labirinto cíclico, Beckett quebra a hegemonia da comunicação direta e objetiva.
O cancelamento ou paralisia da ação na obra de Samuel Beckett criou a textura para o trabalho da forma. A novidade em apresentar uma narrativa sem personagens definidos, um teatro em que a ação é continuamente congelada desloca o sentido da cena colocando a linguagem no exílio da condição humana.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Escritos sobre teatro. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BECKETT, Samuel. O Inominável. Tradução: Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009.
BECKETT, Samuel. Not I. In: Samuel Beckett: The Complete Dramatic Works. London: Faber & Faber, 1986.ESSLIM, Martin. O Teatro do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
GUSSOW, Mel. Conversations with (and about) Beckett. New York: Grove Press, 1996.
*Mestranda UFSC