DOIS POETAS DENTRO E FORA DAS ANTOLOGIAS – Sérgio Medeiros

DOIS POETAS DENTRO E FORA DAS ANTOLOGIAS

 Sérgio Medeiros*

Luci Collin

Ricardo Aleixo

Publicadas recentemente, duas antologias oferecem ao leitor o que há de melhor na produção contemporâneo do Brasil: Antologia poética (1984-2018), da paranaense Luci Collin, e Pesado demais para a ventania (antologia poético), do mineiro Ricardo Aleixo. Os dois pertencem à mesma geração (nasceram no início dos anos 1960), mas seus respectivos trabalhos são diferentes, embora seus versos compartilhem alguns temas.

Luci Collin estreou na poesia aos 19 anos, mas, atraída pela prosa, à qual passou a se dedicar, ficou mais de uma década sem escrever versos. Atualmente, alterna obras de ficção com obras poéticas, mas, não poucas vezes, as duas formas se misturam, gerando seus trabalhos mais experimentais. Na Antologia poética, esse lado da sua produção ficou de fora, mas isso não tira o mérito do presente livro, que oferece as melhores realizações da autora na área do verso. Então é possível constatar, como se lê num poema, que entre hesitações ou vacilações, a expressão “avança / e o primeiro passo são todos”. Isso não significa que a sua poesia não mudou ou evoluiu ao longo dos anos, mas sim que a qualidade sempre foi muito boa desde o início, se tomarmos a antologia como referência.

Por meio da expressão nítida, que é uma das peculiaridades da sua dicção, Luci Collin expõe com sutileza e ironia, e não poucas vezes também com humor revelador, a sua face multifacetada. Se tivesse de escolher uma imagem que pudesse resumir os poemas, citaria o “álbum”, título aliás de um dos textos mais saborosos do livro. Ao registrar histórias antigas ou cenas da vida familiar passada, a poeta sabe que seu álbum se situa entre a migalha e a galáxia, mas o que recolhe talvez seja apenas os retalhos que o ciclone (título de outro poema) deixou. No poema “Solar”, sobre feridas e expiações, um dos mais bem-sucedidos, avulta uma epifania: “A frigideira vanguardista respira obstinada”, que resume ironicamente o Brasil moderno retratado por Luci Collin.

Maior e mais diversificada no conteúdo e na forma, a antologia de Ricardo Aleixo se destaca por um traço poético que de certa maneira a unifica no nível da expressão: o dístico. A maioria dos poemas do autor se estrutura de fato sobre uma sequência de parelhas (duas linhas), não importa o tema tratado (os antepassados, os deuses africanos, os artistas, os corpos etc.). Disse que o álbum, no sentido lato, parecia resumir a visão de mundo da poeta Luci Collin; diria agora que um item específico do álbum, a fotografia, é um dos elementos mais citados e comentados por Aleixo.

Assim, em “O peixe não segura a mão de ninguém”, fala-se que, numa fotografia antiga, estão três seres humanos (um deles é um menino) e um peixe, o qual está morto e não compreende que foi fotografado. Mas o poeta dirá, reformulando o tema: “Numa fotografia todos parecem mortos, pensará ainda o / menino quando já for, não mais um menino, mas o pai de algum // menino ou de uma menina. Um dos quatro na fotografia talvez / seja eu. Eu não sou o/um peixe. Ele, o peixe, já havia sido pescado”. No poema “Chamado cavalo”, temos, em lugar do cadáver do animal, um ser vivo e emblemático, figura mítica que, estando à solta, é o homem com alma de cavalo, embora o autor, em outro poema sedutor da última parte do livro (é, a meu ver, a parte mais saborosa), “Devir”, afirme que talvez “não saiba mesmo / lidar com meu / ‘devir animal’, / como insinuou, noite dessas, / sibilante sapiente, / uma certa // moça-serpente.”

Num texto inclassificável, “O poemanto: ensaio para escrever (com) o corpo”, o  poeta não se debruça mais sobre uma imagem estática, a qual, como em certos poemas, parecia trazer a sua própria face primordial ou a de algum ancestral remoto (humano ou animal, pois “eu era felino”), mas discorre, em versos explicativos, sobre a sua realização como “performador”, ao sair da página do livro e vestir o poema escrito num manto, dando, assim, mais movimento à imagem poética. O corpo negro, antes confinado na fotografia (mas nunca acomodado nela), agora ocupa um espaço vasto, no Brasil e no exterior, fazendo evoluções improvisadas, nas quais cada “imagem se desfará / tão logo venha a ser percebida”. Essa nova forma de escrita, porém, nunca estará no livro, senão como um registro posterior, um resumo do rito realizado alhures.

Por isso, pode-se concluir que, lendo tanto a antologia poética de Ricardo Aleixo quanto a de Luci Collin, percebe-se que, pela própria riqueza da expressão artística de ambos os autores, sua arte resiste a ser inteiramente confinada numa única forma (o verso) ou num único formato (o livro impresso). Nas antologias convencionais, algo do que ambos já realizaram sempre ficará de fora, algo no entanto essencial para compreendermos a radicalidade poética de seus respectivos percursos.

 

*Sérgio Medeiros é poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Publicou, entre outros, os livros de poesia A idolatria poética ou a febre de imagens (2017) e Trio pagão (2018), ambos pela editora Iluminuras.

 

Livro: Antologia poética (1984-2018)

Autor: Luci Collin

Editora: Kotter editorial/Ateliê editorial

Ano: 2018

Número de páginas: 92 p.

Contato: www.kotter.com.br / contato@kotter.com.br

 

Livro: Pensado demais para a ventania (antologia poética)

Autor: Ricardo Aleixo

Editora: Todavia

Ano: 2018

Número de páginas: 200 p.

Contato: www.todavialivros.com.br