Convergências, de Remo Ceserani – um olhar sobre o jogo simbiótico entre os instrumentos literários e os outros saberes na cultura contemporânea – Valteir Vaz

Convergências, de Remo Ceserani – um olhar sobre o jogo simbiótico entre os instrumentos literários e os outros saberes na cultura contemporânea

Valteir Vaz[1]

“Convergências”, de Remo Ceserani

 

Convergências, publicado recentemente pela Editora da Universidade de São Paulo, é uma das últimas obras do teórico literário italiano Remo Ceserani, morto em 2016. Ceserani tornou-se conhecido no Brasil a partir de 2007, ocasião em que aqui fora publicado O fantástico, livro no qual o crítico elenca uma série de procedimentos e possíveis definições do gênero fantástico, no âmbito da literatura. Mas, o que ora temos difere consideravelmente de obras anteriores do escritor. O leitor encontrará em Convergências um minucioso inventário das imbricações entre literatura e uma gama de outros sabres. Não é que o crítico esteja implicado diretamente em todas estas áreas do conhecimento: filosofia, matemática, física, química, biologia, antropologia, paleontologia, história, geografia, medicina, direito, etc., seu foco de interesse recai, antes, em trabalhos de pesquisadores que, de uma maneira ou de outra, acabaram por promover algum tipo de intersecção, envolvendo instrumentos fornecidos pela literatura e por outros domínios do saber. Para levar sua pesquisa à frente, Ceserani – que foi professor visitante em diversas universidades ao redor do mundo – movimentou uma bibliografia consistente, isso tornou seu texto repleto de citações e referências, mas nada a ponto de estancar seu estilo fluido e cadenciado, recuperado magistralmente na tradução.

Remo Ceserani

Para falar à maneira de Mikhail Bakhtin, Convergências constitui um exercício crítico de iluminação mútua entre a literatura e os outros saberes, inclusive os científicos. Para tanto, Ceserani se vale de uma abordagem que procura selecionar entre as convergências aquelas em que não se evidencia qualquer tipo de sobreposições de um saber sobre o outro. O que ocorre é, antes, uma simbiose, resguardando benefícios mútuos para as partes em correlação. Na mesma medida em que estudiosos recorrem à literatura para tornar inteligíveis certos conceitos e procedimentos que a ciência, à carência de uma terminologia palatável ao leitor não iniciado, precisa incutir no seu destinatário, há também um amplo universo de temas e conceitos científicos que o discurso literário, ainda que indiretamente, assume para si. Ve-se, então, como no interior de romances, contos, novelas, enfim de toda forma de ficção se mesclam os diversos campos do saber.

O universo do qual Ceserani recolhe seus exemplos é, quase exclusivamente, o das universidades norte-americanas, aí incluindo referências a diversas personalidades do mundo acadêmico – neste âmbito, convém mencionar os nomes do antropólogo Clifford Geertz, da filsósofa Martha Nussbaum, do médico Oliver Sacks, do historiador Hayden V. White e do biólogo Edward O. Wilson – bem como um amplo rol de linhas de pesquisa.

É verdade que certas convergências atraem mais o olhar do crítico que outras. Nesse sentido é importante observar o que se passa nas páginas concernentes às intersecções entre literatura e biologia, literatura e filosofia e literatura e antropologia. Esta última, por exemplo, mereceu longas e detalhadas passagens em Convergências: Ceserani toma como fio condutor um modelo interpretativo encontrado em A interpretação das culturas, a obra mais conhecida e estudada de Geertz. Geertz fora bastante influenciado pela crítica literária americana, e não seria exagero afirmar que ele transpôs para os domínios da “antropologia interpretativa” certos rudimentos advindos do New Criticism, com destaque para o instrumento mais acabado deste, a chamada close reading, ou leitura cerrada e interpretativa do fato literário. Mas, de toda a herança da nova crítica, o que Geertz mais reteve enquanto modelo operatório foram, a meu ver, os ensinamentos de Kenneth Burke, desenvolvidos em Language as Symbolic Action. Nesta obra, particularmente, Burke estabelece de maneira detalhada uma de suas teses principais, qual seja: a compreensão da obra literária como uma forma de comunicação simbólica, em que as dimensões do individual e do social se interconectam num permanente processo dialético. Também esteve entre as influências recebidas por Geertz, a determinante contribuição de Margaret Mead, antropóloga com quem ele manteve contado, quando então desenvolvia pesquisa de doutorado junto à Universidade de Harvard.

Ceserani se encanta – com toda razão – por passagens como estas:

O conceito de cultura que vou expor, mostrando sua utilidade por meio dos ensaios seguintes, é essencialmente um conceito semiótico. Tendo em conta, com Max Weber, que o homem é um animal emaranhado na rede de significados que ele mesmo teceu, afirmo que acultura consiste nessas redes e que, portanto, a análise delas não é uma ciência experimental à procura de leis, mas uma ciência interpretativa à procura de significado. (GEERTZ apud CESERANI, 2018, p.  109)

E também:

O termo “cultura” já adquiriu certa aura de má fama nos currículos da antropologia social. Para a multiplicidade de referências e a falta de determinação com que, intencionalmente, se apelou para ele […]. O conceito de cultura do qual sou adepto não tem nenhuma multiplicidade de referentes nem – pelos que posso julgar – ambiguidade insólita: ele denota um modelo de significados transmitido historicamente, significados encarnados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas, com que os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes para com a vida. (GEERTZ apud CESERANI, 2018, p. 111)

Como já se pode pressupor, a convergência entre literatura e a antropologia de Geertz se explicita pelo fato do estudioso trabalhar dentro dos limites de um método segundo o qual a cultura é compreendida à feição de uma complexa rede de significados. A tarefa do antropólogo, análoga à do analista literário, é interpretar esses signos. Em outros termos, o texto de literatura e os fenômenos antropológicos, segundo Geertz, constituem eventos de naturezas distintas, mas que requerem abordagens similares. Não por acaso, nesta mesma seção, Ceserani traz à baila os nomes dos semiólogos Iúri Lotman e Boris Uspiênski da Escola Semiótica de Tartu; ambos, como se sabe, compreendiam os fenômenos da cultura em estreita analogia com o método interpretativo de Geertz.

Outra figura de relevo na cena cultural contemporânea, cuja obra principal é discutida na seção concernente às relações entre o mundo da literatura e o dos mitos, das religiões e da filosofia é Marta Nussbaum, filósofa norte-americana, hoje professora emérita da Universidade de Chicago. Nussbaum é autora do influente e polêmico Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature, um conjunto de textos onde é defendida a tese segundo a qual as obras literárias podem exercer considerável influência na filosofia moral. O que chama a atenção de Ceserani aqui é a defesa do ponto de vista sustentado por Nussbaum:  a literatura, segundo ela, é uma fonte fecunda de potencialidades que podem inspirar no leitor um tipo de provação moral, algo que raramente é estimulado por textos de natureza puramente filosófica, preocupados quase sempre com questões de ordem conceitual.

A literatura, a partir das escolhas morais com as quais as personagens romanescas frequentemente se deparam, acaba por ajudar o leitor a refletir profundamente sobre suas escolhas. No fundo a tese de Nussbaum é muito simples: ela enfatiza uma particularidade do texto literário que se alastra desde a catarse (o purgar das paixões) aristotélica até a ostranênie (estranhamento da forma e do mundo), dos formalistas russos: está entre as características da literatura gerar estados emocionais no receptor (no caso de Aristóteles, na plateia, pois, quando fala de catarse, está se referindo particularmente à tragédia; quanto aos formalistas, trata-se do reflexo do texto no leitor).

O que se espera da literatura é o seguinte: aquele que se dispõe a fruir uma dada obra, após experimentar certas emoções vividas por personagens fictícios, deve ser capaz de responder mais conscientemente por escolhas e atos que podem vir a ocorrer em situações empíricas. A maneira de Nussbaum compreender o texto literário é uma reedição contemporânea da doutrina da mimese aristotélica, segundo a qual a literatura (o termo literatura é muito posterior a Aristóteles) é representação daquilo que determinada mentalidade e período da história compreende por realidade, uma espécie espelho que reflete o que ocorre ou poderia ocorrer no mundo sensível. À feição de círculo vicioso, a literatura imita ações empíricas do mundo e o leitor imita estas mesmas ações. Mas nem toda atividade humana, segundo vocifera Platão no livro 10 da República, é digna de ser copiada; aliás, as atividades de caráter artísticos (encontradas na literatura) são, segundo o filósofo, as mais perigosas, logo totalmente descartáveis por um tipo de educação baseada na imitação das “boas ações”.

Este aspecto da filosofia de Nussbaum que tende a ver no texto literário um dispositivo capaz de despertar a sensibilidade do leitor certamente soará familiar àqueles leitores interessados pelas teorias da literatura: o posicionamento da filósofa, em parte, tangencia com o do crítico de Antonio Candido, nomeadamente no que diz este em “A literatura e a formação do homem”. Neste imprescindível ensaio, o estudioso ressalta que a literatura, como as outras artes, pode conter um aspecto humanizador, aspecto este de considerável relevância na constituição da sensibilidade do homem, logo, um elemento chave no processo civilizador. Até aqui há, de fato, inegáveis afinidades entre os dois; no entanto, há também divergências. O mesmo leitor que encontra princípios éticos dignos de serem experienciados no texto literário também pode encontrar outros não tão éticos assim. A literatura não é o local ideal para se buscar princípios éticos, se é que tal lugar existe. Constata então o crítico: “Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta.”[2]

Para ficarmos no âmbito do gênero romance, vale citar, à guisa de exemplo, entre outros tantos, o caso “exemplar” de Emma Bovary, a heroína de Madame Bovary, que acabou “envenenada” pelas leituras que fez. Emma (Flaubert, como num jogo de espelhos, constrói uma personagem sendo influenciada por outras personagens) acreditava piamente em tudo que lia, seu interesse pela vida e pelo comportamento das personagens que encontrava nos romances é digno de nota. Sua fascinação alcançou proporções homéricas, passou então a querer imitar essas heroínas a todo custo. Na impossibilidade de concretizar essa demanda, se viu frustrada. Em decorrência disso e de outras tantas coisas, instauram-se indícios de comportamento que lembram os sintomas descritos por Freud sob a denominação de “pulsão de morte”; por fim, após diversas tentativas logradas de autoengano – e já bastante acossada pelos demônios que ela mesma tratou de criar (ou encontrou na literatura que leu) – Emma acabou se matando. Em resumo: é verdade que a literatura – e as artes em geral – têm papel relevante no desenvolvimento da sensibilidade humana, resta saber o que fazer com esta sensibilidade aguçada.

Nussbaum enfrentou severas críticas tanto por parte de críticos literários como por colegas filósofos e sua polêmica com Judith Butler, de certa maneira, está relacionada à questão da filosofia ética. A querela se instaurou em 1998 e foi noticiada por diversos meios, inclusive The New York Times e New Republic. Entre as razões da disputa estive uma declaração de Butler defendendo que, em filosofia, para exprimir conceitos difíceis é preciso se valer de uma linguagem também difícil. Neste ponto interveio Nussbaum, discordando completamente da posição de Butler; além disso, a autora de Problemas de Gênero foi acusada de praticar uma “retórica sofistica” e de “fazer paródia do pensamento, e não filosofia”. Mas, a mais radical das críticas a Nussbaum foi posta pela também filósofa Margaret Holland, professora na University of Northern Iowa. Holland concorda em parte com alguns argumentos da colega, mas refuta a tese central sobre a capacidade da literatura de inspirar reflexões morais no leitor. Sua crítica reside justamente no caráter relativista dos critérios de escolha daquelas obras moralmente exemplares: o que deve conter uma obra deste tipo? O que deve ficar de fora e por quê? Melhor seria concluir esse quiproquó envolvendo, mesmo que de maneira indireta, a literatura e a filosofia recorrendo uma vez mais ao ensaio de Antonio Candido, que arremata sinteticamente:

Paradoxos, portanto, de todo lado, mostrando o conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos de bem e o que chamamos de o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (CANDIDO, A. op. cit. 1999,  p. 85 grifos do autor)

Entre tantos que ressaltaram as convergências, analogias, intersecções, ligações etc. entre a literatura e outros saberes vale lembrar um pequeno livro de 1978 denominado simplesmente Aula, do crítico francês Roland Barthes. Na verdade, trata-se de uma obra que nasceu do pronunciamento do autor por ocasião de sua aula inaugural no Collège de France, em 1977. No auge do Estruturalismo, Barthes colocava: “A literatura assume muitos saberes. (…) a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, esse indireto é precioso.”[3]  No fundo o crítico está isentando a literatura de assumir qualquer responsabilidade sobre os diversos discursos que ela veicula, mas não exclui a possibilidade de, mesmo assim, conter estes discursos. No fundo Barthes está relativizando o compromisso da obra literária com uma suposta realidade, a tônica de sua declaração recai sob o estatuto ficcional da literatura. Este lugar indireto que a literatura outrora deu a todos estes outros saberes é exatamente o que a ela tem sido reservado no interior destes mesmos saberes. Contrariamente ao que faz Barthes que, à sua época, pode proporcionar à literatura uma posição de destaque na pletora dos campos do conhecimento, Ceserani não fetichiza nenhum deles, nem mesmo sua área de interesse, a investigação literária. Seu foco se mantém, arraigadamente, na insistente ideia de convergências. Seria isso indício da perda da tradicional posição de prestígio que a literatura manteve durante tanto tempo? Por outro lado, o crescente e, às vezes, arriscado interesse pelos textos literários e pelas suas modalidades por parte das ciências pode ser interpretado como uma garantia de vida longa à literatura? Eis o que Convergências também se dispõe a responder.

 

Bibliografia

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de France, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moisés. Ed.18. São Paulo: Cultrix, 2007.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”. In: Remate de males. Campinas: 1999, p.84.

CESERANI, Remo. Convergências: os instrumentos literários e as outras disciplinas.  trad. Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Edusp, 2018.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. São Paulo: Editora LTC, 1981.

NUSSBAUM, Martha. Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1993.

[1] É doutor em Literatura e Cultura Russa, professor colaborador junto ao Programa de Literatura e Cultura Russa da USP e professor das Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC).

[2] CANDIDO, Antonio. “A literatura e a formação do homem”. In: Remate de males. Campinas: 1999, p.84.

[3] BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de France, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moisés. Ed.18. São Paulo: Cultrix, 2007, pp. 17, 18.