A sutileza da crítica – Vássia Silveira

 A sutileza da crítica

Vássia Silveira*

Madame de Staël

Madame de Staël

Irmãs na angústia da forma, quase sempre discutível, a crítica e a tradução parecem dividir o mesmo fardo: o da suscetibilidade alheia. Porque se não são poucos os exemplos que temos de traduções cujos resultados encheram de ira alguns leitores – para isso basta nos lembrarmos das perseguições empreendidas pelo Santo Ofício –, menores ainda são os escritos críticos que, ao longo dos séculos, têm perpetuado o nome de seus autores graças à agudeza que manifestaram em suas reflexões culturais, sociais, literárias ou filosóficas. Carregados de conteúdos que não se limitam ao contexto no qual foram produzidos, tais textos costumam revelar inquietações capazes de ultrapassar a cinzenta barreira do tempo, chegando às nossas mãos com o mesmo frescor revelado nas primeiras tintas.

Este me parece ser o caso de um dos mais conhecidos textos de Madame de Staël, o Do Espírito das Traduções. Escrito nos anos de 1820, ele mostra com perspicácia, dureza, mas também elegância, uma preocupação tão contemporânea quanto o é o próprio desafio da tradução: em que medida o olhar do outro pode ou deve ser “domesticado” pela literatura de um país?

Tamanha inquietação faz jus à vida e obra de Madame de Staël, como ficou conhecida Anne-Louise Germaine Necker, baronesa de Staël-Holstein (1766-1817). Filha de um banqueiro e de uma escritora, a autora francesa se destacou pela força de seu discurso político, as duras críticas a Napoleão – o que a obrigou a sair da França, vivendo por vários anos, em diferentes países da Europa – e as reflexões filosóficas. Amiga de figuras como Diderot, Benjamin Constant e François Arnould, Madame de Staël escreveu diversas obras, entre as quais Essai sur les fictions (1795), De la Littérature (1800),  Delphine (1803),  Corinne (1807) e  De l’Allemagne (1810).

Em pelo menos dois desses livros, De la Littérature e De l’Allemagne, ela abordou questões referentes à tradução. Suas críticas revelavam o conhecimento de uma autora inquieta e liberal. Elementos que conduzem também o ritmo de suas reflexões em Do Espírito das Traduções.

Partindo da constatação de que o traduzir é elemento fundamental para o conhecimento e, mais ainda, para a literatura – “Não há mais eminente serviço que se possa prestar à literatura do que transportar de uma língua para outra as obras-primas do espírito humano” – Madame de Staël tece, neste texto, um breve panorama dos caminhos literários e tradutórios que a Europa romântica começava a trilhar, criticando, como era de se esperar de um autor romântico, a anacronia das formas inspiradas na antiguidade Clássica. Nesse sentido, ainda que a fina pena de Staël não tenha poupado os franceses, alemães ou ingleses, a crítica mais incisiva é feita aos italianos: “A Itália (…) teve escritores como Fracastoro, Poliziano, Sanazaro, os quais se aproximavam (…) do estilo de Virgílio e Horácio; mas se suas reputações perduram, suas obras não se leem mais fora do círculo dos eruditos; e é uma triste glória literária aquela que tem a imitação por fundamento”.

Para a autora, a tradução de grandes nomes da literatura estrangeira exerce, além do papel fundamental sublinhado anteriormente, influência benéfica à cultura, na medida em que podem “com mais eficácia que qualquer outro meio, preservar a literatura de um país das expressões banais que são os mais certos sinais de sua decadência”. Não se trata, porém, de acreditar em toda e qualquer tradução. Mas, sobretudo, de reconhecer no traduzir a possibilidade de ampliação e/ou ganho de novas formas, palavras e cores na língua de chegada. O assunto bem poderia acabar nessa constatação, mas Staël aproveita-o, destilando, a partir daí, uma ácida crítica às traduções francesas: “(…) é preciso que não se dê, como os franceses, sua própria cor a tudo que se traduz; e mesmo transformando em ouro tudo que toca, não se deixaria de obter um só resultado, não se podendo dele alimentar”.

Uma leitura apressada de tais linhas bem poderia levar o leitor a pensar somente na crítica às Belas Infiéis. O que seria uma pena, pois o mesmo estaria privado de uma reflexão que extrapola o território das formas tradutórias para alcançar o campo minado do traduzir poético. Porque ao afirmar que na língua francesa “a raridade da rima, a uniformidade do verso, as dificuldades das inversões, imobilizam o poeta”, Madame de Staël coloca em jogo também a importância de se pensar a especificidade da tradução de poesia – ainda que para isso tenha apontado como exemplos somente a tradução de clássicos da antiguidade como a Odisséia e a Ilíada, ambas atribuídas a Homero.

É a partir do original de tais livros que a autora constrói sua teia crítica, incluindo, na delicadeza das linhas, observações a respeito da tradução de Homero pelos ingleses e os alemães. Dos primeiros, reconheceu a facilidade da língua – “admite inversões e cuja versificação se submete a regras menos severas que a dos franceses–, para depois afirmar que apenas a tradução de Pope conseguiu conservar a simplicidade do autor grego. E dos últimos, lembrou a eficiência na tradução do hexâmetro grego para o alemão, voltando-se, em seguida, ao elemento desafiador da poesia – “Tal tradução serve com eficácia ao conhecimento preciso do poema antigo; mas será que temos certeza de que o charme (…) tenha sido inteiramente transportado para a língua alemã?”. A resposta de Staël parece não deixar dúvidas: “As quantidades silábicas são conservadas; mas a harmonia dos sons não poderia ser a mesma”.

Como se passeasse em sinuoso jardim, a autora retoma, então, ao início de suas reflexões acerca das traduções italianas. E com um espírito semelhante aos que acreditam na diplomacia, trata primeiro de elogiar – “A tradução de Homero por Monti, de todas as que existem na Europa, é certamente a que mais se aproxima do prazer que o original mesmo poderia provocar” – para depois repreender, com a dureza de uma velha senhora, a inexistência do novo na Itália: “Seria desejável […] que os italianos se ocupassem em traduzir com cuidado várias poesias novas dos ingleses e dos alemães; assim, revelariam um gênero novo a seus compatriotas, os quais se limitam, na maioria, às imagens extraídas da mitologia antiga: ora elas estão começando a se esgotar”.

Ainda que o centro da crítica aos italianos seja o gosto pelas formas clássicas, principalmente na poesia, Madame de Staël vai mais longe em sua análise. Para ela, tal inclinação reverbera em toda a sociedade, conduzindo-a para uma possível e irremediável estagnação cultural: “Importa ao progresso do pensamento, na bela Itália, olhar para além dos Alpes, não para pedir emprestado, mas para conhecer; não para imitar, mas para libertar-se de certas formas convencionais (…)”. Nesse sentido, o teatro é o palco que, segundo a autora, melhor reflete as possibilidades do novo e o risco do que é velho e monótono. “(…) ouvir todos os dias, durante cinco horas (…), o que se convencionou chamar de recitativos na maioria das óperas italianas, torna-se, com o passar do tempo, uma maneira segura de diminuir as faculdades intelectuais de uma nação”.

Sem meias palavras, Madame de Staël aponta a fragilidade da literatura italiana de seu tempo, afirmando que a mesma está “dividida entre os eruditos que viram e reviram as cinzas do passado, tentando encontrar ainda alguns grãos de ouro, e os escritores que confiam na harmonia de suas línguas para fazer acordes sem ideias”.

E não seria esta, assim como as demais reflexões da autora acerca do fenômeno tradutório, uma questão tão contemporânea quanto os desafios que vemos na literatura que busca, no século XXI, sua capa de modernidade e inovação? E o que dizer, então, dos caminhos que a era globalizante nos aponta ao expandir nossos olhares a culturas diversas, nos impelindo, ao mesmo tempo, ao centro de nossa própria cultura?

Não é exagero, portanto, afirmar que a voz de Madame de Staël, neste texto, nos soa familiar. Tão familiar que seria lastimável, a nós, leitores do século XXI, não termos a oportunidade de ouvi-la.

É fundamental, portanto, não somente lê-la, mas, sobretudo, nos deixarmos guiar pela riqueza inquietante de seu olhar sobre a importância da tradução, da literatura e das artes em geral para o engrandecimento de uma nação. E ainda que não me pareça ser o caso do Brasil – país tão diverso e plural – incorrer no erro de um anacronismo que dispensa o “outro”, é sempre preferível imaginar o risco. Senão para avançarmos, ao menos para fugir da possibilidade de uma “apatia da qual nem mesmo o próprio sol poderia despertar”.
STAËL, Madame de. Do Espírito das Traduções. In: Faveri, Cláudia Borges de & Torres, Marie-Hélène C. (org.). Antologia Bilíngue Clássicos da Teoria da Tradução, vol II – Francês-Português. Florianópolis: Núcleo de Tradução (NUT). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2004, PP. 140-151. Tradução de Marie-Hélène Torres.

*Bacharel em Letras Espanhol, mestranda em Estudos da Tradução na UFSC.