Ângulo de guinada, de Ben Lerner – Tradução de Ellen Maria Martins de Vasconcellos

Ângulo de guinada – Ben Lerner*

Tradução de Ellen Maria Martins de Vasconcellos**

 

Ben Lerner

Ben Lerner

O PRIMEIRO CONSOLE DE JOGOS foi a chama domesticada. Os videogames contemporâneos permitem selecionar o ângulo desde onde se vê a ação, inspirando uma sucessão de massacres escolares. Os jogos novos, que usam pequenas pinceladas para simular o reflexo da luz, resultam quase ininteligíveis para os jogadores de mais idade. Em nossos simuladores, abstraímos o aeroplano com a esperança de manipular o voo como tal. Os macetes, códigos secretos que transformam o personagem em invisível ou rico, mudam o clima ou permitem pular de fase, são ao videogame o que é a prece ao mundo real. As crianças, chegada a hora, tentarão aplicar os macetes ao mundo fenomênico. Aperta pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo, esquerda, direita, esquerda, direita, a, b, a, para que saia o sol. Esquerda, esquerda, b, b, para manter-se aquecido.

 

VALORIZAVA A PINTURA ATÉ O PONTO de renunciá-la. Valorizava a renúncia até o ponto de seguir pintando. A figura até o ponto de abstrair. A abstração até o ponto de insinuar o busto. O busto até o ponto de pedir a modelo que se retire. Mas eu vivo aqui, disse a modelo. Eu valorizo isso, disse o pintor. Mas valorizo o valor até o ponto de insistir. A insistência até o ponto de oferecer a outra face. A outra face até o ponto de colocar a outra. Daí até que pareça que estou dizendo Não com a cabeça.

 

AS MINÚSCULAS PARTÍCULAS DE ESCOMBRO EM QUEDA LENTA forçam a evacuação do conceito. A que altura o olhar se torna global? O temerário mete a cabeça na câmera, provocando uuhs e aahs. Penduramos voluntariamente nossa desconfiança nas cordas para poder manipulá-la desde o alto.

 

NO DESENHO ANIMADO, O CACHORRO dispara uma arma, corre com o carro e espera a bala com a boca aberta. Pequenas e contínuas mudanças na decoração produzem uma ilusão de movimento. No lugar de ereções, brotam contusões encefálicas. Reduzido todo o resto a uma pilha de cinzas, os olhos do gato travesso seguem aí, piscando. A contiguidade substituída pela substituição: você amassa o pato com uma frigideira e ele se transforma em frigideira. O urso, indiferente, apalpa o peito baleado. O imenso presunto que organiza a ação do episódio não pesa nada, parece se escorrer e por fim, é devorado por um rato. O café da manhã mais comum, a carne do sanduíche, é de desenho animado. O menino ator que trabalhou em frente ao dragão estará ferido a vida inteira. Abri os olhos. Você segue abraçado à dinamite.

 

ANTES DA INVENÇÃO DO CINEMA, ninguém se movia. Chuva como uma cortina de miçangas. Neve como a ausência de neve. Deixe de colocar sua boca em minhas palavras, lhe disse ao oficial antes de cair em seus braços. Amor pelo uniforme no lugar de amor uniforme. Baixe a voz na igreja, diminua a letra em um poema. Não já uma espada sustentada por um fio de cabelo, mas uma mina detonada por um cabo. A meia noite, a pergunta se torna retórica. O engenho tem pai? Na época da reprodutividade técnica, pode haver algum pecado original?

 

LER É IMPORTANTE porque te obriga a baixar a vista, um gesto de contrição. Quando a página passa ao plano vertical, se transforma em publicidade, decreto e/ou a imagem de um menino perdido ou de um animal. Costuma-se dizer que os textos em vertical se dirigem ao público, quando, em rigor, ao não ensinarmos a humildade, que é requisito da vida em comum, convocam o narcisismo das massas. Quando você olha vitrines, quando você quebra em cacos o vidro de uma loja, você vê sua própria imagem refletida.

 

SONHAMOS COM UMA CHUVA que, em lugar de cair, se espalha paralela à terra. Lâmina sobre lâmina de chuva. Logo uma chuva voltada para cima, que surja a uns poucos centímetros do solo. Alguém poderia se colocar debaixo da chuva e olhar. Com a desaparição do espaço público, sonhamos uma chuva que tenha lugar em interiores. Uma chuva em miniatura limitada a um quarto, uma parede, uma caixa. Logo sonhamos neve.

 

SE ESTÁ PENDURADA NA PAREDE, é um quadro. Se está no piso, é uma escultura. Se é muito grande ou pequena demais, é arte conceitual. Se faz parte da parede, se faz parte do piso, é arquitetura. Se precisa pagar entrada, é moderna. Se você já está dentro e tem que pagar para sair, é ainda mais moderna. Se é possível estar dentro sem pagar, é uma armadilha. Se está movendo, já passou de moda. Se é preciso levantar os olhos, é religiosa. Se é preciso abaixar os olhos, é realista. Se já foi vendida, é que foi criada especialmente para o espaço. Se para poder vê-la, você tem que passar por um detector de metais, é pública.

 

O HOMEM OBSERVA A AÇÃO NO CAMPO DO JOGO através do pequeno televisor que trouxe ao estádio. Sem camiseta, o torso dourado, leva peruca. Seu exagerado dedo indicador de espuma assinala a tela gigante sobre a qual projeta sua própria imagem, modelo de fanatismo. Agora observa sua própria imagem observando sua própria imagem em sua TV portátil em sua TV portátil. De repente, se coloca de pé com os braços para o alto e dá inicio a uma ola destinada a consumi-lo.

 

A DIFICULDADE INERENTE AO JOGO reside exclusivamente no enigma do objetivo. Perdem-se pontos por matar civis, mas os pontos não têm a menor importância. O ouro compra os homens. As crianças, se perguntamos a elas, negam a mediação do joystick ou ignoram a pergunta. Com frequência nos é permitido voltar fases já superadas para buscar cogumelos.

 

O SOLDADO DO FILME pede ao público que descreva suas feridas. Sem advertir que não tem pernas, tenta sair do quadro. O que importa é a forma, não o conteúdo do subministro aéreo, a maneira em que alude ao maná. Então me mate, suplica. Os soldados ativos atuam como atores, os atores inativos atuam como soldados, os espectadores vomitam em seus refrigerantes gigantes. Dança, lhe digo, apontando aos pés. Pensa, lhe digo, apontando à cabeça. A multidão se desmembra. Agora estou deitado de costas, fazendo um anjo, esperando não a margarina e a propaganda, mas a máquina fluorescente que retarda sua queda.

 

O SOL SE PÕE NUM SENTIDO TORTO, subtraindo alinhamentos da pedra da paisagem, tingindo de um vermelho vívido o vermelho o vermelho – o texto salta. O autor sonha com cortar um adjetivo e colocá-lo detrás da orelha do leitor, como se fosse uma flor. Cortar também como uma flor e colocá-lo no leitor detrás da orelha como se fosse uma flor.

 

NOSTÁLGICO DE NASCIMENTO, O ARTISTA PROPÕE um retorno à desesperação. Instala-se em seu freezer. O crítico sustenta que não é um pelo de verdade, que pelo de verdade é incapaz de fazer isto. Em que momento, pergunta o crítico, você se deu conta de que o sangue era falso? Já chegando à metade da transfusão, quando começou a dizer um monte de baboseiras. Sobre a capacidade formal de eleição? Sim, como você soube? Trabalhei como artista durante a guerra.

 

É DIFÍCIL DISTINGUIR ENTRE A QUEDA das torres
e a imagem das torres caindo.
A influência das imagens supera com frequência
[a dos acontecimentos
assim como o filme do Pollock é mais influente
[que as pinturas do Pollock.

Mas o poder de uma imagem se desgasta com cada repetição,
produzindo inquietação e reinversão simbólica.
É possível então estipular valor a uma imagem que não o tem.
Pode uma imagem ser heroica?

Não,
mas pode afirmar uma distância a respeito do acontecimento

[que ostensivamente retrata;
isto é, pode se declarar acontecimento por direito próprio,
impedindo assim todo o investimento futuro.

O crítico observa a imagem das torres caindo.
Lembra cada vez menos das torres caindo
cada vez que observa a imagem das torres caindo.

O crítico sente culpa ao ver a imagem como obra de arte,
mas a culpa provém do erro cognitivo
de não saber distinguir entre o acontecimento
e o acontecimento da imagem do acontecimento.

A imagem das torres caindo é uma obra de arte
que pode ser rejeitada, como qualquer outra,
por embarrar aquilo que ostensivamente retrata.

[Por regra geral,
se uma representação das torres caindo
pode ser repetida, não será realista.

 

FORMALISMO É A CRENÇA de que o olho violenta
[o objeto que apreende.
Todos os formalismos são, portanto, tristes.
Um formalismo negativo se encarrega da violência
[inerente ao seu método.
O formalismo é, portanto uma prática, não uma essência.

Por exemplo, um silogismo submetido a um sistema
[de substituições
nos permite apreender a experiência da lógica
no preço da lógica.

Os formalismos negativos catalisam uma experiência
[da estrutura.
A experiência da estrutura é triste,
mas ao revelar a contingência do conteúdo,
autoriza a esperança.

Esta é a função da obra de arte – autorizar a esperança,
mas a condição mesma de possibilidade desta esperança
[é a impossibilidade de seu cumprimento.
O valor da esperança é que não tem valor de uso.
A esperança é o mais triste dos formalismos.

O olhar do crítico é uma polêmica sem objeto
que busca unicamente uma superfície
onde despregar suas próprias contradições internas.
Se as condições o permitem, um desenho pode então
[se tornar significativo,
mas só em função da busca crítica da significação.

Não se trata de que a significação seja mera aparência.
A significação é real, mas transitória.
De fato, a mera aparição de significação é significativa.
Chamamos de política.

 

Angle of Yaw – Ben Lerner

 

THE FIRST GAMING SYSTEM was the domesticated flame. Contemporary video games allow you to select the angle from which you view the action, inspiring a rash of high school massacres. Newer games, with their use of small strokes to simulate reflected light, are all but unintelligible to older players. We have abstracted airplanes from our simulators in the hope of manipulating flight as such. Game cheats, special codes that make your character invincible or rich, alter weather conditions or allow you to bypass a narrative stage, stand in relation to video games cheats on the phenomenal world. Enter up, down, up, down, left, right, left, right, a, b, a, to tear open the sky. Left, left, b, b, to keep warm.

 

HE HAD ENOUGH RESPECT FOR PAINTING to quit. Enough respect for quitting to paint. Enough respect for the figure to abstract. For abstraction to hint at the breast. For the breast to ask the model to leave. But I live here, says the model. And I respect that, says the painter. But I have enough respect to insist. For insistence to turn the other cheek. For the other cheek to turn the other cheek. Hence I appear to be shaking my head No.

 

MINUTE PARTICLES OF DEBRIS IN SLOW DESCENT force evacuation of the concept. At what altitude does the view grow comprehensive? The daredevil places his head in the camera, eliciting oohs and aahs. We have willingly suspended our disbelief on strings in order to manipulate it from above.

 

THE DOG IN THE CARTOON shoots a gun, overtakes the bullet in a car, and awaits it with an open mouth. Slight, continuous changes in the shapes of the scenery give the illusion of motion. In lieu of erections, sprouting cephalic contusions. Otherwise reduced to a pile of ash, the eyes of the mischievous cat remain, blinking. Contiguity substituted for substitution: flatten the duck with a frying pan and he becomes a frying pan. The bear indifferently fingers the holes in his chest. The giant ham around which the episode is organized weighs nothing, appears slippery, and is ultimately swallowed by a mouse. The popular breakfast sandwich is made of cartoon flesh. The child actor who worked opposite the dragon is scarred for life. Open your eyes. You’re still holding the dynamite.

 

BEFORE THE INVENTION OF MOVIES, nobody moved. Rain like a curtain of beads. Snow like the absence of snow. Quit putting your mouth in my words, I said to the officer, before falling into his arms. Love of the uniform in lieu of uniform love. Lower your voice in a church, decrease your font in a poem. Not a sword suspended by a hair, but mine triggered by a wire. At midnight, the question turns rhetorical. Does invention have a father? In an age of mechanical reproduction, is any sin original?

 

READING IS IMPORTANT because it makes you look down, an expression of shame. When the page is shifted to a vertical plane, it becomes an advertisement, decree, and/or image of a missing pet or child. We say that texts displayed vertically are addressed to the public, while in fact, by falling to teach us the humility a common life requires, they convene a narcissistic mass. When you window-shop, when you shatter a store window, you see your own image in the glass.

 

WE DREAM OF RAIN that, in lieu of falling, moves parallel to the earth. Sheet after sheet of rain. Then an upward rain that originates a few feet off the ground. You can get under the rain and watch. With the disappearance of public space, we dream a rain that’s moved indoors. A miniaturized rain restricted to one room, one wall, a box. Then we dream snow.

 

IF IT HANGS FROM THE WALL, it’s a painting. If it rests on the floor, it’s a sculpture. If it’s very big or very small, it’s conceptual. If it forms part of the wall, if it forms part of the floor, it’s architecture. If you have to buy a ticket, it’s modern. If you are already inside it and you have to pay to get out of it, it’s more modern. If you can be inside it without paying, it’s a trap. If it moves, it’s outmoded. If you have to look up, it’s religious. If you have to look down, it’s realistic. If it’s been sold, it’s sitespecific. If, in order to see it, you have to pass through a metal detector, it’s public.

 

THE MAN OBSERVES THE ACTION ON THE FIELD with the tiny television he brought to the stadium. He is topless, painted gold, bewigged. His exaggerated foam index finger indicates the giant screen upon which his own image is now displayed, a model of fanaticism. He watches the image of his watching the image on his portable TV on his portable TV. He suddenly stands with arms upraised and initiates the wave that will consume him.

 

THE INHERENT DIFFICULTY OF THE GAME rests exclusively in the obscurity of its object. Points are taken away for killing civilians, but points are irrelevant. Gold earns you extra men. Children, if questioned, deny the mediation of the joystick or fail to hear the question. Often we are permitted to return to levels we’ve surpassed to search for mushrooms.

 

THE SOLDIER IN THE FILM asks the audience to describe his wounds. Unaware his legs are elsewhere, he attempts to walk out of the screen. What matters is the form, not the content, of the airdrop, how it alludes to manna. Then kill me, he begs. Active soldiers act like actors, inactive actors act like soldiers, audience members vomit in their giant sodas. Dance, I say, aiming near his feet. Think, I say, aiming near his head. The crowd dismembers. Now I’m on my back, making an angel, awaiting not the peanut butter and propaganda, but the flowering apparatus that retards its fall.

 

THE SUN SETS IN A WEAK SENSE, striking conjunctions of rock from the view, imparting a vivid red to the red to the red – the text is skipping. The author dreams of cutting an adjective and tucking it behind the reader’s ear like a flower. And cutting like a flower and tucking it behind the reader’s ear like a flower.

 

BORN NOSTALGIC, THE ARTIST PROPOSES a return to despair. He installs himself in your freezer, The critic argues it is not real hair, that real hair could never do this. At what point, asks the critic, did you realize the blood was fake? About halfway through the transfusion, when he began to talk a bunch of bullshit. About the formal capacity for choice? Yes, how did you know? I worked as an artist during the war.

 

IT IS DIFFICULT TO DIFFERENTIATE between the collapse of the towers
and the image of the towers collapsing.
The influence of images is often stronger than the influence of
events,
as the film of Pollock painting is more influential than Pollock’s
paintings.

But as it is repeated, the power of an image diminishes,
producing anxiety and a symbolic reinvestment.
The image may then be assigned value where there is none.
Can an image be heroic?

No,
but an image may proclaim its distance from the event it ostensibly
depicts;
that is, it may declare itself its own event,
and thereby ban all further investment.

The critic watches the image of the towers collapsing.
She remembers less and less about the towers collapsing
each time she watches the image of the towers collapsing.

The critic feels guilty viewing the image like a work of art,
but guilt here stems from an error of cognition,
as the critic fails to distinguish between an event
and the event of the event’s image.

The image of the towers collapsing is a work of art
and, like all works of art, may be rejected
for soiling that which it ostensibly depicts. As a general rule,
is a representation of the towers collapsing
may be repeated, it is unrealistic.

 

FORMALISM IS THE BELIEF that the eye does violence to the object it apprehends.
All formalisms are therefore sad.
A negative formalism acknowledges the violence intrinsic to its method.
Formalism is therefore a practice, not an essence.

For example, a syllogism subjected to a system of substitutions
allows us to apprehend the experience of logic
at logic’s expense.

Negative formalisms catalyze an experience of structure.
The experience of structure is sad,
but, by revealing the contingency of content,
if authorizes hope.

This is the role of the artwork – to authorize hope,
but the very condition of possibility for this hope is the impossibility of its fulfillment.
The value of hope is that it has no use value.
Hope is the saddest of formalisms.

The critic’s gaze is a polemic without object
and only seeks a surface
upon which to unfold its own internal contradictions.
Conditions permitting, a drawing might then be significant,
but only as a function of her search for significance.

It is not that the significance is mere appearance.
The significance is real but impermanent.
Indeed, the mere appearance of significance is significant.
We call it politics.

 

*Ben Lerner nasceu em 1979, no Kansas, Estados Unidos. É autor de The Lichtenberg Figures (2004), Angle of Yaw (2006), Mean Free Path (2010), Leaving Atocha Station (2011) e 10:04 (2014). Os poemas traduzidos foram retirados do livro Angle of Yaw, uma mescla de reflexão filosófica sobre a comercialização do espaço público, prosa sobre o valor da arte contemporânea, sequências líricas e poesia experimental.

 

** Ellen Maria Martins de Vasconcellos é mestranda em literatura hispano-americana na Universidade de São Paulo. Investiga narrativas contemporâneas e suas relações com as imagens televisivas. Publicou poemas em antologias, tais como Ávida Espingarda (2009), Aos pés das letras – Antologia podólatra da literatura brasileira (2010) e Anamorfoses (2014), e em revistas literárias, como Mallarmargens.