O passeio – Veronica Stigger

O passeio

Veronica Stigger

 

Para Eduardo e os demais envolvidos

 

Os três meninos iam no banco de trás da caravan azul bebê. O mais velho estava sentado no meio, separando os outros dois que, por vezes, sem qualquer motivo aparente, se pegavam a tapa até que seus narizes sangravam. Era o único que tinha o cabelo castanho escuro, grosso e liso, como o dos chineses, que gostava de imitar comendo arroz com pauzinho, ou como o dos índios do Alto Xingu, que ele conheceria mais de três décadas depois. Ia fazer oito anos dali a alguns meses. Por isso, considerava-se responsável pelo irmão e pelo primo, os loirinhos da família, cerca de três anos mais jovens do que ele. Quem dirigia era o tio, sozinho no banco da frente. Iam pela avenida Beira-Mar a sessenta quilômetros por hora ouvindo Marvin Gaye no toca-fitas. Naquela época do ano, as ruas estavam praticamente desertas. Eram poucos os que ficavam na praia na semana posterior ao Carnaval, quando o calor arrefecia e começava a soprar uma brisa no final da tarde. Nenhum deles usava cinto de segurança: ainda não se sabia o que era ter medo. Quando o tio aumentava o som até quase estourar as caixas, os meninos se botavam a rir e a gritar de alegria: este era o sinal de que iriam acelerar. Já era a oitenta quilômetros por hora e cantando pneu que o carro saía da Beira-Mar, dobrava numa clareira entre as dunas e ganhava a areia fina e dura da praia. Os três meninos gargalhavam, caindo uns por sobre os outros. O tio chegava a colocar mais de cem quilômetros por hora na caravan. O vento que inundava o carro atuava como um alucinógeno nos pequenos corpos dos guris. Eles riam ainda mais como se, agindo assim, fossem capazes de expandir aquele instante ao infinito. O tio dava então um repentino cavalinho de pau e eles se jogavam uns por cima dos outros exagerando o efeito da inércia. Era depois disso que se botavam a cantar o refrão da música escrita em língua estrangeira, inventando palavras sem sentido em substituição àquelas que ainda não entendiam e que falavam que nunca haveria uma montanha alta o bastante, um vale profundo o bastante e um rio selvagem o bastante que pudesse separá-los.