Os Dois Abismos da Alma – The Two abyss of the soul, Costica Bradatan – Tradução Bruno Garcia

Os Dois Abismos da Alma . The Two abyss of the soul, de Costica Bradatan[*]

Tradução Bruno Garcia**

 

Para Ion Ianoşi, com quem aprendi a amar a Rússia.

 

Quando a Rússia amputou a Crimeia da Ucrânia, no início de 2014, o fez de forma hábil, rápida como um golpe, mas a dor não foi apenas local. Ela foi sentida imediatamente em todo Leste Europeu, de Varsóvia a Bucareste, de Vilnius a Riga. Na verdade, essa dor trouxe de volta à memória feridas mais velhas e maiores, que muitos pensavam ter esquecido. O urso russo, um vizinho agressivo e expansionista, sempre que teve a oportunidade não hesitou em engolir, no todo ou em parte, os países vizinhos menores. Não é de admirar que hoje eles percebam a Rússia como nada mais do que um reino de destruição. Joseph Conrad, que experimentou em primeira mão a insaciável fome por território do império russo, em sua Polônia natal, considerava-o abertamente como um império do nada. Em “Autocracia e Guerra” (1905), por exemplo, ele escreveu que, desde o começo da Rússia, “a destruição brutal da dignidade, da verdade, da retidão, de tudo o que é leal à natureza humana tornou-se a condição imperativa de sua existência”. Sob a sombra opressiva da autocracia russa “nada poderia nascer”. Cerca de oito décadas mais tarde, em “A tragédia da Europa Central” (1984), Milan Kundera levantaria o mesmo ponto: quando os russos trouxeram o totalitarismo para esse pais “eles fizeram tudo possível para destruir a cultura tcheca”. De fato, para ele, “a civilização totalitária russa é a negação radical do ocidente moderno”.

A decisão repentina de Vladimir Putin de começar a partilha da Ucrânia deve ter lembrado aos europeus orientais não apenas o tradicional expansionismo russo, mas algo ainda pior. Pois estão vivos na memória coletiva do Leste Europeu os episódios de brutalidade russa, tão ferozes, tão horríveis que não têm nada a ver com a política, nem mesmo com sua variedade mais cínica. Não importa como você olhe para eles, mesmo dentro de uma lógica de repressão, esses atos simplesmente não fazem sentido; eles são demasiado extremos para servir a qualquer função punitiva ou preventiva – ou qualquer outro propósito racional.

Dois desses episódios se destacam. Um ocorreu na Ucrânia soviética, entre 1932 e 1933, quando as autoridades organizaram e planejaram uma fome de enormes proporções. Em um livro recente, “Terras de Sangue”, o historiador Timothy Snyder, da Universidade de Yale, estima que cerca de 3,3 milhões de pessoas morreram. (Cerca de três milhões eram de etnia ucraniana, o resto eram russos, poloneses, alemães e judeus.) Como isso foi feito? Em primeiro lugar, quando os camponeses não conseguiram atingir as quotas excessivamente altas de grãos fixadas por Moscou, todos os seus alimentos foram confiscados. “As autoridades fizeram buscas por esses grãos como se estivessem à procura de bombas e metralhadoras”, escreve Vasily Grossman, cujo livro, “Tudo Passa, oferece um dos relatos mais sensíveis da fome ucraniana. Tudo que era comestível foi tomado por ativistas do partido e oficiais da OGPU (a polícia secreta soviética). Todo seu depósito de sementes foi apreendido; mesmo refeições prontas e servidas na mesa foram recolhidas.

Uma vez que isso foi feito, as pessoas foram deixadas para morrer a mais lenta das mortes: “A aldeia foi abandonada – com todos morrendo de fome em suas cabanas. (…) E todos os funcionários da cidade pararam de vir”. Para garantir que ninguém escapasse, barreiras foram montadas pela OGPU, e as estações ferroviárias fechadas por soldados armados. Através do Partido e dos canais da OGPU, Stalin foi mantido informado sobre o que estava acontecendo. Na sua ingenuidade, alguns membros do partido ucraniano até escreveram-lhe uma carta perguntando: “como podemos construir a economia socialista quando estamos todos condenados à morte pela fome?” Mas Stalin viu a fome como um truque usado por “nacionalistas ucranianos” para minar a economia soviética e exigir mais exportações de alimentos por parte de Moscou. “É imperativo exportar imediatamente e sem falhas”, disse ele.

“A Morte pela fome” é uma morte degradante. Você não apenas morre – antes de morrer, você regride para o estado animal. Quando não encontravam cães e gatos, as pessoas se voltavam para camundongos e ratos. Quando não havia absolutamente nada para comer, eles começaram a comer uns aos outros. Os oficiais locais da OGPU relataram com precisão clínica: “as famílias matam seus membros mais fracos, geralmente crianças, e usam sua carne para comer”. As autoridades condenaram pessoas por canibalismo, mas não fizeram nada para impedir a fome. Só abandonaram a guarnição quando nada mais se movia. Grossman descreve o fim da fome em uma aldeia:

 

Não havia lamentos, ninguém ficou a chorar. Descobri mais tarde que as tropas foram enviadas para colher o trigo de inverno – mas não lhes foi permitido entrar na aldeia morta. […]. Disseram-lhes que houve uma epidemia. Eles permaneceram reclamando, entretanto, do terrível cheiro da aldeia.

 

Em todo o leste da Ucrânia, onde a maior parte disso aconteceu, colonos foram trazidos (de etnia russa, para substituir os ucranianos mortos), mas não importa o quão duro lavaram e esfregaram essas paredes, o cheiro da morte simplesmente não desapareceu. Por que essas pessoas morreram de fome? Em certo sentido, a única resposta é: porque sim.

O outro episódio ocorreu em 1940, quando cerca de 21.892 prisioneiros poloneses (pelos cálculos de Snyder) foram assassinados na Floresta de Katyn, perto da cidade russa de Smolensk, pelo NKVD (a nova sigla da polícia secreta soviética). O massacre foi aprovado pelo Politburo da União Soviética, cujos membros estavam todos no bolso de Stalin. Na época, a Polônia era um país gravemente ferido, dividido entre a Alemanha nazista e a Rússia soviética. Muitas vítimas eram oficiais de carreira do derrotado exército polonês, outros eram reservistas recrutados que representavam a elite científica, cultural e política da Polônia. Alguns deles escolheram entregar-se ao exército soviético para evitar a captura pelos nazistas. Eles nunca foram acusados ​​ou julgados por nada; certamente não esperavam ser executados. Quando eles foram levados para serem executados, celebraram – pensaram que estavam sendo libertados. Os assassinatos foram realizados individualmente: dois oficiais do NKVD segurariam a vítima pelas mãos, enquanto um terceiro atiraria, por trás, na cabeça. Uma vítima de cada vez, cerca de 21.892 vezes. Por que mataram prisioneiros desarmados e indefesos assim? Porque sim.

“Porque sim” – isso é o que define esses episódios. Eles são extremamente brutais, gratuitos e incompreensíveis. Parecem emergir de algum canto escuro da natureza humana: não importa quão intensamente nós a examinemos, não somos capazes de entender.

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No final de Os Irmãos Karamázov”, quando o promotor Ipolit Kirílovitch defende a condenação de Dmitri Karamázov, ele traz a imagem de dois abismos entre os quais o réu, segundo ele, é capturado. Um deles é o “abismo debaixo de nós, um abismo da mais baixa e mais ignóbil degradação”, enquanto o outro é “o abismo acima de nós, o abismo dos sublimes ideais”. “Dois abismos, senhores”, diz o promotor, “simultaneamente – senão […] não estamos satisfeitos, falta alguma coisa à nossa existência”.

Esta imagem dos dois abismos interligados pode representar bem a imagem da própria Rússia. O mais baixo e o mais elevado, o mais desprezível e o mais nobre, profanação e santidade, completo cinismo e o idealismo alado, todos se encontram aqui. Andrei Tarkovski tem uma extraordinária habilidade para articular essa síntese de opostos em uma visão mística – a maioria de seus filmes leva o espectador das profundezas de um mundo escuro e corrompido todo o caminho até um reino de esplendores e uma visão de beatitude. Em “Andrei Rublev”, isso acontece literalmente quando, no final do filme, você é conduzido de um “vale de lágrimas” em preto e branco, tudo é lama e sangue, para a contemplação serena das imagens divinas de Rublev, todas em cor. Quem vê de fora pode ter dificuldade em entender, mas, para a sensibilidade russa, essa transição é um movimento natural. Não há ruptura aqui, apenas o tráfego normal entre os dois abismos da alma.

Uma vez que os dois abismos não podem ser desarticulados, assim com o abismo de Katyn e da fome ucraniana, os europeus do leste também conhecem intimamente o outro: o abismo de “ideais sublimes” – da literatura russa, da música, do cinema, e do pensamento religioso. Stalin marcou o Leste Europeu para sempre, mas também o fizeram Dostoiévski, Shostakovitch, Tarkovski e Shestov. Historicamente, a Rússia causou muito sofrimento na região, mas também moldou as mentes das pessoas e afetou seu modo de ser no mundo. A proximidade cultural da Rússia traduziu para os europeus do leste um repertório expandido de sentimentos, sensibilidades e estados de existência. A longo prazo, a situação sem dúvida enriqueceu – filosófica e existencialmente – as diferentes culturas da região.

Essa pode ser uma revanche irônica da história, algum programa de reparação por conta da guerra perpétua. Com uma mão, a Rússia dá bofetadas, com a outra, dá presentes. Krzysztof Kieślowski, para dar um exemplo, sentiu a intensidade de ambos. Como muitos poloneses, ressentiu-se e se queixou do papel negativo que a Rússia tem na história do seu país. Ao mesmo tempo, entretanto, foi influenciado pelo cinema de Andrei Tarkovski e foi capaz de entender os filmes dele precisamente porque vinha de um lugar culturalmente sobre influencia russa. Kieślowski podia não falar russo, mas partilhava da mesma linguagem existencial de Tarkovski.

Certamente a Rússia também teve sua própria parcela de Katyn no século 20: sob Stalin, milhões de vidas russas foram destruídas em prisões políticas e campos de trabalho sem motivo. Alguns dos que voltaram escreveram sobre o que passaram, o que deu origem a um dos mais caracteristicamente russo dos gêneros literários: “a literatura gulag”. O que esses escritores enfrentaram na Sibéria foi algo relativamente novo na experiência humana (os campos de Stalin eram uma inspiração para Hitler). No Gulag, os seres humanos foram levados ao nível zero de sua existência, e foi um privilegio para esses autores articular a visão da condição humana vista de um ângulo tão particular, um privilégio pelo qual tiveram que pagar muito caro.

Varlam Chalámov, que passou cerca  de 17 anos nos campos, escreve em seus “Contos de Kolimá”: “Com trinta anos, compreendi o que significava quase morrer de fome e lutar literalmente por um pedaço de pão”. A tarefa a qual se propôs a fazer, junto de outros escritores no Gulag, é precisamente demarcar estas áreas cinzentas onde a humanidade dissolve-se em desumanidade. O trabalho é monumental porque você não apenas precisa viver no inferno com alguma dignidade, mas também tem que escrever sobre ele com um certo grau de compaixão, o que nas circunstâncias é quase impossível. “Todas as emoções humanas”, diz Chalámov, “o amor, a amizade, a inveja, a preocupação pelo próximo, a compaixão, o anseio pela fama, a honestidade”, todas “nos deixaram com a carne que se derretia de nossos corpos durante nossos longos jejuns”. O campo foi um “grande teste sobre nossa força moral, sobre nossa moralidade cotidiana, e 99% de nós fracassamos”. Esses lugares “não permitem homens continuarem homens; não foi para isso que esses campos foram criados”.

Pode muito bem ser que, porque os europeus do leste conhecem o abismo da Rússia, da “degradação mais abjeta e mais suja”, tão intimamente é que eles estão em uma boa posição para olhar em seu abismo “de elevados ideais”. Tendo sobrevivido aos tanques russos, ou à polícia secreta, ou à lavagem cerebral, você se encontra em uma situação ideal para compreender os grandes nomes das letras russas. Isso pode explicar por que Varlam Chalámov, Alexander Soljenítsin, Eugenia Ginzburg e outros autores da literatura do campo estejam entre os escritores russos mais bem recebidos no Leste Europeu. Eles descrevem estados do ser e situações limite que os europeus do leste também conheceram. Estes últimos também estiveram lá, fosse como vítimas ou apenas vicariamente. Herta Müller pode nunca ter sido prisioneira em um Gulag, mas escreve como se tivesse sido. Em “O Anjo da Fome”, ela se identifica com os moradores do campo tão completamente que seu romance parece sair direto da Sibéria. “Nunca fui tão resolutamente contra a morte como nos cinco anos no campo”, diz o herói narrador do livro. “Para combater a morte, você não precisa de muita vida, apenas uma que ainda não esteja terminada”. Isso poderia muito bem ter sido dito por Chalámov.

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Há obras de literatura que transcendem a estética, a história literária, o artesanato, e nos dão acesso a algo mais profundo e com mais consequências. Esses trabalhos não são mais sobre seus autores individuais: através deles algo importante sobre a psiquê coletiva é captado e expresso. “Dom Quixote” é uma dessas obras. Miguel de Unamuno achava que a novela de Cervantes não era nada menos do que a autobiografia da Espanha. Thomas Mann desejava que seu “Doutor Fausto” fosse lido no mesmo espírito. Ele esperava que, escrevendo esse livro, descobrisse o que exatamente – na história, cultura e filosofia da Alemanha – poderia ter dado vida a algo tão monstruoso como o nazismo. “Os Irmãos Karamázov”, também deve ser considerado uma obra desse tipo. É difícil não se sentir obrigado – especialmente para alguém do Leste Europeu, que tem sua parte dentro do legado dos dois abismos da alma russa – a observar no romance de Dostoiévski por respostas sobre a história russa e sua presença no mundo.

Muito do que está acontecendo no romance é altamente simbólico, cada um dos irmãos representa uma faceta diferente da Rússia. Em um ponto, Aliócha Karamázov diz sobre seu irmão, Ivan: “Há um pensamento grande e não resolvido nele. Ele é um daqueles que não precisam de milhões, mas precisam resolver seu pensamento”. Ivan defende a filosofia russa – não estão os filósofos russos quase sempre em busca de “resolver seus pensamentos”? Se você lê Chaadayev, Soloviov, Rozanov, Berdiaev, ou Shestov, é possível sentir uma tensão insuportável, um drama mal contido em seu pensamento. A arrogância do pensamento de Ivan, a audácia de sua rebelião, a intensidade com que ele faz as “perguntas amaldiçoadas” – elas não são apenas suas, mas também da filosofia russa em seus melhores momentos. Com sua “Lenda do Grande Inquisidor”, Ivan Karamázov marcou a filosofia, na Rússia e em outros lugares, como nenhum outro personagem fictício, com exceção de Sócrates de Platão.

E não seria Aliócha, ele próprio, representante da espiritualidade russa? A teologia da beleza e da personificação, o misticismo da terra, a função espiritual da humildade e da loucura sagrada – eles pertencem tanto a Aliócha quanto as grandes figuras religiosas russas, de Liev Tolstói a Pavel Florensky a Andrei Tarkovski. Aliócha tem uma função “angelical” no romance, sempre carregando mensagens, sempre se apressando para ir a algum lugar, aproximando as pessoas, tentando conciliar os opostos. Além disso, temos acesso às ideias teológicas do Padre Zosima através de Aliócha: ele dá a Zosima uma “voz”, e os dois personagens se fundem no final, mestre e discípulo, se tornando apenas um.

Dmitri Karamázov é o rosto da Rússia comum. O promotor que o envia para a Sibéria diz isso. “Ela está aqui, nossa querida mãe Rússia, podemos cheirá-la, podemos ouvi-la!” Como russos, “somos amantes do iluminismo e de Schiller, e ao mesmo tempo nos enfurecemos em tabernas”, diz ele, “uma mistura de bem e mal”. Dmitri é impulsivo, mas nobre; ingênuo, mas também pronto para se sacrificar. Ele age estupidamente, mas sempre de forma generosa. Está pronto para matar seu pai por dinheiro, mas nunca é mesquinho. Frequentemente fica bêbado de poesia e álcool, e é incapaz de separar as duas formas de embriaguez. Ele termina mal visto, como sempre acontece com a Rússia.

O ponto alto da leitura simbólica de “Os Irmãos Karamázov”, no entanto, é o lacaio Smierdiákov. Para muitos leitores isso pode parecer surpreendente: no romance, ele é o personagem mais enigmático. Não podemos realmente “ler” Smierdiákov. Talvez ele seja o filho bastardo de Fiódor Pávlovitch (portanto, um dos irmãos Karamázov); ele é discreto, indescritível, escorregadio, sempre escondido, sempre agindo maliciosamente. O mais notável nele é justamente ser tão imperceptível.  E, no entanto, por trás da mascara do anonimato, há algo assustador: uma compulsão em fazer o mal pelo próprio mal. Quando Smierdiákov é apresentado, descobrimos que “quando criança, gostava de enforcar gatos e depois enterrá-los com uma cerimônia”. Por que ele matava gatos? Porque sim. A medida que cresce, ele melhora cada vez mais nessa forma de mal gratuito. Agora um adulto, Smierdiákov ensina as crianças do bairro um certo truque: “pegue um pedaço de pão, (…) coloque um prego dentro dele e jogue para um cachorro de rua, o tipo que está tão com fome que engolirá sem mastigar, e depois assista o que acontece”. Por que torturar os cachorros? Por que não? Aos poucos, Smierdiákov desenvolve isso como um comportamento sistemático e coerente. Ele mata Fiódor Pávlovitch sem qualquer motivo óbvio. Ele planeja o assassinato até o último detalhe e o comete a sangue frio, mas não sabemos o porquê. Ela mata porque sim.

Smierdiákovismo é uma obscura mas enorme força que corre por toda história russa. Seu princípio básico é formulado de forma sucinta pelo próprio lacaio: “O povo russo precisa apanhar”. Por que? Porque sim.  Smierdiákovismo se mostra mais claramente na forma de líderes e instituições que governam apenas pelo terror; repressão pela própria repressão. Seu impacto é esmagador, sua memória traumática e efeitos sociais são sempre paralisantes. Joseph Conrad vê “algo desumano”, “de outro mundo” nessas instituições smierdiákovicas. O governo da Rússia czarista, confiando em uma polícia secreta onipresente e onipotente, e “arrogando para si o supremo poder de atormentar e matar os corpos de seus súditos como um flagelo enviado por Deus, foi muito cruel com aqueles que viveram sob sua sombra.” E isso foi apenas o começo.

Foi Stalin quem trouxe o Smierdiákovismo à perfeição. Sob seu governo, Smierdiákov matou de fome milhões de camponeses ucranianos e assassinou dezenas de milhares de prisioneiros poloneses. Na Sibéria, ele construiu uma vasta rede de campos e prisões, onde uma parte significativa da população russa foi transformada em mão de obra escrava. Tudo isso sem nenhum motivo em particular. Apenas, porque sim. Em O Arquipélago Gulag, Alexander Soljenítsin documenta tudo em aterrorizantes detalhes. O Grande Terror que Stalin orquestrou e pôs em prática com a ajuda da NKVD no final da década de 1930 é talvez o exemplo mais eloquente de Smierdiákovismo na Rússia do século XX. Sem qualquer vestígio de justificativa racional, as elites artísticas, científicas, políticas e militares do país foram dizimadas em poucos anos. Alguns dos melhores escritores, cientistas, engenheiros e generais receberem uma bala na cabeça. Entre eles estava Pavel Florensky (1882-1937), filósofo, teólogo, matemático, físico – uma das maiores mentes que a Rússia já teve, frequentemente chamado de “Da Vinci russo”. O mesmo aconteceu com Osip Mandelstam (1891-1938), um dos seus melhores poetas. Mas talvez não devamos nos surpreender com o fato de Stalin matar poetas, afinal Smierdiákov nunca gostou de poesia. “O verso é um absurdo”, “quem no mundo fala em rimas?”, reclama. “Verso não é bom”.

Por mais fascinante que sejam as perspectivas filosóficas abertas por “Os Irmãos Karamázov”, seu autor é ainda mais intrigante. Dostoiévski é um caso complicado. Como artista criativo, é extremamente perspicaz. Ele nos deu acesso a regiões da alma humana que poucos ousaram antes, ou mesmo depois dele. Ele é ousado, visionário e estranhamente profético. Como romancista, Dostoiévski é um demiurgo generoso: cada um de seus romances surge como um universo próprio, um mundo polifônico onde os personagens têm voz própria, independente do seu autor. Mesmo assim, como jornalista, Dostoiévski pode ser embaraçoso. Tinha a mente obtusa, muitas vezes medíocre e paroquial, quando não era abertamente xenófobo e antissemita. Este Dostoiévski, o nacionalista, o inválido eslavófilo para quem a Rússia era um “país de Deuses” com algum direito natural sobre os demais – provavelmente teria aprovado os esforços de Putin para salvar a Ucrânia das patas do ocidente impiedoso. Desde que morreu, Dostoiévski não deixou de fornecer ideias ao establishment político da Rússia, uma mais fantasiosa do que a outra.

Não devemos, contudo, ficar surpresos. O mesmo vale para “Os Irmãos Karamázov”. Ao longo do romance, Ivan brinca com a ideia de que “se Deus não existe, então tudo é permitido”. Ele diz isso de forma pouco cuidadosa em uma conversa que pode ser pega e utilizada por qualquer idiota. Então, um dia, Smierdiákov diz para ele que a usou para matar seu pai. O assassinato “foi feito da forma mais natural, senhor, de acordo com suas mesmas palavras”, diz o lacaio, mal contendo, suponho, risos irônicos. Smierdiákov, está, naturalmente, mentindo, ele matou Fiódor Pávlovitch porque sim – mas é sincero ao caçoar da ideia de Ivan. Caçoar de ideias filosóficas é outra faceta da Rússia.

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Os porta vozes de Putin estão sempre prontos para associar suas políticas à uma linha de pensamento eslavófilo que corre profundamente na Rússia e que remete diretamente a Dostoiévski. Na verdade, Putin é muitas vezes visto na presença de clérigos ortodoxos e ascendendo velas em meio à gente simples da Rússia. As câmeras estão sempre à mão para capturar sua visita à igreja, registrar quando está caçando tigres, passeando a cavalo, salvando pássaros, alimentando renas, pescando sem camisa, dirigindo um tanque ou pilotando caças. Putin deve estar rindo como um louco da eslavofilia de Dostoiévski, assim como Smierdiákov ria da filosofia de Ivan. Putin se importa com as ideias (eslavófilas ou não) tanto quanto com os tigres que mata.

Ele pode ser um político, um pensador, caçador, pescador, jogador de hóquei ou piloto de caça – ele pode ser qualquer coisa que queira porque não é nada em particular. “Ele é um excelente imitador”, escreve Anna Politkovskaya. “Ele é hábil em usar a roupa de outras pessoas, e muitos são convencidos por essa performance”. Jornalistas perceberam quão difícil é “ler” Putin já que ele é sempre tão escorregadio. No entanto, para qualquer leitor sério de “Os Irmãos Karamázov”, trata-se de algo familiar. A falta de um aspecto em particular pode ser uma particularidade em si, essa é uma das indicações de que você está na presença de Smierdiákov.

Putin também é Smierdiákov. A instituição que o criou (a KGB) é uma das instituições mais smierdiákovianas já concebidas. Sua defesa implacável da União Soviética e suas tentativas de revivê-la, sua reciclagem da máquina de propaganda estalinista, o silenciamento dos movimentos de direitos humanos por toda Rússia, a forma como ele aniquila seus oponentes – são todos sinais de que o Smierdiákovismo ganhou nova vida na Rússia de hoje. O mais significativo, entretanto, é a recente vivissecção da Ucrânia feita por Putin; a assinatura de Smierdiákov. Um exército de “pequenos homens verdes” sem rosto, sem nome e sem insígnias, como ladrões que entram na calada da noite no país e, antes que alguém os perceba, tomam para si um pedaço de terra. Uma vez que fazem tudo na espreita, e suas operações se parecem mais com organizações mafiosas do que militares, muitos comparam o exército de Putin à uma gangue de bandidos. Não se trata disso: os “pequenos homens verdes” não são bandidos, mas smierdiákoves em ação. Não há nada falso neles, seu modus operandi é 100% lacaio.

Certamente Vladimir Vladimirovich Putin não é Josef Vissarionovich Stalin. Ambos são smierdiákovianos, mas, por sua própria natureza, o Smierdiákovismo é multidimensional, complexo. No caso de Stalin, isso se manifesta nos seus atos justificados pelo “porque sim”, enquanto, em Putin, no seu modo de operação anônimo e covarde. Mas isso é pouco para consolar o Leste Europeu traumatizado por séculos pelo seu vizinho mais forte, sempre errático e sempre bêbado. Para esses países, o perigo não vem necessariamente de Putin ou Stalin, mas do Smierdiákovismo atemporal do qual, tais figuras são apenas formas temporárias de incorporação.

Politicamente, a tragédia do Leste Europeu vem do fato de que sua segurança depende, em última instância, do que acontece na Rússia. Aqui, a legitimidade política não é produzida através de práticas democráticas comuns, mas de crises fabricadas, domesticamente e, principalmente, no exterior. Putin já organizou a farsa de eleições livres várias vezes, se divertiu muito, mas deve estar cansado disso. Ao mesmo tempo, ele sabe que, para se manter no poder, não pode depender apenas das fotografias e ações de publicidade. Tendo caçoado da democracia, Putin chegou a um ponto em que apenas inventar conflitos e países invasores poderia trazer o que, na Rússia, se passa por legitimidade política. Isso é verdade para o Smierdiákov que governa o país agora, tanto quanto para aqueles que governarão no futuro.

O Leste Europeu, então, está preso. Preso indefinidamente não apenas pela perigosa proximidade geográfica, mas entre os dois abismos da alma russa.

[*] Professor de Humanidades no Honors College da Texas Tech University, Lubbock, TX,  Estados USA – costica.bradatan@ttu.edu

** Mestre em Estudos Europeus pela Masarykova Univerzita, Brno, República Tcheca, e doutorando em História Social da Cultura na PUC-Rio.