Análise poética de passagens do livro “Minha vida na arte”, de Constantin Stanislavski – Fellipe Cosme de Oliveira

Análise poética de passagens do livro Minha vida na arte, de Constantin Stanislavski

 

Fellipe Cosme de Oliveira *

Constantin Stanislavski (1863-1938)

UM

O que é a arte e a sua ética e moral? Perguntas confusas diante de um espelho introspectivo e subjetivo. As perguntas são repetidas dentro de um palco, no centro do palco, e lá no centro do palco, existe uma pequena bacia com água. Ali, nessa bacia, abaixo-me, e olho-me no espelho da água. Estou aqui, diante de mim mesmo, não existe plateia nesse momento, apenas a leitura óbvia, talvez não tão óbvia de meus olhos castanhos. Aqui nos meus olhos eu enxergo um pouco de minha família, um pouco dos meus primeiros escritos, aos 12 anos, num pedaço pequeno de papel verde.

Nos meus olhos, estão, como talvez estiveram para Stanislavski, a minha infância, a minha necessidade de estar em contato comigo mesmo, através de pequenas lembranças. A arte consiste em quê, numa ilusão de não saber o seu exato sentido. A arte não é feita para ter sentido dessa forma, eu creio que arte nos mostra quem somos de verdade, lá bem fundo.

É claro que confundimos arte com técnica de se expressar, mas eu vejo a arte além da técnica, é como se a técnica estivesse dentro do campo de intersecção da arte, que é maior, como é maior o contexto da música ou da poesia, para quem cria obras nesses âmbitos.

Para o ator, estar em contato com outros, além de si mesmo, faz com que descubra em si “substância criativa” para o seu corpo/mente. O ator precisa conhecer as pessoas, escuta-las, vê-las, senti-las, tocá-las, lembrar delas, chorar com elas, chorar por elas, chorar diante delas – e sorrir também ao lado e com elas, porque o ator está no âmbito de cada individuo, de cada criança ou jovem ou idoso.

O ator transforma-se no ator de se expressar através da arte. O seu corpo é modificado pela arte, as células do ator estão em constante transmutação, devido a interação continua e inerente do ator com o seu espelho – o público.

Muitos, como Stanislavski, começam as suas pequenas carreiras na arte dramática, através de pequenos projetos e de pequenas idéias – como, por exemplo, montar um circo, ou fazer teatro de bonecos (de custo menor), ou montar pequenos grupos de trabalho, para apresentar a plateias nas ruas. Esses pequenos trabalhos iniciais dão ao “praticante” as noções básicas de profissionalismo na arte, e também fazem com que quem não está apto ao meio desista de estar conectado ao teatro, por exemplo.

DOIS

A cópia de trejeitos de outros atores pode ser comparada a escritores iniciantes que querem aprender um estilo de soneto, por exemplo, e elaboram algo parecido com Shakespeare, sem saber de todas as técnicas usadas pelo Poeta. Então, os iniciantes apenas copiam o que conseguem ver na obra, sem estar atentos a outros campos mais profundos.

TRÊS

Um artista não sabe ver facilmente os próprios erros, assim como um péssimo cozinheiro não sabe se sua comida é ruim, apenas provando dela, ao cozinhar. O ator precisa estar em cena, para públicos diferentes, de outros locais, outras idades, em contextos diferentes.

QUATRO

A falta de dinheiro percorre a arte: João era comerciante, tinha medo de perder o emprego, de vender roupas, mas, à noite, estava vestido de palhaço nas ruas do centro de São Paulo, para demonstrar um pouco de si. De dia, novamente, estava fazendo contabilidade de sua pequena loja. De noite, novamente palhaço. De dia, novamente vendedor. Nessa transição diária, sua alma o confundia e, eventualmente, ele surtava, e quebrava algo dentro de casa, até que um dia, ele decidiu quebrar a sua loja.

CINCO

Onde estão os mestres na arte de interpretar? Inconsciente de que podia apreciar a minha vontade inata de estar em cena, acreditei numa pessoa, que se dizia o meu diretor, o meu espelho, alguém que sabia de mim, e que buscava a confiança mútua, recíproca. Fui sentar-me no cubo situado no centro da sala. Ele, o diretor, e também meu professor de arte dramática, pediu-me que eu fizesse uma pequena cena. Eu não acreditaria que em poucos meses eu estaria apresentando num pequeno palco. A troca de confiança entre discípulo e mestre fez-se presente em cada minuto das aulas e das oficinas. Em cada conversa, em cada dúvida angustiante sobre a vida, algo era transmitido e saboreado pelos sentidos e pela consciência. Eu cresci, não somente por acreditar em meu mestre, mas por ter acreditado em mim. Ele conseguiu ver detalhes de crescimento, e acreditou nessa troca recíproca. Poucos professores podem ter esse conceito de mestre. Outros professores apenas passam pela vida do discípulo como o vento passa, sem tantos detalhes. Talvez, reside aí um pouco da ética no trabalho do ator, se pensarmos na ótica de quem assiste ao ator, que cuida dele, como filho.

SEIS

Saber dominar-se: é preciso conhecer-se dentro do palco. “Os olhos. Onde estão os olhos? Os olhos que ninguém vê. Os olhos, onde estão? Onde estão os olhos que não enxergam os olhos, onde estão os olhos que não são vistos? Eu olho, eu aceito, eu olho, inverto, eu olho, eu não vejo – ver, ouvir, tocar, lembrar, esquecer – olhos, onde estão os olhos que já não são olhos, que já não têm luz, os olhos.Onde estão os olhos que se fecham na noite, que se fecham no dia, que não enxergam os próprios olhos.” (F.C.)

Os olhos meticulosamente observam os cantos da sala, e através dos olhos se vê a vida dentro do palco. É preciso estar atento, não somente com os olhos, mas com os demais sentidos. É precisar, além de saber respirar, de escutar a respiração dos outros. É preciso sentir o cheiro da raiva, da agonia, do medo e do amor. É preciso prever uma lágrima, e é preciso ver a lágrima caindo na hora certa. O teatro se faz no momento em que ocorre, não somente feito em partituras. É preciso se desprender do passado, do futuro, e dos moldes estabelecidos.

SETE

Agora eu tenho as respostas que não tinha. Todas as palavras se encaixaram em um único momento, e as dúvidas estão aqui, embaralhadas, mas tudo está límpido. Eu posso ver, mesmo de olhos fechados. A essência das coisas está além do vidro, além das janelas, além dos grandes vitrais sagrados, mas tudo está muito claro. Eu não preciso mais dessas canetas, desse papel, desse sistema, a luz está fora da matéria densa. A luz concentra-se no vazio, no silencioso vazio, e esse vazio não está contido na essência dos que se olham. Esses que se olham atravessam as estradas confusos como pardais, que tentam ser camaleões, mas com pele de elefante. Minhas simbologias continuam as mesmas de há 10 anos, mas elas se fazem necessárias em momentos como esse, que necessito dizer-me o que está contido dentro das paredes brancas. Quando tudo está distante, busco-te, mestre, porque tu me sabes, tu me observas, quando tudo desmora, quando tudo se planifica e se rasga. Tu tens a chave da essência que me abre, me corta, me fere, e renova-me em água translúcida. Reciprocidade de mim para mim mesmo. Os deuses gregos perdem seus valores, porque a época atual já não mais necessita de mitologias. Os mitos hoje se esvaziam com as tempestades. A tragédia hoje é o vazio inconsequente. O vazio de hoje tem mais morte que a escuridão de um dia em guerra. Londres hoje e ontem, Jerusalém hoje e ontem, Roma hoje e ontem – as cidades se modificam, mas as pessoas continuam rastejando na busca de seus ideais – que ideáis buscam? Tranco-me numa jaula, torno-me animal, só assim nessa clausura entendo-me, e renovo-me, e produzo sentenças, que se renovarão em palco. Preciso de ti, mestre, porque ela não mais me fala palavras de afeto. Agora eu tenho as respostas que não tinha. Todas as palavras se encaixaram em um único momento, e repito a mesma equação dos versos, para que o sentido se repita. Tudo está claro, tudo está precisamente claro.

OITO

O teatro renasce, assim, como as células, que morrem para outras nascerem. Eu entendo um pouco da ética que se faz na construção de uma ideia. É preciso acreditar na ideia, no contexto dela, na razão dela de existir. Eu preciso acreditar no que estará sendo exibido no final do processo, antes de querer trilhar os primeiros passos de uma personagem. Se eu, no entanto, não acredito na ideia, e devo desistir da imoralidade de querer estar em contato com algo que não me pertence. Creio que a verdade resulta na ética. Acreditar no que se faz, cem por cento.

 

*Aluno do curso de Artes Cênicas da UFSC