A tempestade e a minha boca – Pádua Fernandes

A tempestade e a minha boca

Pádua Fernandes

 

Entra em minha boca. A tempestade. No quarto. Eu estava dormindo. Minha cabeça para frente e para trás. Os cabelos. Doem. Para frente e para trás. A tempestade é branca e viscosa. Mamãe sempre diz para ter cuidado com o cabelo. Mamãe pinta o cabelo para não ficar branco. Eu não pinto o cabelo. Não estou velha, não pinto cabelo. Sou novinha, a cabeça para frente e para trás. Os cabelos doem. Mas não são brancos. Eu não sei se ter cabelo branco dói. Mamãe deve se lamentar por causa disso. O branco dói, eu sinto na minha boca. Ela deve estar dormindo, acho que não conseguiria chamar ninguém, mesmo que a boca não estivesse engasgada com a tempestade. Mamãe prefere o sítio porque chove menos do que nas fazendas. E chove mais do que em Brasília. Só papai é obrigado a ficar às vezes em Brasília.

As mãos me largam, respiro e saio correndo. Pulo a janela. Mergulho.

A tempestade entra em minha boca. De novo. As chuvas agora têm gosto de cloro. Eu sei  que não posso beber. Para cima, para baixo. Eu tento subir, mas a tempestade não permite. Papai me ensinou a nadar. É bom ter piscina em casa. Ninguém fica de olho no que é meu, diz ele. E ninguém entra em fazenda dele. Vagabundo morre sem cabeça, papai diz. Não uso mais boia. Agora eu não consigo. Será que esqueci de papai? Lembrar das nuvens. Lembrar da boia. Quando era a água sob o corpo? Meu cabelo está molhado. Mamãe sempre me avisa para secar o cabelo. Se não secar, vou ficar doente. Se eu fico doente, não posso entrar na piscina. Estou dentro d’água, mas não consigo secar o cabelo. A tempestade não me deixa subir. Acho que vou ficar doente.

Estrondo, tudo para, em que lugar.

Eu subo. Lembro como fazer tudo. Agora, respiro. Estou vendo, faz tempo que não vejo nada. O pai com a arma, do lado de fora, e o irmão dele agora como uma boia furada. Vai afundar.

Mas a chuva continua, é vermelha agora. Ela sai do corpo dele, que agora parece mais pesado.

Agora eu quero a tempestade em minha boca.

Provo o gosto dela e grito pela primeira vez nesta madrugada.