Diários de Escritores: Breve resenha do livro homônimo de Myriam Ávila – Fabiane Secches

Diários de Escritores

Breve resenha do livro homônimo de Myriam Ávila

Fabiane Secches*

 

“Diários de Escritores”, de Myriam Ávila

Em Diários de Escritores (ABRE, 2016), a pesquisadora Myriam Ávila, professora de Teoria Literária na Universidade Federal de Minas Gerais, traça um rico panorama sobre o tema, partindo da especificidade dos diários de escritores em relação aos diários íntimos comuns.

Pressupõe-se que um diário íntimo seja escrito para um único leitor — o seu próprio autor. A motivação para manter um diário dessa natureza seria “a necessidade de desabafar, de repassar os acontecimentos do dia de modo a organizá-los na própria memória, fazendo de si mesmo um confidente”. Esse diário é “um amigo que tudo ouve e aceita”, sem contestação, como um monólogo.

Já o diário de escritor seria um caso à parte, porque muitas vezes é pensado como obra para publicação futura. Ou, ao menos, a possibilidade de publicação é levada em conta pelo seu autor. Por isso, sua escrita seria mais medida e planejada, como uma narrativa tramada, romanceada. Nesse sentido, o diário também pode funcionar como um exercício de escrita e como “um depósito de ideias que poderão ser mais tarde usadas em textos ficcionais e poéticos”.

Em Novo Diário, publicado postumamente, Eduardo Frieiro reflete:

“Num diário a gente pode insultar à vontade pessoas, instituições e costumes que se detestam. Por que o não fazemos? Que é que nos inibe? Um resto de censura do próprio foro íntimo, e também o respeito pela opinião alheia, pois o diarista crê que será lido pelos pósteros; caso contrário, não escreveria seu Diário. E se não podemos ser sinceros num Diário íntimo, secreto, como havíamos de o ser por outra forma?”

A partir dessa distinção, Ávila aborda o diário de escritor como um subgênero literário que estaria mais próximo dos diários de viagem do que dos diários íntimos. Os cadernos de escritor “traçariam um trajeto no tempo mais do que sondariam a profundidade do eu”, escreve. A autora também pondera que “querer alcançar a pessoa real por meio de anotações íntimas é, como afirma Freud, impossível e inútil”, mas observa que é fascinante visitar o universo de representações de um escritor enquanto esse cosmos ainda estava se construindo.

No livro, analisa diários de escritores brasileiros como Joaquim Nabuco, Lúcio Cardoso, Lima Barreto e Eduardo Frieiro. Entre os diários internacionais, temos Lewis Carroll, Katherine Mansfield, Virginia Woolf, Thomas Mann e Charles Baudelaire. Ávila faz contrapontos bastante originais, como o cotejo entre os diários de Lima Barreto e de Katherine Mansfield.

Entre os trechos mais memoráveis citados, destaco os de Lima Barreto em seu Diário Íntimo (também publicado postumamente), em que o autor relata situações de discriminação racial, como na passagem a seguir:

“Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. Encontrei Juca Floresta. Fiquei tomando cerveja na barca e saltei.

É triste não ser branco”.

A leitura do diário de Katherine Mansfield também é comovente, em que a associação entre escrita e doença é recorrente. Para Ávila, Mansfield acolhe a doença como sua província pessoal. Se a visão de escrita como doença ou como cura não é em si original, em Mansfield adquire “novas tintas, nova dramaticidade e pungência; perde toda benignidade de que se reveste em outros diários literários”:

“… Quando se é pequeno e doente e se está exilado em um quarto distante, tudo o que o acontece para além desse quarto é maravilhoso…”

Ávila observa que a doença para Mansfield seria uma marca distintiva, parte de sua identidade. “Talvez esteja morta e ande a fingir que estou viva. Seja como for, não há em mim o menor indício de vida”, escreve Mansflied.

Quanto aos critérios para a escolha dos diários a serem analisados, Myriam diz que a seleção foi pautada por afinidades eletivas, mas também ressalta a importância do acaso, “esse grande amigo dos cientistas e dos teóricos”. Entre os diários brasileiros, a autora conta que trabalhou com aqueles cujos autores têm um peso que considera decisivo na configuração da literatura brasileira moderna.

Nesse sentido, Eduardo Frieiro seria uma exceção. Argumenta que sua “posição infeliz no cânone é a condição de possibilidade de uma clarividência rara com relação ao campo literário nacional”. Já entre os diários estrangeiros, Ávila quis privilegiar aqueles menos explorados pela crítica.

Diários de Escritores vem preencher uma lacuna bibliográfica no Brasil, pois são raros os estudos que abordam o tema com fôlego. O livro perpassa questões muito caras à teoria literária, bem como visita grandes dilemas contemporâneos, como: quais seriam os limites entre literatura e história? Em que conjuntura a crítica biográfica poderia ser defendida e utilizada? Há distinção entre texto autobiográfico e memorialista?

Para Ávila, a coincidência, em português, entre a palavra memória e o gênero literário memórias pode confundir o leitor. A autora também reforça a ideia de que, nos diários, o escritor lida com o mesmo material com que trabalha em suas obra: as palavras. Para ela, seria impossível dissociar totalmente uma coisa da outra.

 

* Psicanalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.