Mallarmé e o Teatro: rápidos comentários sobre uma relação importante — Sandra M. Stroparo
Mallarmé e o Teatro: rápidos comentários sobre uma relação importante
Sandra M. Stroparo *
O teatro sempre foi importante para Mallarmé. Contemporâneo de Wagner, ouvia as aspirações de seu amigo Villiers de L’Isle Adam de criar um teatro “total”. Shakespeare foi uma de suas primeiras grandes referências literárias e Hamlet, a peça e o personagem, atravessa toda sua obra, sendo um dos fundamentos icônicos em Igitur e em Un coup de dés.
Ele próprio escreveu vários textos dramáticos — e dramatizáveis. Hérodiade, poema narrativo e dramático, foi escrito e reescrito durante toda sua vida. L’après-midi d’un faune, poema originalmente publicado com ilustrações de Manet, tornou-se no século XX uma peça de balé com música de Debussy e coreografia de Nijinski, numa montagem definitivamente clássica.
O poema do fauno foi iniciado em 1865, enquanto ele cuidava de sua Hérodiade, já do ano anterior. Em carta desse ano, ao amigo Cazalis, ele fala de ambos os textos:
Deixei Hérodiade para os invernos cruéis: essa obra solitária me tinha esterilizado e, no intervalo, rimo um intermédio heroico, cujo heroi é um Fauno.
Esse poema comporta uma grande e muito bela ideia, mas os versos são terrivelmente difíceis de fazer, porque o estou construindo absolutamente cênico, não “possível para o teatro”, mas “exigindo o teatro”. E entretanto, quero conservar toda a poesia de minhas obras líricas, meu próprio verso, que adapto ao drama. Quando vieres, acho que ficarás feliz: a ideia da última cena me faz soluçar, a concepção é vasta e o verso, muito trabalhado. Não conto mais nada, e só falei disso para me livrar. Digo ainda que espero apresentá-lo ao Teatro Francês.[1]
Em outro momento, no ano seguinte, o poeta volta a falar de Hérodiade a Cazalis:
Tenho então três meses para te contar, em grandes linhas; é assustador, todavia! Passei-os aferrado a Hérodiade, minha lâmpada o sabe! Escrevi a abertura musical, ainda quase em estado de esboço, mas posso dizer sem presunção que ela será de um efeito inaudito, e que a cena dramática que conheces[2] é perto desses versos apenas uma imagem vulgar de Épinal[3] comparada a uma tela de Leonardo da Vinci. Serão necessários ainda três ou quatro invernos para terminar essa obra, mas terei enfim feito o que sonho ser um Poema, — digno de Poe e que os seus não ultrapassarão.
Para te falar com essa segurança, eu que sou a vítima eterna do Desencorajamento, é preciso que entreveja verdadeiros esplendores!
A empolgação de Mallarmé com esses textos vai se manter por toda vida, apesar de apenas o “Fauno” ter sido de fato terminado… Mas seu interesse por teatro não diminuirá e a partir de 1871, quando retorna finalmente a Paris, depois de alguns anos dando aulas em liceus no interior da França, Mallarmé vai passar a frequentar constantemente as poltronas dos teatros e rapidamente traduzir esses eventos em resenhas, notícias e artigos.
O melhor conjunto desses textos é “Crayonné au théatre”, capítulo de Divagations[4] , mas há ainda resenhas de circunstância e notícias e impressões sobre peças, os “Gossips”, crônicas sobre a vida artística parisiense que ele escreveu para um jornal londrino, o Athenaeum: esses textos foram reunidos na segunda edição de sua obra completa. Em oito números da revista La dernière mode, totalmente escrita por ele, pequenas resenhas e notícias sobre peças teatrais também ganharam o espaço de “serviço”.
O que é especialmente interessante de se perceber é como Mallarmé absorve a produção artística fin-de-siècle em suas apresentações de palco: a variedade de peças, pantomimas, balés, apresentações solo (como as de Loïe Fuller e seus véus), óperas a que Mallarmé assiste é absorvida por ele sem preconceitos ou discernimentos prévios, sendo que, de um modo geral, tem-se a impressão de que o Mallarmé espectador e crítico teatral não apenas está aberto às novidades, como não parece fazer questão de defender certos estatutos antigos — os do teatro clássico, por exemplo, ou da dança clássica — para avaliar as apresentações a que assiste.
Um exemplo disso são suas observações sobre Loïe Fuller, a dançarina que fazia coreografias com véus fantásticos. Na tradução de Fernando Scheibe:
O exercício, como invenção, sem o emprego, comporta uma embriaguês de arte e, simultânea, uma realização industrial.
Ao banho terrível dos tecidos se pasma, radiosa, fria, a figurante […], a vertigem de uma alma como que colocada no ar por um artifício.
Dom com ingenuidade e certeza feito pelo estrangeiro fantasma ao Balé ou a forma teatral de poesia por excelência: reconhecê-lo, inteiro, em suas consequências, tarde, graças ao recuo.
Sempre uma banalidade flutua entre o espetáculo dançado e você.
A proibição de que esse deslumbramento satisfaça uma pensativa delicadeza como a atinge, por exemplo, o prazer encontrado na leitura dos versos, acusa a negligência de meios sutis inclusos no arcano da Dança. Alguma estética restaurada ultrapassará com notas ao lado, em que, ao menos, denuncio, de um ponto de vista próximo, um erro ordinário na encenação…[5]
Mallarmé continua e afirma que apenas a dança de Fuller e os sons produzidos por seus panos — asas, crepes, saias — são suficientes para o encantamento… O cenário conspurca, a emoção se põe apenas entre a bailarina, seus panos e seu público, num outro nível de empatia cênica. Como na poesia, Mallarmé, avant la lettre, perscruta a vanguarda, a relação e o envolvimento do espectador com a apresentação e mais especificamente, a possibilidade da performance.
Fica claro, no entanto, o quanto são sutis e fugazes, para o autor, as possibilidades da Cena, se aproximadas da Poesia, arte maior. As artes devem possibilitar a “pensativa delicadeza” e se uma delas não o faz em uma medida equivalente ao que, ele defende, alcançam os versos, não pode ser tão considerada.
Contemporaneamente, a crítica de teatro de Mallarmé é vista como uma antecipação de duas vozes importantes do século XX: Brecht e Artaud. São os seus “padrões de exigência” que acabam por definir o teatro, em suas crônicas, como uma forma concomitante de “entretenimento público e uma abertura para a verdade metafísica,”[6] e apesar de algumas contradições em suas avaliações — algumas vezes é especialmente o texto que valoriza, desconsiderando a importância do cenário e, no limite, da representação, por vezes é do oposto que trata[7] — sua crítica é bastante respeitada e considerada para o estudo do teatro moderno: “A cena é o foco irradiador evidente dos prazeres tidos em comum, também e tudo bem refletido, a majestosa abertura sobre o mistério de que estamos no mundo para vislumbrar a grandeza…”[8]
Considerando, portanto, a importância do teatro para o autor, não parecem supérfluas duas cartinhas escritas para Émile Zola, onde, do pedido de entradas à defesa da obra e comentários gerais sobre arte brota um belo retrato de época onde as particularidades de Mallarmé, que serão responsáveis por muitas das características modernas, se revelam: o amor à cultura popular e sua permeabilidade, o interesse pelas artes gráficas e pela publicidade, a atividade crítica do artista e da imprensa…
Quarta-feira, 4 de novembro [de 1874].
Meu querido confrade,
Ausente de Paris durante alguns dias, não aplaudi, ontem à noite, Les héritiers de Rabourdin: lamentação e quase remorso.
O senhor poderia ter a bondade (o Serviço de meu jornal[9] ainda não foi acertado com o teatro de Cluny) de me dar uma entrada, ou duas se possível, amanhã, quinta?
Um aperto de mão em que coloco toda minha simpatia,
Stéphane Mallarmé
6 de novembro de 1874.
Caro Senhor,
Vi sua farsa amarga; e agradeço de todo meu coração por ter, por toda uma noite, me feito rir o único riso que nos seja permitido, simples e complicado ao mesmo tempo.
A imprensa até agora (falo desses dois ou três últimos dias) deu provas de uma irreflexão absoluta. Qual! uma iluminura popular: sim, mas não também o gosto dos delicados? Quanto a mim, que admiro um cartaz[10], desenhado e dolorido como mais de um, como um teto ou uma apoteose, não conheço nenhum ponto de vista em arte que seja inferior a um outro; e aprecio tudo como convém.[11] Que nosso amigo Manet pinte a tela de apresentação do espetáculo, que faria um enquadramento excelente para os Héritiers: toda a imprensa iria aplaudi-los e descobri-los ali. Por que ela não abstraiu o teatro de Cluny; onde se leva esse texto, ligado à verdadeira tradição francesa!
Até mais então e obrigado; até mais porque desejo lhe dizer um dia quanto admiro, mas absolutamente, esta obra magistral, a Conquête de Plassans.[12]
Cordialmente seu,
Stéphane Mallarmé
E no volume de número seis de La Dernière Mode, Mallarmé finalmente dá o “serviço” da peça de Zola:
“Que tentação verdadeiramente irresistível acrescentar a esse mal-entendido que parece se estabelecer entre o público e o admirável romancista, autor da peça, o Senhor Zola, nossa humilde opinião (ao contrário de uma parte da grande imprensa que tudo exagerou, podendo tudo dissipar). Uma obra dessa importância exige um comentário onde poderia estar no Jornal e sua capa: porque vê-se que com ela a questão do Candidat, de Flaubert, no Vaudeville, na última temporada, recomeça para talvez jamais terminar.”[13]
Referências bibliográficas
MALLARMÉ, Stéphane. Correspondance. 11 vol. Paris: Gallimard, 1959 – 1985.
____. Divagações. Florianópolis: Editora UFSC, 2010. Trad. Fernando Scheibe.
____. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 2003. 2 vol.
SHAW, Mary Lewis. Performance in the texts of Mallarmé: the passage from art to ritual. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 1993.
[1] O que ele de fato fez, mas o texto foi recusado. Théodore de Banville foi responsável pelo parecer juntamente com Coquelin. Mallarmé comenta em uma carta a Aubanel: “Os versos de meu Fauno agradaram infinitamente, mas de Banville e Coquelin não encontraram ali a anedota necessária que o público pede e afirmaram que ele só interessaria aos poetas.” Carta de 16 de outubro de 1865. As traduções são minhas, exceto quando indicado.
[2] Cazalis já havia lido uma primeira versão.
[3] Pequena cidade histórica francesa, comumente tema de gravuras.
[4] Em tradução de Fernando Scheibe, pela Editora da UFSC: Divagações, 2010.
[5] Mallarmé, 2010, pp. 125-126.
[6] Shaw, 1993, p. 69.
[7] Ver MALLARMÉ, 2010, pp. 133-134.
[8] Idem, p.132.
[9] La dernière mode.
[11] Essa afirmação é frequentemente lidacomo uma mostra da independência de pensamento de Mallarmé, em contradição mesmo com seus fiéis
[12] Quarto romance da série dos Rougon-Macquart, publicado naquele mesmo ano.