Ficção e Teatro de Samuel Beckett: Procedimentos Comuns – Ana Helena Souza
Florianópolis, 06 de junho de 2011
FICÇÃO E TEATRO DE SAMUEL BECKETT: PROCEDIMENTOS COMUNS
Por Ana Helena Souza*
A primeira recepção mais ampla do trabalho de Samuel Beckett se deveu ao sucesso da peça “Esperando Godot”, que estreou num pequeno teatro de Paris em 5 de janeiro de 1953, suscitando polêmica e atraindo atenção. Os romances “Molloy”, “Malone Morre” e “O Inominável” já haviam sido todos publicados e também passaram a ter uma maior recepção crítica. Com esses textos, todos escritos em francês, Samuel Beckett se firmou como ficcionista e dramaturgo, fazendo mais tarde incursões no rádio, na televisão e no cinema.
Mais conhecido como dramaturgo, Beckett, no entanto, fez declarações que ressaltavam a importância de seu trabalho em prosa, ao mesmo tempo em que diminuiam a de sua obra teatral. Costumava dizer que recorria ao teatro como uma maneira de se afastar da tensão e dos problemas enfrentados ao escrever prosa ficcional, considerando-a seu “trabalho importante”. As relações entre as duas formas de expressão, porém, vão-se interpenetrando cada vez mais, e é possível – como tentarei fazer agora – encontrar procedimentos criativos comuns a uma ficção e uma peça. Tais procedimentos não se limitam a temas e características das personagens, embora essas semelhanças sejam logo notadas. Englobam toda a área mais específica de tratamento dos recursos disponíveis no meio de expressão escolhido: a prosa ou o teatro.
Tratarei aqui do texto “Mal vu mal dit/Ill Seen Ill Said” e da peça “Rockaby/Berceuse”, ambos escritos e traduzidos pelo autor entre 1979 e 1981. Vale a pena incluir uma palavra sobre o procedimento de autotradução que Beckett, a essa altura, já incorporara completamente ao seu processo criativo. Desde os anos 50, o escritor assumira a tradução de suas próprias obras, fossem elas escritas primeiro em francês ou em inglês. Pouco a pouco, a prática da autotradução vai sendo incorporada à própria criação. É famoso o caso do romance “Company/Compagnie”, escrito em 1977-79, cujo “original” inglês foi modificado a partir da “tradução” francesa. Portanto, não deixa de ser interessante notar que a composição primeira da prosa “Mal vu mal” dit foi em francês, mas a da peça, “Rockaby”, foi em inglês, aproximando-a assim da tradução daquela prosa: “Ill Seen Ill Said”.
Tanto o romance quanto a peça tratam de mulheres à espera da morte. A solidão é um tema marcante em ambos. Mas há muitas diferenças e variações. “Ill Seen Ill Said” é um texto complexo, cuja estrutura apenas resumirei aqui, a fim de identificar os traços de composição que o ligam à peça. A personagem que o narrador se esforça em apresentar é uma velha solitária. Mora numa cabana, cuja mobília se resume a uma cadeira, uma cama, uma arca e poucos objetos menores. Os campos que cercam a casa parecem pertencer a um cemitério que se vai cobrindo de túmulos. O passeio da mulher consiste em ir e voltar de um deles. Há doze enigmáticas figuras que a observam sempre a distância.
O texto se configura através do narrador que vai, aos poucos, se aproximando dessa personagem e desse, por assim dizer, cenário. Desde o início, ele a imagina/vê e estimula-se a continuar: “From where she lies she sees Venus rise. On. From where she lies when the skies are clear she sees Venus rise followed by the sun. Then she rails at the source of all life. On. At evening when the skies are clear she savours its star’s revenge. At the other window.” (“De onde ela se deita vê Vênus levantar-se. Adiante. De onde ela se deita quando o céu está claro vê Vênus levantar-se seguida pelo sol. Então ralha com a fonte de toda a vida. Adiante. Ao entardecer quando o céu está claro ela saboreia a vingança da estrela. Na outra janela.”) Assim prossegue o narrador, em blocos maiores ou menores de texto que correspondem a algo visto, “mal visto”, e do mesmo modo dito, “mal dito”. A dificuldade da tarefa muitas vezes o leva às raias da desistência: “Already all confusion. Things and imaginings. As of always. Confusion amounting to nothing. Despite precautions. If only she could be pure figment. Unalloyed. This old so dying woman. So dead. In the madhouse of the skull and nowhere else.” (p.58) [“Tudo já uma confusão. Coisas e conjecturas. Como desde sempre. Confusão levando a nada. Apesar das precauções. Se pelo menos ela pudesse ser fingimento puro. Sem mistura. Esta velha tão moribunda mulher. Tão morta. No manicômio do crânio e em nenhum outro lugar.”]
Por volta da metade do texto, vem quase a desistência total: “Such – such fiasco that folly takes a hand. Such bits and scraps. Seen no matter how and said as seen. (…) Not another word.” [“Tal – tal o fiasco que a loucura dá uma mão. Tais bocados e sobras. Vistos não importa como e ditos como vistos. (…) Nem uma outra palavra.”] Mas o narrador se recompõe no bloco seguinte: “Panic past pass on.” (p.66) [“Passado o pânico passar adiante.”].
Em “Mal visto mal dito”, Beckett lida, entre outras coisas, com a impotência do narrador em dominar seu material narrativo. A história vai-se delineando pouco a pouco. O controle do narrador sobre sua personagem, desde a percepção do lugar em que habita até a de seus traços fisionômicos, é bastante limitado. Citei acima o trecho em que ele quase desiste de sua tarefa, deseja que a personagem seja “fingimento puro”, mas há uma confusão entre “Coisas e conjecturas.” A mistura de fingimento (fantasia/ficção) e realidade/memória se apresenta aqui na impossibilidade de o narrador perceber claramente a imagem que persegue – e pela qual é perseguido – e, conseqüentemente, transmiti- la com clareza.
Na peça “Rockaby”, que é bastante curta, vemos uma mulher em cena, precocemente envelhecida, sentada numa cadeira de balanço, com um vestido preto de festa. O balanço da cadeira é lento e mecanicamente controlado. A mulher não se move, seus olhos estão ora fechados, ora abertos. Quando abertos, fixos, sem piscar. Quando a peça começa, a cadeira está imóvel. A mulher emite uma única palavra “More” e o balanço começa ao mesmo tempo que se ouve uma voz vinda de um gravador, a contar, pouco a pouco, a história de como ela chegou até ali, naquela situação em que nos é apresentada. São quatro segmentos narrativos que vão formando, através de repetições e acréscimos, a história daquela personagem. Todos os segmentos são iniciados pela voz da mulher pedindo “Mais”. Alguns trechos da fala gravada são ditos em uníssono pela mulher no palco, designada por W. O primeiro trecho fala sobre a decisão de W de interromper sua busca, no mundo exterior, por alguém como ela: “till in the end/the day came/in the end came/close of a long day/ when she said/ to herself/whom else/ time she stopped/ time she stopped/ going to and fro/ all eyes/all sides/ high and low/ for another/ another like herself/another creature like herself” O segundo trecho, retoma a decisão de parar sua busca no mundo lá fora, reiterando-a através de uma frase que não estava no primeiro segmento e que indica que ela se recolheu ao “fim de um longo dia”: “so in the end/close of a long day/ went back in/ in the end went back in” (p.276). Assim, marca-se o fim de uma fase e começa a narrativa do início de outra, em que W continua sua busca, mas agora já dentro de casa, sentada à janela do andar superior. Na terceira parte, W passa a buscar tão somente outra janela aberta, que pudesse indicar a presença de outra “creature like herself”, até decidir abandonar também essa fase: “till the day came/ in the end came/ close of a long day/ when she said/ to herself/ whom else/ time she stopped/ time she stopped/ sitting at her window/ quiet at her window/ only window/ facing other windows/ other only windows” (p. 279). Finalmente, na quarta parte, ela toma a decisão de descer, fechar as persianas e sentar-se na velha cadeira de balanço, na qual sua mãe, louca diziam, sentara-se e balançara-se, vestida com sua melhor roupa, até morrer: “so in the end/ close of a long day/ went down/let down the blind and down/ right down/into the old rocker/ and rocked/ rocked/ saying to herself/ no/ done with that/ the rocker/ those arms at last/ saying to the rocker/ rock her off/ stop her eyes/ fuck life/ stop her eyes/ rock her off/ rock her off” (p.281-2). Aqui termina a peça, com a cadeira parando de balançar – o ritmo do balanço já havia diminuído gradativamente – e as luzes se apagando.
É importante mencionar, depois dessas citações, que Rockaby já foi classificada como uma peça-poema, devido aos recursos poéticos que emprega e ao seu ritmo, que marca o balanço da cadeira e que, como fica claro na tradução do título para o francês (Berceuse), nina W para sua loucura/morte. (A expressão “go off one’s rocker” quer dizer entrar num estado de extrema confusão ou de insanidade.) Billie Whitelaw, atriz preferida de Beckett, representava o final de modo a não deixar dúvidas quanto à morte de W. Todavia, o texto deixa ambígua a conclusão, e o “More” no começo de cada segmento sugere a recorrência da narrativa, a intervalos.
A separação entre narrador e personagem, em “Rockaby”, se dá através da voz gravada. Mesmo que a voz pertença a W – algo que não é especificado – a presença da atriz no palco, falando apenas algumas frases, consuma a distância entre ela e a voz que narra. Mesmo que estejamos ouvindo o que se passa em sua consciência, a voz de W destaca-se dela como o balanço da cadeira acontece independentemente de qualquer impulso seu. Por outro lado, a voz se submete a W; é sempre ao seu comando que recomeça a narrativa. Mas, no final, fica a questão: é a voz ou W quem dá o fim e, portanto, investe de sentido a narrativa? W comanda a voz para chegar à sua morte/fim ou a voz a leva ao fim através da finalização da narrativa? Nesta pequena peça de Beckett, concentra-se toda uma preocupação do autor – longamente trabalhada em sua prosa ficcional – com o poder de controle da instância narrativa, ao lado do questionamento da autoridade do narrador.
Em “Rockaby”, a impossibilidade de W se livrar da história de sua mãe, balançando-se louca, em seu vestido de festa, até a morte, encena a falta de recursos da personagem, seja através da desistência da procura de um outro semelhante a ela, seja através da escolha de repetição do modelo materno. A aproximação com o narrador de “Ill Seen Ill Said” chega ao ápice na passagem citada, que corresponde ao meio da narrativa, na qual a impossibilidade de visualizar/narrar com clareza o leva ao pânico e quase à desistência. O recurso a um narrador sem domínio de seu material, bem como o recurso à voz duplicada (por meio de uma gravação ou de outra forma) é um dos procedimentos preferidos dos últimos textos e peças de Beckett.
Na verdade, desde os três primeiros romances escritos em francês, ainda que com narradores-protagonistas, Beckett introduzira a problemática de vozes que o narrador não controla. No teatro, ele só vai conseguir esta separação de forma mais cabal, a partir da peça televisiva “Eh Joe (1965), na qual se apresenta pela primeira vez a divisão entre a imagem física da personagem e a voz do que se passa em sua consciência, e o monólogo é definitivamente abandonado. Segundo Gontarski, “A forma do monólogo abarcava a ideologia de uma presença concreta, um ser único coerente (ou um ego unificado ou, em termos literários, um personagem unificado), uma idéia com a qual Beckett se sentia cada vez mais desconfortável […]” É interessante notar que datam da mesma época da peça “Eh Joe” prosas curtas de Beckett que abandonam o recurso a um narrador-protagonista e passam a desenvolver um tipo de narrador limitado ao que vê, em geral, no “manicômio do crânio”, como o narrador de “Mal visto mal dito”.
Uma última palavra, aqui sobre diferenças, sobre o movimento inverso dos textos abordados. Enquanto W, em “Rockaby”, anseia por ver e ser vista por um semelhante (e a ironia está em que, na altura de sua desistência os olhos de toda a platéia convergem para ela), a velha de “Mal visto mal dito”, furta-se todo o tempo ao olhar do narrador e ignora qualquer companhia. O narrador, por sua vez, consegue se libertar da visão que o atormenta: “And what if the eye could not? No more tear itself away from the remains of trace. Of what was never. Quick say it suddenly can and farewell say say farewell.” (p. 86) [“E se o olho não puder? Não mais arrancar-se dos restos de rastro. Do que nunca foi. Depressa dizer que de repente ele pode e adeus dizer dizer adeus.”]
Em “Mal visto mal dito”, depois de assumir o fracasso do olho em traçar seu objeto e da narrativa em fixá-lo, o narrador abandona-se ao vazio: “No. One moment more. One last. Grace to breathe that void. Know happiness.”(p.8) [“Não. Mais um momento. Um último. Graça para respirar esse vácuo. Conhecer a felicidade.”] O final da peça, por sua vez, concentra toda a amargura de W: “rock her off/ stop her eyes/ fuck life/ stop her eyes/ rock her off/ rock her off”.
Por mais irônico que pareça, é o reconhecimento do fracasso e da falta de controle de seu material que permite ao narrador de Mal visto mal dito terminar livre, “conhecer a felicidade”, enquanto W fica presa à repetição de seu drama, ao controlar a repetição de sua narrativa.
*Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, com estágio recém-doutor na UFMG, autora de “A tradução como um outro original: Como é de Samuel Beckett (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006). De Samuel Beckett, traduziu os romances “Como é” (São Paulo: Iluminuras, 2003), “Molloy” (São Paulo: Globo, 2007) e “O Inominável” (São Paulo: Globo, 2009).