A escrita de Gonçalo M. Tavares: teatro, colher e boca — Júlia Studart

A escrita de Gonçalo M. Tavares: teatro, colher e boca

Júlia Studart*

Gonçalo Tavares

O livro de Gonçalo M. Tavares intitulado A Colher de Samuel Beckett e outros textos [publicado em 2002, e ainda inédito no Brasil] é o único que compõe a sua série chamada “Teatro”. Temos aí, nesse texto, um diálogo quase direto com o trabalho do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett [que, por sua vez, aparece como um futuro morador de outra série de Gonçalo M. Tavares, intitulada “O Bairro”. Beckett é, ao mesmo tempo, um potencial vizinho de Robert Musil e de Ludwig Wittgenstein, e de forma interessante um verbete ausente do livro Biblioteca de Tavares que supostamente origina a série “O Bairro” e que foi publicado em 2004]. O livro se organiza em pequenos textos quase como se fosse composto por uma reunião de peças anotadas, uma espécie de “dramatículos” – tão ao gosto do autor de Esperando Godot [1952], Fim de partida [1957], Improviso de Ohio [1981] entre outros textos profundamente radicais no gesto de esgarçar a linguagem, como a sua trilogia Molloy [1951], Mallone Morre [1951] e O inominável [1953]. Os textos que compõem esse livro de Gonçalo M. Tavares se intitulam “A colher de Samuel Beckett”, “Alguns dólares sobre teatro e outras notas menores”, “Escada zero”, “Resposta a duas perguntas” e “Debaixo da cidade”, e são quase todos divididos em fragmentos numerados.

A ideia essencial do teatro, que está sugerida em théa/ver, aparece não só com a indicação de que ler é ver, mas também fazendo uso de que o teatro é uma vinculação dos interesses do projeto de escrita de Gonçalo M. Tavares. É possível entendermos aí que todo o seu debate com o espaço, a colisão com o espaço monstruoso da modernidade, que aparece como uma imagem expandida em todo o seu trabalho, está demarcada também nesse pequeno livro. Ao seguirmos, por exemplo, o que diz o dramaturgo francês Valére Novarina – ao pensar o teatro como algo que cava e que nos dá a ver diretamente “nosso corpo mais próximo: a linguagem” [2009, p. 15] porque tem “ossatura e forma cruel” [2009, p. 27], porque nos apresenta o homem “pintado tal como ele é: irrepresentável” [2009, p. 28] e, ainda, porque avisa que “nós levamos o mundo na nossa boca ao falar” [2009, p. 19] e que “o fim da história é sem fala” [2009, p. 13] – temos muito próximo o empenho de Gonçalo M. Tavares ao pensar também o teatro por dentro dessa conjunção de questões que o termo e a escrita de uma peça podem lhe atribuir como empenho de construção no seu trabalho.

No primeiro texto que abre o conjunto de dramatículos do livro, intitulado “A colher de Samuel Beckett”, um narrador comenta e inscreve uma imprecisão acerca daquilo que toma como método avariado que se daria na importância da posse de várias hipóteses. Diz ele:

 

Quatro acções. (conta pelos dedos) Beber, olhar, deitar, organizar. Quatro acções possíveis. Podia ser pior. Há quem não tenha quatro acções. Há quem tenha menos. 4. Quatro. Não é mau. (pausa) Aborrecido deve ser quando se tem uma única acção. (pausa) É preciso organizarmo-nos para ter sempre várias acções a fazer. Nunca deixar que fique só uma. Nunca. (pausa) Sempre várias. Hipóteses, é a palavra. É importante ter várias hipóteses. Uma, duas, 3, 4. Uma ou outra ou outra ou outra (…) O importante é o método. Como utilizar o quê. (pausa, sorriso) (…) Não interessam as acções, mas sim como (pausa) [TAVARES, 2002, p. 22-23].

 

Assim, a escrita de Gonçalo M. Tavares parece se compor não apenas num movimento que vai de uma forma a outra, como transformação, mas sim como metamorfose, quando a escrita procura se mover por dentro da forma que adota, no caso, a oscilação entre a ficção e o ensaio, entre ato em si [treino, repetição, método] e o seu como fazer, modo de operar livremente a escrita para a construção de uma “cultura filosófica”, a construção esférica de um pensamento. Ler a escrita de Gonçalo M. Tavares, por exemplo, entre o teatro e a ideia de uma língua que se figura numa colher pronta para escavar o mais fundo da boca, é tocar a imposição do quanto a “nossa fala é um buraco no mundo e nossa boca uma espécie de pedido de ar que cava um vazio – e uma reviravolta na criação” [NOVARINA, 2009, p. 15]. Isto sugere, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade de deslocamento da perspectiva meramente literária, quanto uma tentativa de contato mais direto e mais aberto com algumas outras questões que atravessam os seus livros de uma maneira sistematicamente circular, como algumas coisas que vêm da filosofia e da dança e, neste caso, especificamente, de algo do teatro.

Esse deslocamento se faz necessário porque é o próprio Gonçalo M. Tavares quem defende a idéia de que toda arte deve ser feita a partir de uma resistência, e que a grande resistência do ser humano no mundo agora ainda é pensar, ainda é o pensamento;[1] e que unir literatura e pensamento aberto não é um ato de vanguarda, mas, ao contrário, é apenas uma interessante volta às raízes, uma composição da sobrevivência do pensamento como um traço da afetividade entre os homens. Ele lembra que na antiguidade clássica, por exemplo, poesia e filosofia andavam juntas, elas eram uma mesma coisa, depois é que se separaram, e uni-las numa só outra vez é voltar às raízes. Já aqui, de algum modo, estabelece que lhe interessa uma concepção circular da história, anacrônica, como modo de uso, leitura e escrita do ensaio. E aí, ensaio ganha uma dimensão também aberta, porque tem a ver com o ensaio como um treino constante e repetitivo do corpo sempre articulado pelo duelo moderno de incorporação do pequeno gesto do ator que remete às ações quase imóveis e inimitáveis do teatro , mas também – ao mesmo tempo – de incorporação do falseamento do corpo emprenhado pela cultura ocidental moderna e monstruosa.  

Tanto que um apontamento para ler/ver esta inserção do ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares é, principalmente, tomar o ensaio como ato em si, como ação, movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como o fragmento de uma coreografia, uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que treina, que ensaia. O ensaio seria aquilo que tenta “Treinar a nudez” e “Experimentar a roupa nua” [TAVARES, 2001, p. 40], diz ele. Ou seja, uma série de movimentos e de suspensão de movimentos que devem ser incorporados ao corpo da escrita como o é ao corpo do bailarino através de um hábito nu, de uma rotina nua de trabalho, de treino [exercitar, acostumar, ensaiar etc], até que se saiba apenas o próprio corpo-movimento de cor, incorporado, ou seja, com o coração; e até que o corpo seja pensamento e resistência, corpo-pensamento-resistência, uma intensidade: “O meu Coração, afinal: um órgão!” [TAVARES, 2002, p. 59] Como sugere Alain Badiou, a partir de Nietzsche, quando fundamenta a dança como uma metáfora do pensamento, um corpo-pensamento. Segundo Badiou, ela é exatamente uma intensificação, um pensamento efetivo no lugar, e não exterior a ele, que se intensifica sobre si mesmo ou que representa o movimento de sua própria intensidade [BADIOU, 2002, p. 81].

Gonçalo M. Tavares escreve algo que o vincula muito diretamente a isso, de certa maneira como uma aprendizagem, numa outra parte desse livro intitulada “Resposta a duas perguntas”: a primeira, “A escrita para o teatro” – “Toda a literatura é assunto de letras paradas fazerem ou não as coisas do mundo moverem-se” [TAVARES, 2002, p. 61] – e, a segunda, “As gerações de escritores”, uma arqueologia fragmentária intensiva e desejante entre um sujeito e sua dupla, seu complementador, que diz:

 

Acredito na existência de duas vidas. Não essas de fila indiana, ou de somatório de sobrevivências como as do gato ou do herói. Acredito, sim, que existe a vida por fora, uma, e a vida por dentro, duas. E o único corpo humano vive, assim, duas vezes ao mesmo tempo. Nas acções que faz em tudo que ocorre um milímetro acima da pele; e no que pensa, imagina e sonha, um milímetro abaixo da pele. A pele é a fronteira entre as duas vidas que temos, poderia então dizer-se se gostássemos de dizer as frases assim, como que concluindo. Mas não gostamos.

Falar de gerações exige, então, o breve esclarecimento: trata-se da geração que partilha e acompanha a minha vida de fora ou a minha vida de dentro? É que tendo duas vidas tenho assim também duas possibilidades de me ligar a outras pessoas humanas, supondo aqui que o termo de geração se refere exclusivamente aos bípedes com biblioteca e tecnologia, e não alude aos animais com os seus excrementos ou às plantas insensatas e verdes. Se o cão da vizinha não faz parte da minha geração e a vizinha sim, pois bem, eis um problema que também poderia ser pensado.

Mas o que quero dizer é isto: há pessoas [fiquemos nelas] que pertencem à minha geração, considerando a vida de fora, e pessoas – outras pessoas – que pertencem à minha geração, considerando a vida de dentro. Os meus contemporâneos da vida que existe um milímetro acima da pele são aqueles, então, com quem posso partilhar acções; no limite: o meu contemporâneo desta vida 1, é aquele que eu posso assassinar, com um tiro bem colocado, ou amar – fisicamente falando [com um coração bem colocado, como diria os românticos para manter a simetria da frase, ou com a pele viril e erecta como diriam os de gosto mais simples]. Os meus contemporâneos da vida de dentro, esses, são aqueles cujas ideias ou imaginações se aproximam das minhas ideias ou imaginações. Estes contemporâneos da minha vida 2 podem não ser contemporâneos da minha vida 1 e, neste caso, eu não os posso matar, nem despir ou abraçar – fisicamente falando, sempre. Nesta vida 2, nesta vida de dentro, nesta vida da cabeça interior, Séneca, nascido há dois mil anos, é meu contemporâneo porque as suas cartas também foram escritas para mim, e Aristófanes, Sófocles e Beckett, para falarmos de teatro, são também meus contemporâneos, e ainda Musil com a sua peça Os visionários: meu contemporâneo.

O que quero, então, dizer é isto: quando se fala em gerações de dramaturgos, ou de poetas, ou de romancistas, deverá primeiro pensar-se na geração que é contemporânea na vida 2, na vida de dentro: isto é: os autores que influenciaram a nossa literatura. Claro que os outros contemporâneos, aqueles que conosco podem trocar um olhar breve na rua [podendo ou não ser escritores], esses também são importantes para o que escrevemos. Mas isso já se sabia. Em síntese: pela matemática o sabemos há muito: 2 é melhor que 1, e 3 é melhor do que 2. E quem só pertence a uma geração merece só pertencer a uma geração [TAVARES, 2002, p. 63-64].

 

Temos uma mistura paradoxal e ambivalente nisso que chama de duas vidas e que toma tudo o que se relaciona com intensidade, pensamento, imaginação, sonho: uma vida por dentro e outra vida por fora, uma que ocorre um milímetro acima da pele e a outra que passa logo abaixo da pele. Ele se coloca como sujeito de sua construção literária e, também, como um complementador. E é aí onde está o rascunho do seu projeto que se dirige a estas duplas, estes duos, uma espécie de “seus impossíveis” ao modo de Nietzsche, que vem de uma ideia daquilo que chama de minha geração, que seriam os seus contemporâneos não apenas no tempo, mas na composição de uma biblioteca íntima que passa a habitar um projeto portátil fora do tempo e aderido ao corpo de um bailarino sutil que toma posse de cada um deles e os incorpora milímetros abaixo da pele, tornando-os uma espécie de membrana imperceptível, invisível, uma deglutição: “se pensa em mim, logo sou”, quando um informa ao outro, Sloterdijk diz que

 

El sujeto y su complementador constituyen juntos, en primer lugar, una celda de intimidad sin mundo – o con un mundo próprio –; pero puesto que el sujeto es informado por su doble, y en principio sólo por él, sobre el volumen del ‘mundo’ en una cultura dada, el acceso al exterior depende completamente para el sujeto en formación de las calidades de membrana del otro interior. En tanto vuela en dirección al outro interior, se desarrolla él mismo en su mundo más amplio. La apertura y amplitud del mundo es el regalo del doble como membrana [SLOTERDIJK, 2009, p. 400].    

 

Assim, podemos pensar a importância do teatro no começo da constituição do projeto de escrita de Gonçalo M. Tavares como essa boca aberta a uma colher cortante da língua, numa operação da linguagem que imprime sobre a membrana do homem no seu mais fundo, na sua boca aberta como uma passagem furada: “Nenhum conteúdo. Nascido perfurado e espelho do sem-fundo” [NOVARINA, 2009, p. 24].

 

Referencias bibliográficas

BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

TAVARES, Gonçalo M. A Colher de Samuel Beckett e outros textos. Porto: Campo das Letras, 2002.

______. Livro da dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.

______. O humor e ironia com rigorosa habilidade e disciplina: Entrevista [05 de janeiro de 2010]. Curitiba: Jornal Rascunho.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. [Microsferología] Burbujas. Trad. Isidoro Reguera. Madrid: Ediciones Siruela, 2009.       

NOVARINA, Valére. Diante da palavra. Trad. Ângela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

* poeta e doutora em Teoria Literária pela UFSC/Universidade Nova de Lisboa [bolsista integral CNPq e Capes/2011]. Publicou os livros de ensaios Wittgenstein & Will Eisner – se numa cidade suas formas de vida e Livro Segredo e Infâmia; a plaqueta Marcoaurélio! com a artista visual Milena Travassos, e organizou o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc. Vive no Rio de Janeiro.


[1] Em entrevista para o jornal Rascunho [Curitiba, 05. Jan. 2010], perguntado acerca do uso notório de um pensamento mais reflexivo em sua literatura, algo muito próximo da filosofia, como uma armadilha contra o senso comum, Gonçalo M. Tavares responde que: “Pensar é ainda um dos atos de resistência do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clássica, a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.”