Poemas do indiano E.V.Ramakrishnan – Tradução de Aurora Bernardini
Poemas do indiano E.V.Ramakrishnan
Tradução: Aurora Bernardini
Os termos da visão
Em nossa volta da escola
horas passávamos naquele pomar
abandonado, plantas de mangas, cajus
e tamarindos, onde cada estação
tinha seus frutos e cada fruto seu sabor.
Invadíamos o esconderijo improvisado
dos contrabandistas e quebrávamos seus potes
de barro, enterrados. O crematório na esquina
revelava uma vértebra assada ocasional.
Uma vez fomos além e descobrimos
um poço abandonado . Espreitamos em seu vaporoso fundo:
a água cheirava a álcool recém destilado.
Entre os galhos tramados de densas
sombras flutuavam tartarugas brancas, carapaças metálicas,
vidradas. Movendo-se com monástico donaire, pareciam
sabedoras, como xamãs muito escolados.
Se enfeitiçavam, não era intencional. Ao debruçar-nos,
suas cabeças rapadas se erguiam, encontravam uma haste de
repentino sol num canto e enristavam o sol no mar.
A luz ainda demorava na colina
Íntimo sussurrar de algo proibido.
Nesse momento, os termos da visão
se recompunham:o poço olhava para nós, agora.
Seu olhar rebitado trespassava-nos e se estendia mesmo além .
Na escura córnea desse poço
as tartarugas brancas se moviam feito nervos ópticos expostos.
E como se fora dita uma palavra, nos retraíamos
ao mundo da gravidade, em silêncio.
Página vazia
Olho vigilante a margem do rio.
Estou aqui, diz a noite.
O rio nada diz.
A lua draga o leito do rio.
A sombra de um gigantesco elefante
emerge dos destroços do rio.
Água e silêncio.
Gatos de rua
Não são propriamente uns sem-teto.
São dissidentes que perderam sua fé
em interiores decorados, passeios matutinos ,
bolo e talheres.
Por ter nove vidas a viver
você aprende a não dar o passo além da perna.
Você aprende a alongar seu corpo
em toda a sua longura, e a bocejar para as domésticas ficções.
E é por essa razão
que você figura nos filmes de terror
no momento obrigatório
entre o raio de luz
e a aparição do fantasma.
A luz é azul escura e você vê
A si próprio na íris do olho fogueado.
O terror reside na visão.
O que você vê é alterado pelo ato de ver.
O mistério não termina aqui.
Quem olha por sua vez é alterado por aquilo que vê.
Sabendo d isso, os gatos de rua pulam de teto em teto.
Eles monitoram o mudo da copa das árvores
e se encontram uma vez por semana
no cemitério, como mendigos vagueantes.
E quando eles saem do espelho
do sol e cruzam a rua abarrotada
num clarão, por um momento brilhante,
eles se emboscam na luz como uma gigantesca sombra de dúvida.
Maus presságios para quem
não vê além do que vê.
Figuras que caem
Você que olhar mais para lá do pigmento
da tinta para o ponto onde o familiar desaparece.
O trauma do real não pode ser rastreado além.
Figuras caem pelo arame farpado
de uma linha diagonal: faces ignecentes
com o frenesi dos faquires.
Um rio é ejetado do mapa com guindastes
pilastras, dinamite.
Um bando com bombas de petróleo
move-se fundo nos olhos de um homem
congelado de medo, as mãos juntas.
É assim que o mundo linear se excita em si mesmo.
E é assim que você anseia
pelo roteiro da chuva inclinada sobre as chãs
a lhe dizer a divergência entre uma reza
e um affidavit falso.
O Grande Curador
Subo ao sexto andar , a casa de um amigo.
Dá para o rio.
Enquanto falamos no cômodo em tons baixos
Ouvimos o ron-ron do rio, arranhando a porta.
O rio não vê a hora de entrar, ele me diz.
O rio traduz cada minha
palavra na língua privada das águas.
Vê aqueles vincos das pregas hirtas do rio?
São minhas palavras que o rio escreve em cursivo.
Depois recitou um poema que começa
com a linha: “Um homem de palavras, de acordo com as águas”
O rio deve ter entrado quando eu saí.
A enorme vaga fez um gesto silencioso
como o aperto de mão final de um grande amigo.
Lembro de suas palavras:
O rio é um grande curador.
Dificilmente há algo que ele não compreenda.
Nomear
Toda vez que seu nome é pronunciado
A cerimônia de dar nomes recomeça.
Toda vez que um nome é pronunciado
as vogais fazem um arco no ar,
um aparelho de E.C.G. transpira,
um acusado levanta-se na corte.
Alguém diz “ Sim.”
Seu nome tem o andamento ébrio
das suas tardes e o olhar deslavado
dos quartos alugados onde você dorme.
Os demônios que assombraram seu pai
são postos a repousar no canto de seu nome.
Seu nome viaja a jusante através
dos cantos não escritos da chuva noturna
para uma página em branco de promessas não cumpridas.
Yakshi
Essa é minha hora de crepúsculo.
Chego vivo como um trecho musical.
A fragrância no vento
que é meu alento.
Bem antes de mim veio o rumor
de meu chegar, como o lamento
que uma vez ouviu na vila
e tomou por um canto nupcial.
Você está certo
eu estava no parque
e naquele restaurante, ao mesmo tempo.
Da próxima vez que você me vir na rua
estarei também no livro
que carrega.
e quando for ler o livro
estarei dançando na boate.
Sou um asceta.
Por isso é que consigo sair do espelho.
Sou desprendido.
Por isso eu brilho nessas roupas poliméricas.
Logo você verá faíscas nas plantas beira-estrada.
Sou eu atravessando a cidade.
Não deixarei nenhum traço atrás de mim exceto
seu ansiar por meu retorno.
Poema num cartão postal
Meu caro amigo, não pensava te ofender
quando fiz uso do cartão postal.
Acontece que eu gosto do que me faz sentir.
Eu gosto da garra férrea da tinta preta
no amarelo ofuscado que me lembra
o fuste do bambu saltando
ao vento da monção.
Simples como a folha de palmeira,
aceita o mundo como é, sem se apressar.
Aqui, finalmente, posso renunciar ao mundo
disponível sem descarte
enquanto minhas palavras,qual touceiras
de bambu molhado curvadas sobre a cerca,
deslizam para o silêncio necessário.
A sequência não escrita
Leitor, esta é a história de uma série de eventos
que quis muito relatar:
Uma mãe solteira
dá à luz dois gêmeos:
um menino precoce
que cresce para ser líder de um povo
e outro, mentalmente retardado, dado a andar por aí desnudo.
A mãe sofre pelo
dotado e cuida do obnubilado.
Sua agonia é grande , mas o povoado inteiro a apoia.
O tecelão, o fazendeiro,
o curador, o barbeiro, o pedreiro
e o carpinteiro podiam ser retratados um a um.
Há também um policial
que sai à procura do líder
que se esconde e volta com o irmão ausente.
No final, e este era para ser o clímax,
o líder é morto no que parece ter sido
um encontro forjado.
No enterro
o irmão retardado veste uma camisa
pela primeira vez em sua vida.
Nunca pude completar a sequência.
Talvez o que eu sabia do tecelão,
do fazendeiro, do curador, do barbeiro,
do pedreiro e do carpinteiro não fosse
adequado, ou o que eu sabia do policial
excedesse as precisões do poema.
Nunca pude decidir se eu estava com
o precoce e dotado
ou com o perdido e obnubilado.
A última noite do Pai
Quando levamos o Pai à pira funerária,
passava das duas horas da manhã.
A lua estava alta,
as nuvens esvaneceram quando uma chuva fina
juntou a noite numa rede de náilon.
Apartamos seus fios emaranhados ao irmos
para a pilha de lenha
sobre a qual o corpo foi deitado.
Os rituais foram breves, o jovem preste não era minucioso.
Mais cepos de madeira se empilharam sobre o corpo.
Eu, seu primogênito, dei fogo à pira.
Depois, os aldeões
bêbados e joviais, tomaram conta.
Lembrei de como o Pai, em suas últimas horas
de coma,havia teimado em esperar
um dia inteiro, além do tempo previsto pelos médicos,
por meu regresso.
A chuva fina havia parado.
Olhei as toras de mangueira queimar
qual cânfora, dobrando o corpo
nos vincos de seus anéis tingidos por
anos de sol, de vento e chuva.
O fogo havia acordado as aves do arvoredo.
Adejavam , barulhentas, sobra a pira acesa.
Nada havia de fúnebre no
falatório bêbado do povo que
espertava as chamas, ou nos gritos confusos
das aves procurando o sol
na luz da lua.
Mas, ao meu redor,
o ar estava úmido, e molhada, a terra.