A arte da memória – Aurora Bernardini

A arte da memória

Aurora Bernardini*

 

Arte da memória

A esse título super atraente corresponde o livro The Art of Memory de Frances A.  Yates, professora da University of London, publicado pela University of Chicago Press e pela Routledge and Kegan Paulo Ltd., Londres, em 1966,  que eu li há uns dez anos com o maior interesse, seguido de outras publicações da estudiosa ( Ensayos Reunidos I: Lulio Y Bruno  – Fondo de Cultura Económica –  e uma obra traduzida no Brasil e editada pela editora Pensamento : Giordano Bruno, sempre sobre o tema da conservação da  memória.Isso, sem falar no grande experimentalista inglês  Francis Bacon que tem capítulos inteiros de sua obra dedicados à memória, retratados admiravelmente por Paolo Rossi em  Francis Bacon – da Magia à Ciência ( Eduel , 2006)

No prefácio a The Art of Memory , a especialista  Frances Yates atribui aos gregos os primórdios dessa arte—em seguida transmitida aos romanos –, que tinha como um dos ápices a “ manipulação de imagens”, tanto na Tradição hermética de Giordano Bruno e na Teoria dos elementos de Ramon Lull,  quanto em  L’ Idea del theatro de Giulio Camillo e Robert Fludd – relacionados ao Globe Theatre de Shakespeare –,  e  nos Sistemas de Campanella e de Cícero.

Relendo a The Art of Memory, com o mesmo interesse, constato agora, porém, que ele é por demais excelso como primeiro passo para os estudantes iniciantes que necessitam, se não de fórmulas – em geral demasiado simplificadoras –, com certeza de exemplos de procedimentos para a memorização duradoura das questões que eles mais prezam ou das quais mais  necessitam.

Aqui vão, portanto, como   prontuário, as recomendações, baseadas em minha experiência como estudante e professora   e uma inovação relatada por Joyce D. Brothers e Edward P.F. Eagan, em Como Desenvolver a Memória, de 1957 ( 11ª. edição – editora Record) .

Em primeiro lugar devo dizer que os  procedimentos vão bem mais além que os assim chamados  simplesmente“ macetes” ( exemplo: colocar um saco plástico na cabeça ,  pois parece que o aumento de CO2 favorece a memorização) , mas, em alguns casos, podemos deles  nos valer, com algum sucesso ( ex. não se sentar  em lugares demasiado cômodos para memorizar, para evitar cair inevitavelmente no sono), etc.

 

I -Passemos, então, às recomendações.

O que se requer de quem vai memorizar? Obviamente, motivação e atenção.

Sem motivação acaba-se caindo na “decoreba” para finalidades imediatas, e, uma vez findas essas finalidades, o conteúdo é esquecido.Lembram-se de quantas coisas aprendemos nos cursinhos da vida? Duvido.

Por que se esquece? Esquece-se justamente porque se memoriza sem Repetição com Espaçamento.Veremos, em seguida, do que se trata.

Há pessoas que têm mais memória auditiva, outras, visual. O ideal é apostar nos dois tipos e , ao se ter que memorizar um texto, sintetizar legivelmente por escrito o que se quer memorizar ( fazer listas, SÍNTESES  ou esquemas) e fixar, como numa moldura, o lugar da página onde se encontra a síntese ou a anotação.Para quem tem memória visual, essa moldura é mágica.( Os atores do Globe Theater usavam, em lugar das molduras, colocar cada texto atrás de um quadro, de uma estátua, de um vaso etc.: a cada lugar correspondia uma determinada fala).

Repertir várias vezes em voz alta, com os olhos fechados, mas entre uma repetição e outra, fazer uma pequena pausa ( ou espacejamento). Essa pausa permite que o que se quer aprender penetre mais profundamente na memória, como a água  regando um vaso de flores. Mas não queira aprender coisas demais de uma vez só, evite o transbordamento.

Retornar mentalmente ao texto antes de deitar-se e repetir na manhã seguinte, até não ter mais lacunas. Durante a noite, comprovadamente, o cérebro trabalha a seu favor.

Não ao aprendizado contínuo. O aprendizado contínuo é algo como a decoreba. É você repetir um número ou uma frase uma porção de vezes, sem relacioná-los a nada, contando com a força da inércia também chamada “ eco da memória”. Poderá lembrar o que repetiu apenas durante um pequeno lapso de tempo.

 

II – Vejamos, agora, 10  procedimentos propriamente ditos.

1.      Amarrar as palavras numa historinha. Os testes de memória mais comuns consistem em se receber, um após o outro, uma série de cartões com nomes ou figuras arbitrários que, finda a leitura, deverão ser repetidos, em sequência ou fora dela. Digamos que as palavras sejam: carta, poste, caixa, menina, boneca, carrinho, meias, chapéu pedra, lata, chapéu. Pois bem , aqui vai um exemplo de historinha que você pode ter inventado para nela aconchegar as palavras em sequência:

Alguém recebe uma carta que foi depositada no poste com a caixa do correio; embaixo dela uma menina brinca com a boneca que está no carrinho. A boneca está de meias. O carrinho encosta na pedra e encima da pedra há uma lata que lhe serve de chapéu. A narrativa que envolve as palavras é outro procedimentoque parece milagroso: quem interligar elementos que compõem suas experiências por meio de relações sistemáticas terá uma memória acima do comum, dizia William James.

2.      Colocar a palavra nova numa associação reconhecível  de som e sentido .Este método é o ideal para quem está aprendendo uma língua estrangeira.Tomemos uma palavra em inglês, bem diferente das nossas. “Greetings”, por exemplo. Perguntei à menina a quem estou ensinando o idioma, como vai lembrar que significa “ saudações, augúrios, votos”. A menina pensou e se saiu com essa: -No Halloween as crianças vão às casas pedir doces e cumprimentam ou se despedem  soltando gritinhos. Pronto: gritinhos= greetings.

É importante que cada um estabeleça  associações baseadas em sua própria experiência e imaginação; que não importe associações de outrem, quero dizer. Vou dar um exemplo meu. “Kurít” em russo quer dizer “ fumar”. Como eu vou lembrar? Simples: eu estou querendo me “ curar” do hábito do fumar. Logo, para mim funcionou a associação: kurit/curar.Que associação você procuraria?

3.      Associar uma palavra ou um fato  a um número. Vou me valer aqui, em parte, do procedimento que Joyce D. Brothers e Edward P.F. Eagan chamaram de “ laços mentais”, inovação bem interessante:

Associemos aos números de 1 a 13 os respectivos significados,  escolhidos entre os  mais óbvios :

1.      Eu ( estou sempre em primeiro (1) lugar)

2.      olhos /óculos,(2) pés/sapatos, braços/mangas, mãos/luvas, pernas /calças ( aquilo que , no corpo humano, vem aos pares, com sua roupagem)

3.      Os três (3) porquinhos

4.      Os quatro pés da mesa,(4) as quatro estações

5.      Os dedos da mão (5) ou de uma luva

6.      As faces de um dado (6)

7.      As notas da música (7)

8.      O sinal de infinito; um tipo de biscoito (8)

9.      Os meses da gestação (9)

10.  X em algarismo romano (X -10)

11.  1 e seu duplo (11)

12.  Os meses do ano; o último mês do ano(12)

13.  O número do azar (13)

Agora verifiquemos os compromissos na agenda de  manhã, com os respectivos horários a serem lembrados:2,3,10,12

Aqui vai a agenda:

2h.: dentista

3h: agência de viagens

10 horas: novela

12 h. comprar  série Downton  Abbey, presente de Natal

Como não esquecer o que fazer a cada hora?

Primeiro, inventar qualquer frase mnemônica, tipo: (Mastigo porquinho às dez horas no Natal), que relacione os termos.

Depois, seu destrinchamento:

2. Dois: tudo o que par. Tenho dois maxilares; logo 2, dentista às duas.

3,Três: três porquinhos. Ao viajar, ficamos sujos feito porquinhos; logo 3, viagens às três.

  1. Dez:  o  X da questão é dar um jeito de eu não perder o capítulo de minha novela; logo X, novela.
  2. Doze: eu pedi a série como presente de fim de ano, no Natal; logo 12, Downton  Abbey.

4.      Claro que, novamente, os laços mentais são pessoais, e podem ser estendidos à vontade. Ex. Ligar fatos conhecidos ( ex. alguma data histórica) aos que se quer memorizar. Números de telefone, endereço, números de série etc. Por exemplo, meu amigo Sérgio nasceu em 16 de junho? Como vou lembrar? Ora, ele é apaixonado por Joyce, e o Bloom’s Day se festeja, no mundo todo, no dia 16 de junho.

5.      Transformar o que se quer lembrar em algo extraordinário;

6.      Estabelecer metas, alvos ou objetivos ,  algo que o impele a lembrar: quanto mais você se aproxima da meta proposta, mais sua memória aumenta.

7.      Recompensar-se. Ao conseguir lembrar-se o planejado, conceda-se uma recompensa, uma pausa no estudo e um mínimo entretenimento com algo diferente.  Mas que isso não seja exagerado, longo demais e não vire interferência.

8.      Não se distrair, evitar interferências de assuntos por demais complicados, em suas pausas. Mantenha-se ligado, com seu objetivo em mente. A memória exige atenção.

9.       Visão de conjunto: quando o assunto está claro em sua mente, a memória guarda melhor. Por isso é importante a visão de conjunto, a visão  que você faz do assunto, em sua totalidade, mesmo que dele esteja querendo guardar apenas certas partes.Mas faça que cada parte constitua um todo coerente.

10.   Começo, meio e fim. Foi verificado que se memoriza melhor o que está no início ou no fim de um texto. O meio escapa. Sabendo disso, reforce-o, dispensando a ele maiores esforços.

 

* tradutora, ensaísta, professora da Universidade de São Paulo (USP)