O suicídio das classes médias – Nathalie Quintane – Tradução e nota introdutória de Clarissa Comin

O suicídio das classes médias

Nathalie Quintane

Tradução e nota introdutória de Clarissa Comin*

 

Nathalie Quintane

“Deus rejeita os mornos e é triste isso de não saber-se rico ou pobre”. Com essa referência tragicômica a uma passagem do Apocalipse Nathalie Quintane inicia “O suicídio das classes médias” e apresenta de modo inusitado um grupo social que, apesar de sua apatia, traz consigo uma fragilidade ao mesmo tempo patética e complexa, digna de atenção.

 

Misto de ensaio e ficção, no melhor estilo cáustico-voltairiano, Quintane traça um panorama abrangente das classes médias, – categoria a qual ela mesma admite fazer parte –, desde sua gênese até os dias atuais, deflagrando a insustentabilidade do projeto mal forjado, apontando para sua crise. O texto é um dos nove que compõe o volume Os anos 10 (2014), onde a autora aborda holisticamente política, história, economia e, evidentemente, literatura, como vemos no hilário  último capítulo, “Por que a extrema esquerda não lê literatura?”.

 

Quintane faz em literatura o que Jean-Luc Godard faz em cinema: reinjeta o político na arte, pensa o mundo a partir da escrita escrita. Dona de uma dicção peculiar (sua assinatura), a escritora nos inquieta e desestabiliza: seja pelo que expõe da crua realidade – a nefasta e premonitória visita de Marine Le Pen a  Digne-le-Bains – ou pelo que é capaz de extrair e fabular desta mesma realidade. Apesar da atenção voltada sobretudo à contemporaneidade francesa, o livro toca em questões de interesse geral: o avanço dos partidos de extrema direita, a xenofobia, o silenciamento das vozes suburbanas, a eterna querela entre cultura popular e contracultura.

 

Nathalie Quintane nasceu em Paris, em 1964, e atualmente vive em Digne-les-Bains. Publicou dezenas de obras, romances e coletâneas de poemas, dentre eles Remarques (1997), Jeanne Darc (1998), Formage (2003), Un embarras de pensée (2008) e, o mais recente, Que faire des classes moyennes (2016), versão ampliada das reflexões – presentes em forma embrionária – de “O suicídio das classes médias”. Além disso, costuma realizar leituras performáticas de seus textos, trabalhando com a interface vídeo e poesia sonora, geralmente em colaboração com outros artistas, seus colegas de geração, Stéphane Bérard, Christophe Tarkos e Xavier Boussiron.

 

Mesmo com uma produção profícua, ainda é pouco conhecida em língua portuguesa. A única tradução com a qual contamos, Começo (2005), uma autobiografia experimental, foi publicada pela coleção Ás de Colete e desde então, aqui e acolá, surgem traduções fragmentárias de seus trabalhos em revistas eletrônicas como Modos de Usar, Qorpus e Mallarmagens. Recentemente Nathalie Quintane esteve no Brasil, no Rio de Janeiro, durante a Abralic de 2016, onde falou sobre a poesia e seus meios de (re)produção na conjuntura contemporânea.

 

 

O suicídio das classes médias

 

[165] Deus rejeita os mornos e é triste isso de não saber-se rico ou pobre. As classes médias, quando se referem ao salário médio,  – acima do qual dizemos que são ricas, abaixo do qual dizemos que são pobres –, consideram-se, alternadamente e segundo seu interlocutor, pobres em comparação aos ricos, ricas em comparação aos pobres. E o pior é que nem sempre foi assim. Grande parte das classes médias eram pobres antes de serem médias, apesar de ainda terem uma lembrança pungente de sua antiga condição – o trajeto lento e o trabalho pesado que lhes foram necessários antes de  comprarem o primeiro carro, a primeira máquina de lavar, o primeiro televisor, o primeiro computador. Eles ainda têm na memória um tempo sem – sem carro, sem máquina, sem tevê, sem PC –, enquanto os ricos desde sempre tiveram carro, máquina, televisor, computador e muitas outras coisas. Constantemente as classes médias precisam dissimular esse período cruel em que eram sem, comprando de tudo o tempo todo. A primeira geração de classes médias compra tudo o tempo todo. [166] Ou então não compra nada – o que dá na mesma: o dinheiro que ganharam não lhes pertencerá jamais, não saberão, nunca souberam realmente o que fazer com toda essa grana; se vêem com dez mil euros para gastar em restaurante ou num castelo. Por sempre terem tido dinheiro demais ou de menos foi preciso inventar todas essas engenhocas, descartáveis ou não, que vemos nos hipermercados, engenhocas generosas, atos de pura caridade destinados às classes médias – para que não surtem.

Pois a loucura não ameaça as classes médias em tempos de austeridade anunciada: a loucura lhes constitui. É assim que as reconhecemos. Porque você pode comprar, mas não sabe o que, nem por que, e no entanto é preciso comprar, ou então é preciso guardar, mas se você guarda demais, perde aquilo que guardou; então é preciso gastar, você precisa comprar, mas o que, e por que, então você compra aquilo com o que todos estão de acordo, mas nesse caso você é todo mundo, e o que significa ser todo mundo, exceto ser ninguém? É porque você compra objetos comuns, afirmando que são singulares, que têm algo de específico, de autêntico, que te reconhecemos bem; ou ainda, você compra um vinho qualquer enquanto o degusta como viu na tevê, a terceira tevê em trinta anos, ou a trigésima tevê em trinta anos, agarrando delicadamente o vidro espesso com o pé, enconstando as narinas na borda, [167] sorvendo um gole, em seguida tomando uma bela dose; ou ainda, você compra um veículo cujas rodas são três vezes as rodas dos outros, o porta-malas quatro vezes o porta-malas dos outros, o comprimento uma vez e meia o comprimento dos outros e você suspira ao sentar no banco da frente, e você vê os olhos reluzentes através da janela, o painel da Bugatti estranha e  provisoriamente  estacionada na frente da sua padaria.

Mas será que é suportável, poder e não poder, dever e não poder, saber e não entender nada, entender e não poder nada? Será que é suportável dez anos, vinte anos, trinta, quarenta anos, será que é suportável mesmo que apenas por um ano, um dia? Felizmente, você compra um par de sapatos. Além disso, é este resultado fraco que os outros esperam de você? Todos os outros: os pobres Porque eles cruzam com você no supermercado e pensam, certo ou errado, humilhados, os ricos, porque eles nunca  cruzam com você e que eles nem mesmo entendem como uma classe tão bastarda faz para continuar a viver, nas suas casas horrendas, com seus carros vulgares, suas peles de imitação. Uma classe que vota cada vez pior – porque sempre há a suspeita de que este voto poderia impedir os ricos de enricar, e os pobres de melhorarem de condição –, pois as classes médias desejam duas coisas: primeiro, que os pobres continuem pobres; segundo, que os ricos parem de enricar. [168] Parece que o objetivo dos pobres é  aceder à classe média, mas não é verdade : é um objetivo padrão, na falta de um melhor. Ninguém tem vontade de aceder à classe média, todo mundo prefere Saint-Tropez, ou Nova Iorque, ou ainda mudar-se para a Austrália ou algo que o valha. O objetivo dos pobres é o de se tornarem ricos, passar diretamente de nada ou quase nada a tudo, ou a muitas coisas, diretamente, sem ter que começar ganhando uma migalha e, em seguida, muito tempo depois, ganhar um pouco mais, e assim por diante – mas não! o que é esse conta gotas senão uma tortura? Sair diretamente de um trailer para Beverly Hills. Na verdade, nesse caso, as etapas intermediárias são supérfluas; contrariamente ao que acredita-se, o tipo de constrangimento ou vergonha, ou pelo menos de mal-estar, que sempre se sente no começo, quando passa-se diretamente de um trailer para Beverly ou outro lugar do gênero, é um pouco superior ao constrangimento que sente-se ao sair dos trailers para morar em uma casinha na beira da estrada. Será preciso aprender a podar a sebe, dar duas voltas até o portão, vigiar a casa – então, por que não passar diretamente à casa de campo com quatro mil metros quadrados?

O problema das classes médias é que elas não têm extensão; têm um senso de medida que não é ajustado: dez mil euros por um restaurante, por exemplo, ou, como acabei de ver no meu vizinho que mora no mesmo caminhozinho tranquilo a [169] quinze minutos do centro, –  um trajeto cujos moradores são em geral motoristas de ônibus perto de se aposentarem, mecânicos, cuidadores de idosos, escritores, professores em escola técnica, condutores de cães de trenó – , câmeras de segurança para uma casa fofa, cercada por um jardinzinho. Câmeras, exatamente como as da casa de campo de quatro mil metros quadrados; pois a distância entre a casa fofa cercada por seu jardim e a casa de campo em Beverly, ou em outro lugar, é simplesmente inimaginável. Dá tudo na mesma. A única diferença é que derramou-se suor e sangue pela casinha, e as câmeras estão lá apenas pelo suor e pelo sangue, e não para vigiar um negócio onde não tem nada para vigiar – por que alguém roubaria um enésimo laptop? Um home theater que poderia nem passar pela janela? Na verdade, a função das câmeras é exatamente a mesma que a das plaquinhas colocadas nas casas de antigamente: as amoras,  finalmente meu descanso… Era para dizer: pois bem, eis uma firula, não tem nada de mais, morri por isso, mas consegui. Hoje em dia as firulas são as câmeras de vigilância, o toque final que parafusa-se no alto do muro. Uma vez que a firula é desfiada, todo mundo sabe o que isso causa: o desgosto enorme dos empréstimos a ressarcir, o trajeto até o trabalho, o isolamento total ou parcial, o tédio, o divórcio, a partilha dos bens e das crianças. Mas antes, há a instalação em casa, a colocação de cortinas que filtram os raios de Sol e banham a sala [170] de um amarelo pálido onírico, de um azul psicina, onde o gato cochila com as patas dobradas sobre o ventre, roncando docemente, a sombra da pérgula, o ruído dos dedos sobre os juncos, a alegria de limpar bem a geladeira, os sete tipos de sorvete dispostos no congelador, a troca do sofá de dois lugares por um sofá de três lugares, de couro, o sumo de três morangos crescidos no jardim, a carne vermelha e assada, bem suculenta, que dividimos antes de balançar os ossos para o gato, e o Pernod. E eis que deveríamos ser capazes de sentir, de presentir, o momento em que o amanhã não será mais assim. Sem dúvida, há antecedentes: uma mancha na cortina, menos sorvete no congelador, os juncos amarelando, o enfado de sentar sempre na mesma merda de sofá, o gato que  passa a receber os ossos no focinho; pois bem, pessoalmente não conheço ninguém que tenha se valido desses antecedentes para liquidar o todo antes que fosse tarde demais. Na verdade, só conheço Jean-Claude Romand, que soube perceber o momento exato antes que tudo se desequilibrasse, este filho impecável, marido modelo, pai, do qual cada membro da família conservou a melhor lembrança possível, nenhum foi desapontado. Mesmo se Romand na verdade pertencia mais à classe média superior –, talvez mesmo à burguesia, uma vez que ele era médico da OMS – , e que o mais importante é aquilo que pensam sobre você e não o que você é, ele é, na minha opinião, a [171] alegoria mais perfeita que se pode imaginar da classe média – aquela que fará de tudo para não descer. É também por essa razão que os pobres optam diretamente pela riqueza ao invés das etapas intermediárias: os ricos, estes, não descem.

Diz-se que as classes médias são uma criação tardia, fabricada nos mínimos detalhes para absorver o transbordamento de bens de consumo dos anos 1960. É a classe que sonha e permanece nisso. Os outros sonham arduamente. Um amigo, – que viveu dentro de um urso num museu de bairros bonitos, no subsolo do qual um clube muito fechado tinha um bar cuja a entrada permitia visitar o museu fora dos horários de funcionamento –, me dizia que numa madrugada uma mulher tinha vindo acariciar a pata do urso e lhe falar, com um forte sotaque polonês, de suas viagens aos quatro cantos do mundo: dos aviões que ela pegava para verificar tal detalhe num quadro em Milão, de uma árvore em Chicago, de uma caverna em Moscou. E bem, a primeira ideia que veio à cabeça de meu amigo foi a de encontrar essa senhora, que havia lhe deixado seu cartão de visita entre dois grampos de cabelo. A classe média é a classe não fascinante por excelência. Sair do parque Bellevue em disparada, a toda velocidade, rumo à Bélgica, carregado de cocaína (passando antes em Beaumettes), isso dá um filme. Cheirar essa cocaína em cima da mesa assinada de um colecionador, sentado numa banqueta também assinada, isso dá um filme. [172] E seria talvez o mesmo filme. Saltamos a classe média; passamos diretamente dos bairros aos bairros bonitos; abstraímos o que não tem interesse. Erroneamente? Mas quem escreve os roteiros? Quem vai ao cinema? Quem baixa os filmes? E quem está digitando essas linhas? Senão, para a grande maioria, pessoas que com certeza sabem o que é a classe média, por constituí-la, e têm consciência de que será preciso trabalhar dez vezes mais para tirar algo de emocionante daí. Visitamos os pobres pela televisão; por exemplo, nesse programa que consiste em reformar casas a fim de torná-las apresentáveis, tendo em vista uma futura venda. Tiram os troféus de caça comidos pelas traças para substituí-los por uma reprodução de Warhol; arrancam o papel de parede marrom com flores enormes para repintá-la de branco; destroem uma divisória à marretadas e colam um espelho para colocar um sofá de canto, macio, com almofadas enormes. São os amigos que fazem isso, com a ajuda de um decorador, pois a família, óbvio, não tem um vintém. Ou então teleportam uma pobre coitada até a Califórnia, e pela primeira vez na vida ela não esbarra pelos cantos. Tem espaço para esticar suas pernas sublimes, pode sacodir a longa cabeleira escura no banheiro, pode correr e saltitar pelo quarto e, mesmo quando toma impulso, tão forte e tão longe quanto for preciso, [173] ainda assim não é capaz de alcançar o teto. A maior parte das classes médias realmente fez muitos esforços antes de conseguir pendurar câmeras de vigilância no muro, e seus filhos têm lembranças amargas, mas tão amargas, deste momento em que a família subiu em cima de um banquinho para pendurar as câmeras que, francamente, não queremos mais ouvir falar em ascensão social, que está tudo arranjado, resolvido por um bom tempo.

Pois os pobres estão cansados de levantar mais cedo que todo mundo, tomar conduções, ficar parados feito postes desde a mais tenra idade pendurados na barra; eles estão cansados, mas são fascinantes; jamais saberemos o suficiente sobre eles. Já os médios estão apenas cansados. E pouco importa o quanto eles vão se esforçar para sair do estado de enfado e interesses pérfidos, será perda de tempo. É possível que a única solução defensável, como diz-se nos dias de hoje, seja uma forma de expurgo. Na verdade, seria preciso expurgar tudo o que se tem a dizer sobre as classes médias; é preciso esvaziar tudo isso. Um monte de dificuldades entusiasmantes intelectualmente se colocam ao falar-se dos pobres; quando não se é pobre, há sempre um monte de ideias que vêm brutalmente ou muito aos poucos; mesmo sem tê-las solicitado, elas se apresentam, e referências não faltam, Péguy, Hugo, Marx, ou hoje em dia, [174] Spivak, Scott, Rancière, e todos os subterfúgios, todas as inteligências prontas para a mobilização, falar da única questão digna, como dizia Hugo, a questão social. Mas antes, talvez, seria preciso, à título de higiene pessoal, e justamente porque a distância é apenas entre os médios e o meio que ouve falar das classes médias, esvaziar tudo isso, enfiar dois dedos na boca para uma espécie de expurgo categorial; talvez fosse preciso cessar temporariamente as pesquisas pontuais num ou outro domicílio fechado, numa ou outra cidade com menos de vinte mil habitantes do Sul, num ou outro bairro residencial a duas horas de distância da capital; por exemplo, daríamos uma pausa nisso tudo e ministraríamos a nós mesmos um belo emético, começaríamos nos vomitando.

 

QUINTANE, Nathalie. Les années 10. Paris: La fabrique éditions, 2014.

 

 

* Escritora, tradutora e crítica. Nasceu em Fortaleza, em 1986, e atualmente mora em Curitiba. É mestre em Literatura Brasileira pela UFPR em Estudos Lusófonos pela Université Lumière Lyon 2. É professora de língua francesa e atualmente cursa doutorado na UFPR