A tragédia das sensações doloridas, a palavra falada no corpo — Tobias Nunnes

 A tragédia das sensações doloridas, a palavra falada no corpo

                                                                                                Tobias Nunnes* 

Romeo Castelucci e sua Cia, nomeada Societàs Raffaello Sanzio – fundada em 1981 em Cesena, pequena cidade localizada ao norte da Itália, onde mantém sede atualmente – conseguem estabelecer um fascínio perturbador no espectador atento à sua dramaturgia radical e doente, em busca de corpos desfigurados, formas não humanas, repletas de simbologias e significados, aparentemente não identificáveis.

 

Tragédia Endogonidia

O nome que intitula a Cia., em homenagem ao grande pintor do século XVI considerado o mestre da visão, faz um contraponto às características visuais, marcantes na obra e ganha uma força brutal, por vezes perversa, em cena.

Tragédia endogonidia, (Ciclo de onze episódios, realizados no período entre Janeiro de 2002 e Dezembro de 2004, cada qual apresentado em diferentes cidades da Europa, tendo início e término do ciclo na cidade natal da Cia.) um grande feito ao mesmo tempo crítico, visual e psicológico, transporta as sensações e o “estar” presente, junto à capacidade de racionalização dos acontecimentos para outro espaço, o espaço surreal projetado por outros seres (os atores), que não o próprio espectador a observá-los. Estabelecem com sua força corporal, e ainda assim comunicativa e densamente significativa, uma espécie de hipnose, mesmo que não totalmente compreensível, embora no íntimo, se olhos e ouvidos estiverem fixos, se a isca pelas imagens lançadas for eficiente ao fisgar o olhar, este por mais que tudo que lhe esteja sendo mostrado pareça absurdo, incompreensível e apenas sendo subsídio para posterior capacidade de classificá-lo com impressionável, louco ou estranho, estarão muitos dos significados ali mostrados, mesmo que imperceptíveis e inconscientes registrados na memória. Não há como sair ileso e impune a algum tipo de sensação, após o espetáculo visual e filosófico proposto magistralmente por Castelucci.

O psicológico é envolvido, memórias são resgatadas e ativadas de forma sutil e utilizadas como munição para bombardeio sensitivo na construção de outras vias da percepção. São sensações doloridas, que travam uma guerra silenciosa, onde a palavra, uma das principais vias de comunicação, não tem vez, mesmo audição não totalmente descartada. As sensações, então se tornam o carro chefe, o corpo, a matéria fundamental, o responsável por dar forças à construção visual e explanação dos significados nele ocultos, algo que a palavra em si não é capaz de alcançar.

A adoção de uma filosofia contemporânea complexa, psicologicamente densa e restrita, estabelece uma estética de experimentação. O jogo de luz e sombra, posição e sobreposição de imagens. Turbilhão de sons e ruídos executados e presentes durante todo o acontecimento cênico, guiado por uma narrativa não usual, a narrativa do sensível, do corporal, diversas vezes negado e incompreendido.  É tragédia pela presença do corpo, pela ausência sufocante, mas benéfica das palavras, do dito e não dito. Divagações acerca do oculto, mesclado ao mito da existência. As gônadas, parte da essência corporal, tornam a narrativa trágica, pela capacidade de demonstrar as perversidades, a voz e a força destruidora do corpo. Um típico ritual surrealista, cenograficamente plástico, favorecido pelos recursos tecnológicos que o potencializam.

O sonho, o delírio, o devaneio e a inconsciência, características individualistas trazidas à tona em cena, na formação de uma realidade obscura e distorcida, realidade na qual se vive, individualmente, com a criação de um mundo próprio e intocável, mas amplamente influenciável e modificável conforme o decorrer dos acontecimentos que o delineiam.

Atos simbólicos, desde uma pequena movimentação, tudo é valorizado e contribui ricamente para essa composição artística não habitual. A formação do ser fundamentada a partir das sensações que são nele provocadas. As cores são vitais, metáforas provocativas, e o pensamento em desordem reflexiva, enquanto a sensibilidade, por instante crua e desconexa, é fortificada. Mais que uma experiência, uma fusão plástica enigmática e terapêutica, também de autodescoberta. Um banho de sangue frio propenso a ferver, que parte do íntimo e da cabeça pensante. Ótimo.

A Cia. esteve uma única vez no Brasil na ocasião da 8ª edição do Riocenacontemporânea, em outubro de 2007, com o espetáculo Hey Girl! concebido em 2006.

*Tobias Nunnes – Bacharel em Biblioteconomia – Gestão da Informação pela Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC; Acadêmico de Artes Cênicas Universidade Federal de Santa Catarina UFSC; Membro do Grupo de pesquisa em Performance, Artes Cênicas e Tecnologia PACT/UFSC.