Do escrito à voz e vice-versa – Annita Costa Malufe e Silvio Ferraz

Do escrito à voz e vice-versa

 

Annita Costa Malufe (PUCSP/CNPq) e Silvio Ferraz (USP/Fapesp/CNPq)

  

Haveria uma música da voz, uma música da voz falada. Esta música estaria não apenas nas sonoridades das palavras e da fala, mas também e sobretudo na temporalidade implicada na voz. Um tempo que não diz respeito ao ritmo, ou às velocidades de leitura, mas ao modo que as palavras se desdobram na escuta da voz e das redes de relações que põe em jogo, seja pelo significado das palavras, seja pelo non-sense disparado pela palavra e pela voz fora do jogo retórico cotidiano ao qual nos acostumamos.

É neste sentido que os dois textos que acoplamos aqui trabalham: pensar a voz enquanto um fluxo musical, um fluxo que cria um tempo por progressões, idas e vindas, por cortes abruptos, por sequencias suaves etc.

Nesta busca pelo fluxo da voz, da voz falada e da voz desterritorializada na escrita, uma referência fundamental, e talvez fundadora, é a obra de Samuel Beckett, tema dos dois curtos depoimentos que seguem.

 

  1. O fluxo vocal da escrita (Annita Costa Malufe)

 

Por volta de 2004, eu e o compositor Silvio Ferraz concebemos a performance “poema-em-música”, como uma tentativa de criar uma conversa entre nossos trabalhos, de poesia e de música, a partir de uma busca comum nossa, que se ligava ao uso da voz – de minha parte, na escrita e performance de poesia e, na de Silvio, na composição contemporânea. Foi ali que começamos uma pesquisa, que continua até hoje, em torno dos modos de uso da voz falada, na poesia, na música, no teatro, na performance; buscando repertório e experimentando de diferentes formas a leitura de poemas e sua articulação com os sons gerados pelo computador (live-electronics) e, por vezes, a composição conjunta com instrumentos musicais.

Esses usos da voz falada, que vemos na arte, são os usos que derivam daqueles do dia-a-dia, imaginando que há uma música aí, que é uma música própria da fala – e uma música muito própria de cada fala, e que é aproveitada pela literatura, pelo teatro, pela música. Há uma música de cada voz e temos pensado que ela define a singularidade dos modos de fala de cada um, de cada povo, cada língua, época, cultura etc. É assim esse material vocal, a voz enquanto materialidade concreta e palpável, que tem sido nosso terreno de exploração.

Para chegar na ideia que me levou a Samuel Beckett – e que depois trouxe Beckett até meus próprios poemas e performances –, vou retomar rapidamente alguns caminhos e alinhavar momentos de minha pesquisa, que se iniciou no mestrado, com Ana Cristina Cesar e algumas leituras de Gilles Deleuze; e prosseguiu pelo doutorado,[1] sob essa mesma perspectiva da filosofia da diferença francesa, mas já com alguns novos desdobramentos e em seguida, também, nas pesquisas de pós-doutorado, já mais focadas especificamente em Beckett.

A ideia principal seria a da poesia como um território vocal. Como na frase de O inominável: “Não se pode esquecer, e às vezes me esqueço, de que tudo é uma questão de voz” (BECKETT, 1953, p. 98). Resumiria minha pesquisa, tanto na universidade quanto em minha prática como poeta, como uma investigação em torno da literatura como esse território vocal, que ganha corpo no escrito. O que trabalhei como sendo em Ana Cristina Cesar – e depois em Marcos Siscar – um devir-voz da poesia, que a arrasta para fora de seus terrenos confortáveis e que se tornaram, especialmente nas poesias clássica e romântica, por demais “escritos”, demarcados por convenções da escrita.

No Brasil, é a poesia que se inicia com o Modernismo: toda uma poesia que incorpora o cotidiano, tanto temas do dia-a-dia, quanto palavras e modos de dizer mais prosaicos, menos elevados. É o bloco poesia-cotidiano ou poesia-prosa. Oswald de Andrade arrastado por uma certa irreverência, um humor e uma força do comum, colocando na poesia a gramática do povo. Depois, Drummond, Bandeira, Jorge de Lima: todo um prosaismo da poesia. Bandeira e o uso dos travessões, poemas invadidos de falas de personagens; Jorge de Lima e a fala popular. Todo um acoplamento da escrita com a linguagem oral, que a música popular brasileira e a bossa nova vão explorar também, Tom e Vinícius, mas sobretudo Chico Buarque e sua poesia dramática. Na MPB, também Waly Salomão será fundamental nesse sentido: parcerias com Gil e Caetano, Tropicália, toda uma poesia em que o material básico é a oralidade. Waly, o mentor da geração de poetas que ficou conhecida por poesia marginal dos anos 1970, tão marcada por essa entrada do cotidiano, do banal e da oralidade na poesia. O poema é feito muitas vezes da colagem de falas, da costura de expressões cotidianas ou de uma cena que traz uma conversa bem banal do dia-a-dia, como em Francisco Alvim, ou Cacaso, Chacal, Charles. O poema pode ser uma tirada, ou trazer um desfecho bem humorado – e pode se compor de apenas uma linha, de um flash cotidiano. O poema parece pedir para ser ouvido, ou falado; ele pede para ser encenado. Ou ele mesmo traz uma cena e nos coloca dentro dela; cena que é acima de tudo um território de vozes.

É em meio a essa poesia marginal dos anos 70 que surge Ana Cristina Cesar, trazendo uma poesia singular, que se valerá igualmente do material vocal, mas em uma radicalização da colagem e da apropriação de falas – provocando uma pulverização, uma fragmentação radical dessas vozes. O que Flora Süssekind chamará de uma “poesia-em-vozes”, se referindo a este procedimento de colagem de inúmeras vozes poéticas em Ana Cristina, numa “figuração da poesia como conversa, da escrita e da leitura como escuta” (SÜSSEKIND, 1995, p.16). Mas o que sobressai nos poemas de Ana Cristina é que aí já não se sabe exatamente “quem” está falando: o tal “eu lírico” se desfaz, porque quem fala ali dentro é muita gente, são muitas vozes – e elas estão interrompidas, fragmentadas, elas se atropelam umas às outras. E no meio deste burburinho, o eu que fala vai sendo invadido por outros, as zonas de sombra crescem, as falas se despersonalizam e todos estes “eus” ficam: “convertidos em conjuntos de tonalidades, vozes, modulações”, diz Flora Süssekind.

No poema de Ana Cristina, ao mesmo tempo em que não se sabe bem “quem” está falando, também não se sabe exatamente “o que” é dito – os significados são colocados em xeque, é uma poesia que não se apega mais à significação, ao conteúdo ou à mensagem. E isso é bem diferente do que ocorre nos poemas modernistas ou marginais. Assim, estas vozes são de repente apenas “vozes”, mesmo, em suas materialidades de voz: são modulações, tonalidades, timbres, modos de dizer, gestos vocais e mesmo tiques, ruídos. São vozes que se autonomizam dos sujeitos e também dos supostos objetos designados pela linguagem. É como se a voz se tornasse corpo autônomo, ela já não remete a um sujeito que profere, mas também não está atrelada ao conteúdo que ela traz. O poema se torna uma colagem de entonações, um encadeamento de falas que não remetem a significados tampouco a objetos ou histórias, mas que se encerram em si mesmas, que remetem à sua própria materialidade de vozes. Ana Cristina vai dizer que o poema é um corpo, que se joga aos pés do leitor:  trata-se de um poema performático, que se faz corpo e convoca o corpo de quem lê-ouve.

Foi por esse traço da escrita de Ana Cristina Cesar que acabei trazendo alguns textos de Beckett para a tese de doutorado, como se um paralelo entre eles pudesse tornar mais nítido esse traço vocal – e também performático, da escrita. Como na peça de Beckett, “Not I”: “Não eu”, não há eu, não há expressão do sujeito que fala, como não há, nessa linguagem, predomínio do significado, do isto quer dizer aquilo. E é um pouco nesse caminho, da libertação da fala e da liberação de outras potências suas, que acredito que se dá o nosso laboratório “poema-em-música”.

Ao buscar tratar dessa concretude da voz que compõe nosso material de trabalho, sinto-me sempre tentando redizer e me aproximar dessas ideias sem jamais de fato conseguir explicá-las devidamente, torná-las de fato concretas. Pois há algo de uma dificuldade em se demonstrar essa materialidade ou fisicalidade da voz, de seu fluxo – uma corporalidade que só pode no fundo ser de fato experienciada por cada um (cada leitor, ouvinte) no seu próprio corpo, quando lê ou escuta um texto. O fluxo vocal é algo da ordem da sensação.

Uma noção que me ajudou nessa tentativa de explicação foi a de “pasta-palavra” [pâte-mot ou patmo],[2] criada pelo poeta francês Christophe Tarkos. Ele costumava fazer performances de poesia, e possuía uma poética muito próxima daquela de Beckett – no que diz respeito a esse traço vocal, ao modo de uso das repetições, a atmosfera que predomina em seus textos. Tarkos imaginava a linguagem como uma pasta, mole, flexível, que se molda à medida que sai da boca. “A frase e sua pasta. Pasta palavra.” (TARKOS, 2008, p. 163).  Para ele, não haveria palavra isolada, que seja solta dessa pasta: “não há palavras sós, as palavras estão em grupo, elas se misturam em um grupo, o que faz o elemento do sentido não é mais a palavra é o grupo de palavras fundidas” (TARKOS, 1999, p. 29).

Cada fala ou enunciado já é voz, corpórea: é uma pasta viscosa, grudenta, é já um conjunto amalgamado de palavras-sons, palavras-imagens, e não há como separar essa massa, ela se dá em grupo, grudada: “Pasta-palavra é a substância, é a substância de palavras suficientemente grudadas para querer dizer” (TARKOS, 1999, p. 32). Tarkos também usa as imagens de uma compota e de um purê, para concretizar essa ideia de uma continuidade ininterrupta das palavras, na qual estamos imersos e na qual não se separam significados e significantes, forma e conteúdo, som e sentido. Nessas imagens, o fluxo da linguagem, que pareceria algo abstrato e fluido, torna-se algo tátil e concreto – ele é voz mesmo que esteja escrito e seja lido silenciosamente.

O texto é ele mesmo uma massa viscosa. Essa massa é em alguns momentos mais densa e contínua – momentos que o texto é feito de blocos compactos –, em outras ela se faz mais arejada, rarefeita, quando o texto é distribuído em versos curtos e espaçados que deixam branco na página ou se divide em blocos menores ou mesmo estrofes, no poema. A massa se desloca, forma blocos maiores ou bloquinhos, forma pequenos montes ou montes maiores, se arredonda ou se dispersa… conforme as descrições de Tarkos sobre a pasta-palavra.

Parece-me então que esse conceito de patmo nos ajuda a falar do fluxo vocal que é tornado sensível nos textos de Beckett. Sempre uma atenção às entonações e encadeamentos entre as palavras, criando fluxos de vozes que, a cada texto, parecem ganhar uma singularidade, um perfil próprio. O fluxo entrecortado que encontramos em Comment c’est não é o mesmo, escorregadio e saturado, de O inominável, e que por sua vez estará muito longe daquele contínuo e simultaneamente lacônico de Bing ou, ainda, de Worstward ho, com seus truncamentos e falhas. Em cada um desses textos há uma modulação vocal distinta, trabalhada nos detalhes de cada ritmo, cada pausa, cada repetição ou escolha de palavras. É como se as vozes fossem tomadas em sua materialidade de voz – de pasta, de purê – e não enquanto voz de um personagem ou um sujeito. São vozes autonomizadas que, ainda que saiam da boca de personagens identificados, a mulher de Not I, as duplas de Fin de partie ou mesmo Godot, se descolam deles sempre um pouco, um dedo acima que seja, para fazerem soar seu ritmo próprio – ou mais do que isso, concretizarem sua massa de palavras, sua pasta, seu amálgama específico.

Há um dos Textes pour rien em que Beckett se refere a essa continuidade vocal como um “fluxo ininterrupto de palavras e lágrimas” e depois como um “mesmo murmúrio, fluindo, sem falha, como em uma única palavra sem fim e, logo sem sentido, pois é o fim que dá sentido às palavras.” (BECKETT, 2015, p. 36). Essa única palavra sem fim, palavra esticada e esgarçada ao limite, parece análoga à imagem de Tarkos de uma frase em que as palavras estão sempre grudadas, emendadas, numa continuidade elástica e moldável – como se fossem uma grande palavra, de fato.

Beckett fala, no trecho acima destacado, dessa palavra-fluxo contínuo, palavra-fluxo vocal, que possui a continuidade da água, das lágrimas; e que se dá em mistura com o corpo; ele diz que olhos e boca aí se confundem, porque se confundem palavras e lágrimas, e penso ser interessante não tomar essa frase por uma metáfora, mas por um esforço de concretizar o jorro de palavras que se dá na voz, no murmúrio que não cessa, essa palavra esticada ao limite e que jamais parece ter fim.

Parece-se com a voz de Not I, tomada nesse fluxo incessante, indicado por reticências que mais parecem emendar, do que separar, os segmentos entre si – como o zumbido que não para, nos ouvidos, assim esse “fluxo de palavras” incompreensíveis e que a boca não consegue interromper:

 

fluxo constante… esforçando-se para ouvir… para fazer algo daquilo… e seus próprios pensamentos… fazer algo deles… todo… o quê?… o zumbido?… sim… todo o tempo o zumbido… assim chamado… tudo aquilo ao mesmo tempo… imagine!… todo o corpo, como se esvaindo… somente a boca… lábios… bochechas… mandíbula… nunca-… o quê?… língua?… sim… lábios… bochechas… mandíbula… língua… sem parar um segundo… a boca flamejando… fluxo de palavras… em seu ouvido… praticamente em seu ouvido… sem entender a metade… nem um quarto… nenhuma ideia do que está dizendo… imagine!… nenhuma ideia do que está dizendo… e não consegue parar… sem parar… ela que um momento antes… um momento… não conseguia fazer um som… som de espécie alguma… agora não consegue parar… imagine!… não consegue interromper o fluxo… e o cérebro inteiro implorando… algo implorando no cérebro… implorando que a boca pare… que pause um momento… um momento que seja… e resposta alguma…  [BECKETT, s/d]

 

Parece-me que Beckett foi o autor a levar mais longe na escrita essa exploração do que estou chamando aqui dessa música da fala; música feita do fluxo da voz que fala, e não da voz que canta. Como se sua escrita explorasse tiques e gestos vocais; escrita obcecada por bocas se contorcendo enquanto tentam dizer algo, perdendo-se em uma música – feita de velocidades, sotaques, entonações, manias – que parece dizer mais do que qualquer conteúdo que seja extraído. Essa música, que nos faz escutar em nossa própria língua uma língua estrangeira, parece-me que teve em Beckett um de seus principais exploradores.

Quando em 2004, concebi em parceria com o compositor Silvio Ferraz a performance “poema-em-música” eram essas as inquietações que iam ganhando corpo. Toda uma problemática em torno do fluxo vocal do poema e de como tornar audível esse fluxo que pertence ao próprio texto mas que é acionado em cada leitura. Como refazer o território vocal do texto em uma nova situação, agora de escuta, em uma performance, sem que a voz presente no palco se sobrepusesse a essa voz que é aquela do texto. Como tornar sensível, na performance, esse fluxo de voz, essa música da fala?

 

  1. O tempo da voz (Silvio Ferraz)

 

I.

Se o caminho da poeta Annita Costa Malufe foi o da vocalidade, aqui desdobro o da temporalidade implicada nesta mesma vocalidade. A temporalidade que está presente na própria palavra, que era de grande importância para Beckett conforme testemunham suas anotações, cartas, notas de ensaio. São diversas as tentativas de anotar o tempo de fala assim como o do silêncio entre as ilhas de falas que compõem não apenas suas “invenções”[3] radiofônicas, mas também suas novelas, poemas.[4] Um exemplo marcante é o de Cascando que teve três versões dirigidas por Beckett, sendo duas delas atualmente disponíveis na internet pelo Institut National du Audiovisuel (INA) e pela BBS-Radio Three.

Ainda relacionado à temporalidade em Beckett, me chamou a atenção, ao meu primeiro contato com sua obra em 1994, quando conheci suas Mirlitonades. Uma primeira impressão era de que a escrita de Beckett parecia música. Mas em que sentido? Sua escrita de certo modo pedia a presença concreta da voz para sua leitura; como se os poemas fossem partituras. Talvez tivesse neste contato um tanto de influência de um leitor especial de Beckett, o compositor Georges Aperghis cuja música também conheci naquela época. A escrita por retomadas de Beckett, que depois viria a conhecer melhor em sua trilogia e em suas invenções radiofônicas, não me permitia uma leitura silenciosa, mais do que isto pedia som e mais som, inclusive som ambiente, o barulho da mão foleando o papel, os sons do ambiente.

Mais recentemente estudei mais especificamente a experimentação radiofônica Cascando através das duas gravações, RTF e BBC. Lado a estas gravações também me vali daquela de outra peça, de Bing, realizada por Roger Blin na RTF. O resultado deste estudo foi apresentado duas vezes,[5] com análise das estruturas rítmicas e da presença do silêncio, para o qual me vali de algumas noções de temporalidade próprias da música contemporânea, sobretudo aquela proposta por Gérard Grisey, que distingue o tempo musical em três aspectos: o esqueleto do tempo, a carne do tempo e a pele do tempo.[6] Destes, o primeiro e o segundo dizem respeito a uma leitura macro, o esqueleto rítmico e este mesmo esqueleto vestido pelo som e por suas especificidades espectrais e de contorno dinâmico. Será o embate entre estes dois aspectos, o esqueleto rítmico e a sua carne, que irá definir-se no embate com a escuta, a pele do tempo, uma temporalidade que está implicada nos modos de vida, modos de fala, modos de escuta deste ouvinte concreto e não mais ideal (GRISEY, 1980).

Para falar da concretude de leitura que pede a escrita em Beckett, tomo aqui como referência uma passagem da aula que Michel Foucault realiza em 3 de março de 1982, uma aula sobre a leitura e a escrita. Esta aula Foucault parte de Epiteto, da relação entre o pensamento, a grafia deste pensamento e o teste do real. O que me chamou a atenção e relaciono aqui a Beckett é a passagem em que Foucault observa que na escrita latina e grega tratava-se  de “reler aquilo que se tivesse escrito, e relê-lo necessariamente em voz alta, pois, como sabemos, /…/ as palavras não eram separadas umas das outras /…/ havia uma grande dificuldade em ler /…/ não se tratava de ler simplesmente com os olhos. Para se chegar a destacar as palavras como convinha, era-se obrigado a pronunciá-las,  pronunciá-las em voz baixa” (FOUCAULT, 2004, p. 432).

Uma escrita em blocos, embaralhada, quase uma “pâte-mots”, para usar uma noção que herdamos de Christoph Tarkos.  É notável e direto o fato de Beckett, em sua trilogia, nas peças radiofônicas, em Bing e em Mirlitonades, escrever por retomadas mas empregando uma espécie de embaralhar das palavras. O que observo é que este embaralhar pede uma leitura em voz alta e que articule grupos de palavras por fusões e fissões nem sempre na ordem do hábito de fala ou mesmo dos hábitos de língua. Tal embaralhar, um movimento circular do ritornelo das palavras e sonoridades, pede uma leitura concreta e ao mesmo tempo faz concreto o tempo. Um pequeno mapa de ritornelos, como o que realizei com Cascando (ver mais abaixo neste artigo).

O tempo de que falo aqui não é aquele quase abstrato e teórico, que falamos do ritmo, das alternâncias cíclicas entre longas e breves, mas um “tempo intensivo”, que é próprio da cadeia heterogênea de durações sem medida. Falamos então de um tempo não mais cronométrico, mas “cronoamétrico”. Esta noção, proposta por Igor Stravinsky e Pierre Souvtchinsky (SOUVTCHINSKY, 1939), propõe não nos livrarmos de Chronos e a possibilidade de contar, relacionando um antes e um depois, mas observa que agora nos perderemos na contagem. É neste tempo embaralhado que nos encontramos quando nos damos conta de que para cada pessoa, as pequenas porção de palavras, de frases, de sentenças, são recebida de modo bastante distinto quanto à suas temporalidades. As pequenas variáveis de inflexão fazem com que vogais mais estáveis sejam ouvidas ora alongadas, ora curtas. As sutis variáveis na inflexão das vogais modifica totalmente a sensação que se tem de sua temporalidade. O lugar em que uma vogal aparece em uma sequência de sons, ou de palavras ou de outras vogais e sílabas, também altera esta temporalidade. O hábito de fala do ouvinte (sua nacionalidade, seu dialeto próprio) também acaba determinando diferenças suficientes para esta mudança de temporalidade seja vivida. Resumindo um modelo aproximado destes aspectos proponho os seguintes gráficos abaixo, descrevendo vogais com frequência fundamental constante ou dinâmica, assim como três curvas de amplitude para estas vogais (Cf. CUMMING, 2011).

Gráficos de Vogais com (1) Frequência Fundamental (“F0”) constante ou dinâmica e curvas de amplitude (“amp.”) ataque-diminuendo; crescendo-corte; crescendo-decrescendo.

 

É importante também lembrar que na fonação das sílabas participam três sistemas distintos de produção e modulação sonora os quais também tem implicações temporais. De um lado, os sons produzidos pelas pregas vocais, e que caracterizam de um modo geral nossas vogais; de outro, o sistema línguo-lábio-dental que está presente em nossas consoantes; e em terceiro, a grande caixa de ressonância, cavidade bucal e nariz, que operam como filtros e amplificadores espectrais dos resultados sonoros provenientes dos dois sistemas anteriores.

Quanto ao sistema línguo-lábio-dental, represento abaixo um breve resumo de fricativas, explosivas e líquidas (laterais e vibrantes). Um quarto tipo de sonoridades seria aquele produzido também diretamente na boca mas com saída nasal, que são nossas consoantes nasais.

 

Figura de amostras de sequencia ADSR (ataque-decaimento-sustentação-ressonância) de algumas sonoridades: ataque rígido com continuidade rolada (tipo “tr”, “fr”, “br”); ataque seco (“t”, “f”, “b”); som rolado (“r”).

 

Não pretendo aqui fazer uma exposição destes detalhes da voz, também porque não é o foco de nossa leitura, mas o fato é que tais pequenos elementos influem diretamente no modo temporal como ouvimos uma frase e por conseguinte no próprio interesse que podemos ter por alguém falando, sendo relevante na construção de um discurso estes índices de movimento, de sensação de uma duração que ora contrai, ora expande. E que é tal aspecto que os ritornelos que Beckett desenha acabam trazendo para a escuta.

 

II.

Em um estudo que envolveu a análise da invenção radiofônica Cascando, em duas de suas versões gravadas (ORTF em 1963 e BBC-Radio 3 em 1964), observei esta construção do texto de Beckett por ritornelos de palavras, jogos em que as palavras giram ora por repetição (« tu seras tranquille… /après tu seras tranquille… /après tu seras tranquille »), seja por retomadas de sonoridades (« c’est la bonne… /cette fois c’est la bonne… /pouvais la finir… /pourra dormir » ), por retomadas de sentenças similares (« plus d’histoire… plus de mots »), ou ainda por jogos de sinônimos ou antônimos (« à commencer… à finir »). Tem se assim a impressão que o texto gira, que a música do texto gira.

Mapa de ritornelos de palavras, sonoridades, sentidos na primeira sequencia do personagem Voz em Cascando de Samuel Beckett.

 

Outro aspecto relevante na construção do que podemos chamar de “o ritornelo Beckett” é a presença de uma direcionalidade nas transformações. Não se trata de uma direcionalidade linear, que algo que evolua passo a passo sem pequenos retomadas, mas de um jogo de zig-zag, como em Cascando, em que o texto de Voice evolui de frases completas e frases incompletas, palavras ilhadas.

 

histoire… si tu pouvais finir… tu serais tranquille… pourrais dormir… pas avant… oh je sais… j’en ai fini… des mille et des une… fait que ça… ça ma vie… en me disant… finis celle-ci… c’est la bonne.. après tu seras tranquille… pourras dormir… plus d’histoire… plus de mots… et la finissais… et pas la bonne… pas tranquille… tout de suit une autre… à commencer… à finir… en me disant… finis celle-ci… après tu seras tranquille… cette fois c’est la bonne…

[…]

tranquille… dormir… plus d’histoires… plus de mots… ne pas lâcher… c’est la bonne… ça y est… presque… j’y suis… quelque part… Maunu…

[…]

tombe…retombe…exprès ou pas… je ne vois pas… il est par terre… c’est l’essentiel… le visage dans le sable… bras déployés… dunes blanches… tout à fait… même vieux manteau… nuit trop claire…

[…]

cette fois… j’y suis… Maunu… c’est lui… je l’ai vu… je le tiens… allons… même vieux manteau… il descend…

[…]

plus vite… ça cingle… se cabre… pique du nez… cap sur l’île… puis plus… ailleurs… partout… cap partout… lumières

[…]

presque… encore quelques… encore quelques… j’y suis… presque… Maunu… c’est lui… c’etait lui… je l’ais vu… presque

Momentos diversos do texto do personagem Voz em Cascando e sua evolução gradual, em zig-zag, evoluindo de frases completas a ilhas de palavras ou frases soltas.

 

No caso das duas versões analisadas, observo que a condução das leituras é sempre realizada com micro-progressões na transformação das vozes, dos modos de entoação vocal. Temos como que “micro-tempos” marcados por pequenas acelerações e desacelerações constantes, em uma estrutura rítmica das frases (como na versão RTF, de Roger Blin) ou por distensões de palavras, distensões de frases, exploração de variação na intensidade sonora, voz normal, voz murmurada (na versão BBC, de Patrick Magee).

A partir das curvas de ataque-ressonância (ADSR), realizei uma partitura aproximada das leituras de modo à melhor visualização da diferença entre as duas leituras.

Sequência aproximativa de curvas de ataque-ressonância (ADSR) na sequencia silábica de Cascando, leitura francesa e inglesa, para visualização da diferença de temporalidade das leituras, lembrando que um ataque preciso dá sensação de um tempo mais rápido do que a de ataque em crescendo-diminuendo (“messa di voce”).

 

Importante observar ainda que este jogo que nas próprias palavras faladas, que já na estrutura sonora da fala, diz respeito a alterações de sensação de tempo, à construção de um tempo flutuante que respira se expandindo e contraindo conforme sílabas, entoações, consoantes, também se dá face o silêncio e Beckett explora o silêncio das pausas.  Combinando estas duas ideias temos, a partir da proposta de estudo do compositor belga André Souris: (1) um som curto seguido de silêncio faz deste  um silêncio mais longo; (2) um som de ataque duro passa mais rápido que um som de ataque suave seguido de um crescendo de intensidade.[7]

Beckett mede bem seus silêncios, ora são 3 pontos (como em Cascando), ora linhas-pausas (como no jogo dos três sapos “krak-krek-krik” em Watt). Ensaiando com seus performers favoritos ele insistia nesta questão; medir o tempo, como observou Edith Fournier, ou ainda trabalhar como um metrônomo como lembra Sîan Phillips.

 

                    

 

III.

Quando pensei em trazer para um instrumento musical estas questões da voz, tive de primeiro refazer todas estas cadeias que estão na voz, na produção da voz, a sua modelagem física, pensando os três sistemas, o som que produzem e suas interações. E claro, ter em mente a temporalidade e o afeto a ela ligado, que cada pequeno fluxo sonoro traz consigo. Neste sentido é que neste trabalho que Annita Costa Malufe e eu estamos apresentando, trabalhamos a separação entre os modos de produção vocal refeitos em um instrumento qualquer. Aqui escolhemos um instrumento de superfície mais ampla que permite trabalhar com fricções, um pequeno gongo chinês excitado por um arco de contrabaixo (ora diretamente sobre o instrumento, ora sobre uma corda de violoncelo prese ao gongo) ou ainda por uma super-ball. São dois modos de fricção, e ainda temos os modos de percussão, que conforme o ponto da superfície resulta em características sonoras (espectrais e temporais) diferentemente.

Ao computador, refiz algumas características da voz, como a oscilação de “F0”, frequência fundamental. Pois quando falamos a voz oscila. Refiz então esta oscilação a partir de análise do espectrograma da voz da Annita e fiz passar por ela a sonoridade de um instrumento de frequência fundamental fixa, um gongo. Como observei, fiz passar por esta oscilação diversos modos de excitar a superfície do gongo: fricção com uma baqueta de borracha, com um arco de contrabaixo,  fricção de dedos e unhas, percussão de dedos, percussão de baqueta de borracha.

 

IV.

Nas leituras que realizamos, desde nossos primeiros trabalhos em 2004, Annita e eu sempre tivemos por base uma leitura de inflexão vocal reta, sem inflexões de dramatização, na busca de uma voz interna, a voz que acontece dentro de nosso cérebro quando lemos em silêncio (“una voce al interno del cranio”). O jogo principal foi o de trazer para o espaço audível a voz de quem lê em silencio. Trazer esta voz, que se multiplica, se desdobra de modos diversos, se embaralha, e se mistura com os ruídos do ambiente de leitura, o barulho das páginas sendo viradas.

Não era intenção refazer a voz, mas sim de inventar uma voz e de ler o poema como se este fosse uma partitura a ser realizada sem inflexões e também evitando o rectotonus, a voz de reza. Buscamos ter como inflexões vocais presentes apenas aquelas da palavra. Acreditar na palavra, na sua potencialidade temporal, sem anexar a ela inflexões dramáticas, as quais no máximo escondem o imediato da voz, o imediato da musicalidade da voz e do texto. Capturadas primeiro pelos hábitos de escuta, as leituras atravessadas por afetações fortes, como já observava Barthes em Le grain de la voix (BARTHES, 1972, p. 62), desfazem o tempo próprio das palavras. O hábito de escuta põe o nível de significado em primeiro plano, desfazendo a escuta do som e de suas inflexões.

No trabalho que vimos realizando, nos poemas-em-música otexto sempre foi retrabalhado. Além da temporalidade própria de cada fonema, da voz de Annita, das resultantes do tratamentos eletrônico da voz, inserimos ainda nesta leitura um outro elemento, totalmente avesso ao hábito da fala cotidiana: os jogos de aceleração e desaceleração extrema de leitura, uma prática totalmente relacionada à música. Tece-se assim um contraponto temporal do texto, o tempo próprio do texto, próprio das estruturas sonoras das palavras e a temporalidade da leitura. Tudo no limite do audível, quase silêncio, de modo a não tornar audível o jogo heterogêneo de durações que já está embutido no mistério próprio às palavras. Isto remete a Beckett, como lembra Martha Fehsenfeld sobre os ensaios com o dramaturgo: “Il faut toujours mettre en relation la fréquence d’apparition des mot et l’action que se brise avec la non continuité du temps” (FEHSENFELD, 1987).

Trabalhar então a não continuidade do tempo, ou melhor a continuidade do tempo heterogêneo, desfazendo toda conexão fácil e direta, e as refazendo mesmo que pela mudança abrupta cortando fora tudo que leve à imobilidade como registrou Beckett em suas notas de ensaio para Krapp’s Last tape”: “COUPER : Tout ce qui gêne [les] passage abrupt de l’immobilité au mouvement ou qui ralentit celui-ci” (KNOLWLSON, 1992, p. 73). Não deixar elementos que possam enfraquecer as passagens para deixar espaço livre para que um outro tempo se manifeste, um tempo vertical que se dá não na sequencia das coisas, mas no ponto de encontro entre uma coisa e outra, no choque entre as coisas.

 

Referências bibliográficas

 

BARTHES, Roland – “Le grain de la voix” , Musique en Jeu no. 9, Paris: Ed. du Seuil, 1972.

BECKETT, Samuel. L’Innommable. Paris: Minuit, 1953.

_______________. Textos para nada VIII. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

_______________. Não eu. Tradução de Lauro Baldini, inédita, s/d.

_______________. “Cascando”. In: Comedies et actes diverses. Paris: Minuit. 1964.

_______________. “Bing”. In: Têtes-mortes. Paris: Minuit. 1967, 1972.

_______________. Collected shorter plays. New York: Grove Press. 1984.

Cesar, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1999.

_____________. Crítica e tradução. São Paulo: Ática, 1999.

CUMMING, Ruth. “The effect of dynamic fundamental frequency on the perception of duration”. Journal of Phonetics no. 39. Amsterdam: Elsevier. 2011.

DELEUZE, Gilles. “L’Épuisé”. In: BECKETT, Samuel. Quad – et autres pièces pour la télévision. Paris: Minuit, 1992.

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[1] Publicada em Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (Ed. 7Letras/ Fapesp, 2011).

[2] Para os limites desse artigo, não cabe detalhar tal noção que, no entanto, trabalhei em artigo anterior: “A poética de Christophe Tarkos: a pasta-palavra” (ver MALUFE, 2015).

[3] A  apresentação original de Cascando realizada pela Radio France em 1963 intitula estes trabalho de “experimentação radiofônica”.

[4] Entre 1963 e 1964 Beckett participa da realização da experimentação radiofônica Cascando, em alemão, inglês e francês, respectivamente na Süddeutscher Rundfunk (Stuttgart), na Radio et Télévision Française – RTF (Paris). A gravação francesa é realizada em 1963, e tem participação das vozes de Roger Blin e Jean Martin.  A versão inglesa é realizada na BBC Third Program (Londres), no ano seguinte, em 1964 com vozes de Denys Hawthorne et Patrick Magee.

[5] Os primeiros resultados deste estudo foram apresentados no “Colóquio Beckett” (USP-2017) e no “International Samuel Beckett Conference” (Universidade de Estremadura, Espanha, 2018), o primeiro publicado no artigo Beckett e música: a composição do tempo (FERRAZ, 2017).

[6] Estudo mais específico sobre as noções de tempo na música da segunda metade do século XX foram apresentadas no artigo “Pequena trajetória do tempo musical” que escrevi em 2014 e que traz um pequeno mapa de ideias de tempo trabalhadas por compositores, na sua maioria ex-alunos de Olivier Messiaen (FERRAZ, 2014).

[7] Em seu texto Temps et étérnité, Olivier Messiaen cita o compositor belga André Souris, que em seu texto “Le rythme concret” observou tais diferenças temporais entre sons de ataque rígido e sons de ataque suave, e que Messiaen chama de “lei das relações atauqe-duração”, (MESSIAEN, 1994, p. 24 e 25).