A vida inconcebível. Sobre os poemas de Wisława Szymborska – Wojciech Ligęza – Tradução de Piotr Kilanowski

A vida inconcebível. Sobre os poemas de Wisława Szymborska

Wojciech Ligęza* 

Tradução de Piotr Kilanowski**

 

 Wislawa Szymborska

            Wisława Szymborska não pertence aos escritores que expõem os eventos de suas próprias vidas e contribuem assim para o surgimento do mito literário. Ao contrário dos costumes vigentes atualmente, a poeta protege a privacidade: evita confissões, não fala sobre suas experiências e sentimentos. A sua maneira de conviver com os outros sempre consistiu em conversas com amigos, e não em aparecer em frente às câmeras e discursar para as multidões. A fama mundial que o prêmio Nobel de Literatura, em 1996, trouxe a Szymborska exigia sacrifícios, porque de um dia para outro uma pessoa reservada teve que transformar-se em uma personalidade pública.

         A poeta nasceu em Kórnik, perto de Poznań, mas toda a sua vida criativa estava ligada à Cracóvia e ao meio literário da cidade. Ali ela estudou literatura polonesa e sociologia, ali, no Círculo de Jovens da Associação dos Escritores Poloneses, encontrou o ambiente propício para seu desenvolvimento artístico. Sabe-se que durante muitos anos trabalhou na redação do “Vida Literária”. Nesse semanário de Cracóvia ela publicou a série de textos Leituras obrigatórias [Lektury obowiązkowe], coordenando também – juntamente com Włodzimierz Maciąg – o departamento Correio literário [Poczta literacka], provavelmente o único desse tipo na Polônia, considerando-se o contato direto com os leitores e um rebuscado senso de humor. Szymborska estreou com o poema “Procuro palavras” [“Szukam słowa”], no caderno anexo ao “Diário polonês” intitulado “A luta” (1945 n º 3) . Em versos publicados na imprensa, que fazem referências às conquistas das vanguardas poéticas, a poeta faz um acerto de contas com a experiência da guerra, recordando o horror e o trauma, evidenciando os estragos nas mentes dos homens e no mundo, mas também refletindo sobre a língua com a qual não somos capazes de expressar experiências extremas. No entanto, nos diagnósticos da situação do pós- guerra, o otimismo coletivo daqueles tempos é perturbado em Szymborska pela inquietação, pois é difícil esquecer as vítimas da guerra e acreditar plenamente em um futuro brilhante.

A forma moderna e o tom catastrófico dos poemas do pós-guerra de Wisława Szymborska entravam em conflito com as premissas do realismo socialista, por isso o livro de poesias preparado anteriormente, depois de 1949, já não podia mais ser lançado. Durante o reinado da doutrina do realismo socialista, Szymborska publicou os volumes de poemas É por isso que vivemos [Dlatego żyjemy] (1952) e Perguntas feitas a mim mesma [Pytania zadawane sobie] (1954). Embora se possa  facilmente encontrar neles os engajamentos na agitação política, a subserviência à publicística de jornal, a participação em rituais de realismo socialista (a essa categoria pertence o epitáfio para o generalíssimo Stalin), as apologias da “grande época”, as aulas de inimizade, é, porém, difícil situar Szymborska na primeira linha da luta ideológica. Suas obras ultrapassavam,  do ponto de vista artístico, as  produções literárias medianas do realismo socialista. O erro poético e moral trouxe frutos significativos na sua poesia madura. A poeta deixou de sofrer as tentações da ideologia ou os impulsos gregários, rejeitava as verdades prontas e a sabedoria convencional. Nessa prática criativa, foram mais valorizadas as explorações individuais artísticas e intelectuais.

            Os críticos concordam que a real estreia de Wisława Szymborska se deu com o volume Chamando por Yeti [Wołanie do Yeti] (1957). Desde então, as características distintivas essenciais da sua dicção poética madura são o confronto de vários pontos de vista, os diálogos com o leitor, a ironia, o humor brilhante, a retórica em forma de perguntas, a necessidade de duvidar. Em Chamando por Yeti há um lugar separado para um acerto de contas com o sistema depois do “degelo”, em outubro de 1956. A poeta escreve corajosamente que os segundos enterros, agora oficiais, das vítimas do stalinismo foram celebrados pelas mesmas autoridades que anteriormente haviam pronunciado as sentenças de morte. Palavras que condenam à morte não podem ser revogadas, só se pode interromper o silêncio organizado (“Aos amigos” [“Przyjaciołom”],”Reabilitação” [“Rehabilitacja”], “Funeral de Rajek” [“Pogrzeb Rajka”]).

No volume Chamando por Yeti cristalizam-se os temas desenvolvidos nos volumes seguintes Sal [Sól ] (1962), Muito divertido [Sto pociech] (1967), Todo caso [Wszelki wypadek] (1972) e Um grande número [Wielka liczba] (1976). Mencionemos as reflexões sobre a história entendida como uma história de escravidão (“Dois macacos de Bruegel” [“Dwie małpy Breughla”], “Aula” [“Lekcja”]), citemos a defesa da verdade individual, a rejeição da lei da sociedade de massa (“Fotografia da multidão” [“Fotografia tłumu”], “Um grande número” [“Wielka liczba”]), o interesse pelas ciências naturais, incomum na poesia moderna, a sensação que  o ser humano tem de ser exilado do universo da natureza (“Macaco” [“Małpa”], “Entrevista com a pedra” [“Rozmowa z kamieniem”), a reflexão sobre a antropogênese (“Nota” [“Notatka”], “Caverna” [“Jaskinia”], “Muito divertido” [“Sto pociech”). A história não pode ser considerada como a mestra da vida, pois em todas as épocas, bárbaras ou iluminadas – indistintamente, o homem parece ser uma besta sedenta por sangue, alguém que semeia o terror e a morte, alguém que por meio da destruição domina a terra. Contrariando o clamor dos moralistas, o diagnóstico ainda é válido – a mudança terá que ser transferida novamente para um futuro indefinido (“Ocaso do século” [“Schyłek wieku”]). No poema “Da expedição não realizada para o Himalaia” [“Z nie odbytej wyprawy w Himalaje”], Shakespeare e a música – pelo menos no âmbito da esperança – devem compensar o mal generalizado. No entanto, no poema “Thomas Mann” [“Tomasz Mann”], no elo final da cadeia evolutiva das espécies é colocado um mamífero que pode criar mundos próprios, fazendo sinais no papel.

É impossível ignorar os estudos poéticos  de Szymborska que tratam de um grave problema da existência individual. O ser humano, lançado à crueldade da história e às brincadeiras do destino, que não encontra consolo na transcendência, está envolvido num jogo existencial de regras pouco claras. É incrível essa natureza que não conhece moderação na criação e na destruição (“Chegada” [“Przylot”]); impenetrável – o lugar dos seres humanos em aterrorizantes espaços cósmicos. Por que viemos ao mundo – agora, neste lugar, e nesta forma? Será que o arranjo dos acasos, que é a vida, tem um significado oculto? Como a existência humana limitada pelo tempo remete à eternidade? Tais questões sempre estão presentes nos poemas mencionados. Os elementos desconhecidos demandam ordenação, mas uma resposta significativa nunca será dada. “A vida inconcebível” (“Utopia” [“Utopia”]), surpreendendo a cada segundo, é um desafio constante para a mente. A abordagem de Wisława Szymborska parece ser matreira, porque numa forma de conversa, aparentemente trivial, muitas vezes jocosa, estão inseridas questões metafísicas de peso.

Na base do pensamento poético de Wisława Szymborska aparece o espanto com a multiplicidade das coisas existentes, a surpresa com o fenômeno da existência que, ao mergulhar no segredo metafísico, é cercada pela onipresença do nada (ex. “O nada virou-se do avesso também para mim…” [“Nicość przenicowała się także i dla mnie..” ). Assim, o dom da vida, obtido sem o mérito – como um presente de aniversário – deve ser investigado com precisão (“Espanto” [“Zdumienie”]). É verdade que a maioria dos fenômenos e eventos “na despercepção se perde, /no despensamento” (“Um grande número”), mas tanto mais é preciso cuidar para não desperdiçar a riqueza, que é trazida pela estada temporária entre os vivos. A poeta louva “o milagre da existência” inscrito na ordem cósmica, reflete sobre o fenômeno da vida individual submersa na multiplicidade dos seres (“Aniversário” [“Urodziny”], “Espanto”, “Discurso na seção de achados e perdidos” [“Przemówienie w biurze znalezionych rzeczy”]).

O milagre da existência cumpre-se continuamente, mas não sabemos reconhecê-lo. Ele não se manifesta por meio de metamorfoses ou intervenções de forças externas a este mundo, muito pelo contrario: está criptografado nos eventos cotidianos, nas coisas comuns. Em Szymborska, a atenção e a sensibilidade revelam um excesso de maravilhas nunca suficientemente admirado (“A Feira de maravilhas” [“Jarmark cudów”])

Nesses poemas, à coleção de exceções maravilhosas, deve-se incluir o amor, sobre o qual se fala muito, mas que pode ser realmente experimentado por uma quantidade insignificante de pessoas. A paixão amorosa rompe os padrões da percepção, provoca, mas também dignifica, a união dos amantes, portanto, deve ser considerada como uma conspiração contra o mundo todo (“Amor feliz” [“Miłość szczęśliwa”]). No entanto, a pessoa amada corre o risco de perder a força da sua identidade, tornando-se uma outra pessoa, alguém imaginário (“Ao vinho” [“Przy winie”]). A loucura de Ofélia pode ter o seu lugar no palco, mas a trágica atuação amorosa em Szymborska é sobriamente julgada (“O resto” [“Reszta”]) . A poeta rejeita os mitos românticos e sentimentalistas, não confia nas lamentações patéticas. Nas histórias sobre o abandono e a rejeição usa linguagem cotidiana e gêneros literários populares (“Balada” [“Ballada”], “Sombra” [“Cień”]). Os laços fortes entre as pessoas rapidamente caem na rotina e na indiferença, e a separação é acompanhada pela paralisia das capacidades de comunicação, o drama da linguagem impotente (“O encontro inesperado” [“Niespodziane spotkanie”, “Na Torre de Babel” [“Na wieży Babel”]) . Livrar-se das ilusões é uma terapia dolorosa, mas também eficaz, no sentido de que o ser humano solitário vê claramente os desafios da existência.

O fascínio pelos universos próprios da arte é outro tema importante de Szymborska. Nas representações da pintura, “a vida inconcebível” está sujeita às leis da convenção, assim é controlado o caos dos acontecimentos, sujeito a um acordo quanto às regras da estética. Mais ainda – a mão do artista é movida pelo desejo de perfeição, contradito pela prática da ação humana cheia de erros (“Engano” [“Pomyłka”]). Nos poemas em que a poeta cria excelentes correspondentes dos estilos de pintura (“Miniatura medieval” [“Miniatura średniowieczna”], “Mulheres de Rubens” [“Kobiety Rubensa”], “Mosaico bizantino” [“Mozaika bizantyjska”]), há confrontos constantes: a arte não consegue dominar a multiplicidade da existência, mas torna-se supraconsciente daquilo que é experimentado espontaneamente.

As écfrases de Szymborska descrevem a pintura realista holandesa (“Paisagem” [“Pejzaż”], “Vermeer” [“Vermeer”]), esculturas de tempos pré-históricos (“Fetiche de fertilidade do Paleolítico” [“Fetysz płodności z paleolitu”]), a xilogravura japonesa (“Gente na ponte” [“Ludzie na moście”]), a vanguarda do século XX (“A imagem” [“Wizerunek”]). Deve-se acrescentar que as obras de arte em Szymborska formam a “arte da memória”, passam para a dimensão dos sonhos (“Memória enfim” [“Pamięć nareszcie”], “Elogio do sonhos” [“Pochwała snów”]), moldam as relações interpessoais. Pintura, música, cinema, fotografia criam mundos alternativos, talvez melhores e mais bonitos, mas marcados pela mancha da ruptura com a realidade. Escrevendo sobre obras-primas, Szymborska não esquece do pavor da existência, pois no paraíso dos estetas não foi designado espaço para o sofrimento humano (“O clássico” [“Klasyk”]). A contemplação da arte é para Szymborska uma espécie de exclusão da existência, um tipo de liberdade ilegal, quando suspendemos as obrigações diárias (“Paisagem” [“Pejzaż”]). A artista opõe-se à ação destruidora do tempo em duas dimensões diferentes: pausa o instante presente – e assegura a si mesma um lugar na memória cultural (“Gente na ponte”). No entanto, em poemas posteriores – do volume Aqui [Tutaj] – uma obra-prima da pintura torna-se uma espécie de relógio metafísico, que dá valor para os nossos horários e dias rotineiros. O olhar atento do artista captou um pequeno acontecimento, um dos muitos, e a mão do mestre eternizou na tela a história de uma vida comum. Então se a grande arte persiste, o mundo (pior do que aquele mostrado na imagem) não merece ser destruído (“Vermeer”).

A discrição se estende também à literatura. Partindo do pressuposto de que a poesia deve defender a si mesma, Szymborska não comenta diretamente as suas obras, apenas às vezes espalha nos poemas frases sobre a linguagem e o estilo (“Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas/ e depois me esforçar para fazê-las parecer leves”, em “Sob uma estrela pequenina” [“Pod jedną gwiazdką”]), ou como na famosa “A alegria da escrita” [“Radość pisania”], cética, reflete a respeito do mito do poder do sobre os mundos por ele criados. Entre as exceções podemos mencionar  “Resenha de um poema não escrito” [“Recenzja z nie napisanego wiersza”]. A palestra sobre sua própria prática criativa tem sido relacionada aqui com a revisão dos principais temas e inspirações filosóficas (é citado Pascal, há alusões aos existencialistas), mas os autocomentários da poeta são refletidos no espelho da ironia, da diversão, do grotesco .

Em vários momentos acontecem mudanças nessa poesia de sabedoria e experiência. Os volumes recentes de Wisława Szymborska Fim e começo [Koniec i początek](1993),  Instante [Chwila] (2002), Dois pontos [Dwukropek] (2002), Aqui (2009), Basta [Wystarczy] (2011) de forma mais clara do que antes, revelam as reflexões sobre tempo, transitoriedade e morte. O lugar de destaque é  dado a elegíaca poesia do pesar, retornam as questões sobre se existe um observador eterno de nossas ações e escolhas e se a nossa vida não é por acaso o objeto do experimento de poderes sobrenaturais extraterrestres (“Talvez isso seja tudo” [“Może to wszystko”], “Komedyjki” [“Comediazinhas”]), cresce a tensão semântica entre a alegria e o desespero. O ponto marcante é definido pelo volume Fim e começo, no qual o tom escuro da poesia sobre o definitivo acerto de contas apenas ocasionalmente, como se por um momento, é iluminado pelas luzes do humor, suavizado pela ironia, uma arma bastante ineficaz na luta contra o inevitável.

A linha da dúvida filosófica e da quebra das ideias estabelecidas é prorrogada. Por exemplo, no poema “Céu” [“Niebo”] a misteriosa esfera paradisíaca é identificada com o ar, é algo comum, mas, preenchendo o ser humano traz também a condenação existencial. A existência real, diante da qual não há recurso, nem possibilidade de fuga para os sonhos ou para as fantasias ontológicas, oferece apenas roteiros prontos e, sendo assim, a complementação da vida pela morte (“O estado de alerta” [“Jawa”]). O ser humano de Szymborska resulta ser um refém da existência, alguém apanhado na armadilha do existir.

Nos poemas de Szymborska do período tardio são superados os gêneros tradicionais de lamentos e elegias. Temos de lidar com a aritmética metafísica cotidiana, com a contabilidade da morte, ao invés de um resumo definitivo. Por enquanto, ainda se pode trocar com Parca palavras aparentemente banais “Até mais” (“Entrevista com Átropos” [“Wywiad z Atropos”]), pois, afinal, um dia – como diz a poeta – será preciso pagar com o corpo, pelo corpo cedido para o uso (“Nada dado” [“Nic darowane”], “Aqui”). O grande desafio para a imaginação é o mundo após a partida do ser humano (“No dia seguinte – sem nós” [“Nazajutrz – bez nas”]). O escândalo da morte, que é comum no mundo natural, pode ser contrastado com a tristeza impotente (“A cada um, um dia” [“Każdemu, kiedyś”]), pois se cumpre a lei biológica e apenas a nossa consciência dá o sentido trágico à morte. Para que a ausência seja capturada de uma forma dramática, a morte de um ente querido é observada a partir da perspectiva de um gato (“Gato num apartamento vazio” [“Kot w pustym mieszkaniu”]). É interessante notar que a linguagem que multiplica perífrases, que reúne suposições não é adequada para dizer algo relevante sobre o fenômeno da morte (“Cálculo elegíaco” [“Rachunek elegijny”]). É possível fazer cáculos estatísticos particulares (com base na especulação), nos quais poderia determinar-se um aspecto da condição humana, ou uma característica, mas a propriedade mais certeira de cada ser humano, confirmada em cem por cento dos casos é a sua morte (“Contribuição para a estatística” [“Przyczynek do statystyki”]).

O pensamento e a ação humana ainda (imprudentemente) giram em torno da vida. A terra destruída renasce após cada derrota, a vegetação cobre os campos de batalhas, as pessoas se restabelecem nas ruínas (“Realidade exige” [“Rzeczywistość wymaga”], “Fim e começo”]). O ser humano – um ser mortal procura substitutos da imortalidade tentando ir além do “aqui e agora”. Na desventura da existência não se deve menosprezar o papel reconfortante da arte, que muitas vezes pode parecer uma mensagem do mundo superior (“Ella no céu” [“Ella w niebie”]). Um momento vivido intensamente, quando o tempo pára de fluir, é livre do pavor existencial (“Instante”, “Pode ser sem o título” [“Może być bez tytułu”]). Voltam a aparecer as questões sobre o endereço cósmico do ser humano (“Aqui”, “Desatenção” [“Nieuwaga”]) e sua incompreensível existência no remanso do universo (“Baile” [“Bal”]). Os temas de estar no mundo, das atitudes do ser humano diante do mistério da existência, as referências cósmicas da vida humana, as destinações finais e a morte nos volumes Todo caso e Um grande número são reforçados pela meditação filosófica poética. No entanto, são as perguntas sobre a possibilidade da existência do Absoluto, sobre a desconhecida Mente Eterna, que (talvez) gerencia as atividades humanas e apaga a persistente sensação de aleatoriedade da existência, que com mais intensidade aparecem nos volumes de Fim e começo, Instante, Dois pontos, Aqui, Basta .

A hipótese da existência de um Ente desconhecido que tem o poder de criar e  de “controlar” a vida humana é formulada de um modo muito cuidadoso, pois  nos poemas de Szymborska predominam as perguntas, dúvidas e suposições. Os limites daquilo que é diretamente percebido, registrado pelos sentidos, parecem ser muito estreitos, então talvez haja “algo mais”, algo que poderíamos – de modo aproximado,  descrever com o nome de sacrum. Como disse, a poeta coloca em primeiro plano a incerteza cognitiva, por isso a leitura do mundo e do “extramundo” não produz resultados satisfatórios. No pensamento de Szymborska sobre transcendência, nas inquirições com hipóteses suspensas, é importante a distância cósmica dos pontos de observação, ou a colocação destes para além do domínio da experiência humana.

Tomemos, como exemplo, o poema “Talvez tudo isso” [“Może to wszystko”], no qual aparece o personagem pouco definido do “Chefe”, que de longe observa a ordem terrena, conduzindo as pesquisas “laboratoriais” sobre humanos e comunidades. A um certo “Ele” podem interessar algumas exceções e episódios esparsos. Estas reflexões  poéticas não definem se O Grande Experimentador, ou o demiurgo vigilante, insone desconhecido Criador (“O estado de alerta”), existe e pode ser descrito de acordo com a concepção religiosa do Ser Divino. Pelo contrário, é o ser humano que se esforça para dar sentido à sua existência e nutre a esperança indefinida de que algum outro, extremamente estranho, cuide de nós, ou apenas perceba a nossa existência, e que o confinamento na existência real não será a prisão definitiva. No entanto, os “pesquisadores cósmicos” não conseguem comover-se com nada, nem com o destino humano, e têm, portanto, corações frios.

O ser humano – Joguete de Deus – na versão criada por Szymborska é um produto de uma experiência com propósito incerto, um figurante no grande teatro do universo, um comediante com veia trágica. Os Anjos “desumanos” que de longe observam o jogo da vida  não se compadecem com  dilemas sublimes, nem com escolhas existenciais servidas em grande estilo. Só podem aplaudir com asas a farsa ou o burlesco, gêneros nos quais, como ironicamente ensina a poeta, o homem é revelado em sua verdadeira natureza, que é a vulnerabilidade e a ameaça de múltiplas opressões (“Comediazinhas”). A aventura cósmica do ser humano virada do avesso parece muito interessante. No poema de Szymborska  “A versão dos eventos” [“Wersja wydarzeń”], cada um de nós é o astronauta. que em vez de iniciar a conquista do espaço, para que o desconhecido se torne conhecido, se permite ser jogado de um não-ser longínquo no universo para dentro da existência – arriscando a participação nos acontecimentos estranhos da existência, pois são as coisas terrenas que são estranhas e as pessoas acreditam levianamente que podem ser domesticadas totalmente.

Nos encontros de Szymborska com o Mistério de nossa existência é invariavelmente obrigatório o modo condicional. Considerações metafísicas nas obras da ganhadora do Prêmio Nobel também incluem viagens no tempo, oposições entre o instante e o durar, colisões entre as limitações da existência e o infinito, assim como imagens fingidas de eternidade inacessíveis à mente humana. Nos poemas tardios discutidos aqui, a exploração poética do Espaço tem um papel extremamente importante. Szymborska sempre retorna ao assunto da casualidade e do lugar periférico da vida humana perante a vastidão do universo (“Desatenção”, “Baile”), do enraizamento temporário do ser humano em um pequeno planeta –onde gira com a Terra e participa de uma peça extraordinária “na plateia estelar e subestelar” (“Lista” [“Spis”]). No entanto, a reflexão sobre a efêmera presença humana implica perguntas sobre coisas definitivas – uma viagem em direção a outros espaços, ver-se excluído de um jogo fascinante (“Aqui”, “Lista”, “Antes da viagem” [“Przed podróżą”]).

É interessante notar que a poeta evita a terminologia filosófica, rejeita a seriedade do discurso existencial. Este lugar é ocupado pelas metáforas do carnaval, dança, teatro, voo, pagamento de empréstimos bancários. Há nisso bastante dissimulação e humor, mas a seriedade dos assuntos inevitáveis não desaparece. O pensamento sobre o fim não pode ser revogado, mas a apologia do momento, o apego às coisas pequenas e aos assuntos concretos, cada segundo de encanto e cada partícula de tempo vivida com atenção, mesmo preenchida com alguma atividade trivial, tornam-se a defesa contra as lamentações antecipadas. Tudo o que está acontecendo, contrariamente às ideias preconcebidas sobre gestos e palavras imortais, coloca-se, se assim formos pensar, no grande todo da existência. Szymborska aponta o triunfo do ser sobre o nada (mesmo sendo apenas instantâneo), e, à indiferença do cosmos, contrapõe a força da gravidade do seu próprio pedaço de espaço particular (“Metafísica” [“Metafizyka”]). Nesses versos, os exercícios de imaginação cósmica não estão ligados apenas às deduções sobre a estranheza de outros seres, à incansável admiração metafísica e ao estudo de sua própria ignorância (“Aqui”, “O microcosmo” [“Mikrokosmos”]), mas também às perguntas cognitivas e à visão das coisas a partir de vários pontos de vista. Para perceber a multiplicidade dos “pontos de vista” diferentes e a relatividade dos nossos diagnósticos, basta olhar para o céu estrelado (“Velho professor” [“Stary profesor”]).

            A obra madura sintetiza experiências, não recria mundos poéticos, mas sim complementa os temas e mensagens antigos, e, em vez das repetições, a autora apresenta desenvolvimentos significativos. Nos poemas tardios de Wisława Szymborska, generalizemos, nenhuma certeza é alcançada e os problemas cognitivos mais importantes permanecem em aberto. E assim voltam as reflexões sobre a  história, o destino, o crime e a crueldade (“Um monólogo do cão enredado na história” [“Monolog psa zaplątanego w dzieje”], “Algumas pessoas[3]” [“Jacyś ludzie”], “Fotografia de 11 de Setembro” [“Fotografia z 11 września”]), a ambiguidade do tempo que salva (“A vida difícil com a memória” [“Trudne życie z pamięcią”]), as ações estranhas do acaso (“Sessão” [“Seans”], “Ausência” [“Nieobecność”]), a proximidade e o afastamento dos outros seres da natureza (“Silêncio das plantas” [“Milczenie roślin”], “O auto da moralidade florestal” [“Moralitet leśny”]). Dosados com moderação, os fragmentos de autobiografia tem na obra de Szymborska caráter generalizador. O “Eu” de tempos passados surge como um estranho, pois provavelmente a continuidade da vida é uma ilusão (“Adolescente” [“Kilkunastoletnia”]). Às vezes, uma descrição dos medos da infância torna-se o ponto de partida para uma reflexão sobre a mente madura, que distingue os terrores fantasiosos do horror do mundo real (“Poça” [“Kałuża”]).

A pessoa não consegue mais apoiar-se em sua memória, a continuidade da biografia é questionada, as memórias não se organizam em histórias claras. À ilusão sentimental de que as lembranças do passado transmitem algo de significativo, a poeta opõe uma visão dos eventos passados – desenhados de um modo esquemático e pouco original – do aprisionamento em um mundo do passado, da interrupção no desenvolvimento, quando o interesse naquilo que está por vir enfraquece (“A vida difícil com a memória”). O sentimento de casualidade, ou – em outras palavras – o jogo dos acasos que poderiam compor diferentemente as sequências de cada vida, derruba a convicção de um assentamento seguro no tempo-espaço que nos foi dado. Mesmo numa ingênua imagem da escola, ou em uma bela história sobre a genealogia familiar fica sublinhada a preocupação com a relatividade de quaisquer fatos consumados (“Ausência”).

Szymborska acrescenta epílogos a suas próprias considerações sobre o amor feliz e infeliz, vendo essas questões a partir de uma perspectiva remota e, com o aumento da distância, cresce a empatia para com os fascínios amorosos e as decepções enfrentadas pelos outros (“O primeiro amor” [“Pierwsza miłość”], “Divórcio” [“Rozwód”], “Perspectiva” [“Perspektywa”], “No aeroporto” [“Na lotnisku”]). A cuidadosa observação da vida nesses poemas não é separada dos estudos poéticos sobre os artistas e a arte. A poeta trata as grandes figuras do passado como pessoas amigas, o que não tem nada a ver com falta de respeito ou de admiração. O material para as reflexões é extenso e os tipos de comentários, frequentemente quebrando paradigmas discursivos adotados pela crítica, parecem ainda mais surpreendentes. Por exemplo, a conversa imaginária com Słowacki torna-se um pretexto para refletir sobre o papel da imaginação que apenas compensa a impossibilidade de plena participação nos eventos do passado (“Na diligência” [“W dyliżansie”]). Esse passado por meio da descrição de realidades experimentadas sensorialmente ressuscita na palavra poética. Por sua vez, a assombrosa obra de Proust sobre o tempo redescoberto, recuperado na memória e na escrita, provoca considerações (ridicularizantes e sérias) sobre a mudança rápida e a leviandade da cultura de massa em nossos tempos aparentemente felizes (“Falta de leitura” [“Nieczytanie”]) .

A poeta dá continuidade ao tema das “más notícias” darwinianas sobre a luta das espécies, da crueldade da natureza e da paradoxal inocência dos animais – privados de um sentido moral, conforme lemos no poema “Acontecimento” [“Zdarzenie”]. Os seres humanos também não estão livres da lei de devorar – incorrigíveis carnívoros de “corações sensíveis” (“Coerção” [“Przymus”]). Os grandes criminosos constituem um mistério incomum, porque afinal de contas, as condições biológicas não dizem nada sobre a propensão para o mal (“Palma da mão” [“Dłoń”]). Nos poemas tardios, não se pode ignorar os relatos de sonhos (ex. “Os sonhos” [“Sny”], “Adormecida” [“W uśpieniu”]), distinguindo-se também um esboço poético dedicado à “pequena criação” que se repete, isto é, à nova criação do mundo, quando das sombras surgem os contornos das coisas (“Primeiras horas” [“Wczesna godzina”]). Aos temas prediletos de Szymborska devemos acrescentar os tratados linguísticos – sobre as possibilidades da fala, as usurpações da linguagem, a estranheza dos procedimentos literários, o diálogo com o leitor e o destino incerto dos poemas (“Tudo” [“Wszystko”], “Ideia” [“Pomysł”], “Para o meu próprio poema” [“Do własnego wiersza”]). Nos poemas “As três palavras mais estranhas” [“Trzy słowa najdziwniejsze”] e “Basicamente cada poema” [“Właściwie każdy wiersz”] pode-se realmente captar o esboço do programa poético – o artista da palavra pode transmitir apenas um estilhaço da existência, capturar um instante, registrar uma experiência momentânea, deve contar com a volatilidade da existência, a transitoriedade dos acontecimentos, deve suspender o juízo definitivo, aperfeiçoando-se na arte de fazer perguntas.

No volume Basta Szymborska contrapõe a elegias e despedidas a curiosidade incansável pelo mundo, mesmo que os costumes e a cultura contemporâneas revelem extrema estranheza. Se a presença vigilante fosse rejeitada, e nos poemas encontrássemos a renúncia, a poeta teria negado os principais pressupostos éticos e estéticos do seu trabalho. Métodos especializados de análise, grandes programas de computador conseguem explicar tudo, ler cada mensagem, a não ser os sentimentos e o mistério da existência individual (“Confissões de uma máquina leitora” [“Wyznania maszyny czytającej”]). Nesse livro desenvolve-se uma discussão antropológica, a morte do ser humano desperta inquietação. Nos poemas “Alguém que observo há um certo tempo” [“Ktoś, kogo obserwuję od pewnego czasu”] e “Existem aqueles que” [“Są tacy, którzy”] Szymborska, referindo-se às ideias anteriores em sua poesia, volta a defender a existência individual, escreve sobre o direito a uma vida periférica, sobre a opção pela privacidade. Aprecia também as ambições modestas de pessoas desconhecidas, anônimas, louva as buscas e dilemas, faz apologia da incerteza e da admiração. Rejeita a visão perturbadora do homem-ciborgue – escravo da pragmática, um conformista perfeito.

A vida seria muito superficial, banal, desprovida de valor se desaparecessem a inquietação e o mistério (“Terrível sonho do poeta” [“Okropny sen poety”]). O ser humano, que não para de surpreender a poeta, é um ente compassivo e criminoso, trivial e sutil, perdido e doador de sentido ao mundo existente, totalmente corpóreo e tecido com ideias abstratas. O ser humano, há séculos, dá esperanças de melhorar, mas estas não se concretizam, é uma constante potencialidade, um indivíduo em conflito consigo mesmo, um misterioso monstro com reações e possibilidades imprevisíveis.

 

 



[1] Historiador da literatura, crítico literário, ensaísta, professor títular no Departamento de Estudos Poloneses da Universidade Jaguelônica, vice-presidente na filial de Cracóvia da Associação de Escritores Poloneses. Autor de vários livros sobre a literatura do exílio, a poesia de Wisława Szymborska e de Zbigniew Herbert, entre outros. O presente artigo é a tradução da sua conferência proferida na UFPR, por ocasião do evento “Pelas veredas da poesia polonesa do século XX” em 2013.

[2] Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura pela UFSC. A presente tradução foi realizada com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil. A tradução contou com a revisão de Eduardo Nadalin e sugestões de Eneida Favre, a quem devo gratidão .

[3] O título do poema na coletânea traduzida por Regina Przybycien ficou como “Certa gente”.

 

 

*Historiador da literatura, crítico literário, ensaísta, professor títular no Departamento de Estudos Poloneses da Universidade Jaguelônica, vice-presidente na filial de Cracóvia da Associação de Escritores Poloneses. Autor de vários livros sobre a literatura do exílio, a poesia de Wisława Szymborska e de Zbigniew Herbert, entre outros. O presente artigo é a tradução da sua conferência proferida na UFPR, por ocasião do evento “Pelas veredas da poesia polonesa do século XX” em 2013.

** Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura pela UFSC. A presente tradução foi realizada com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil. A tradução contou com a revisão de Eduardo Nadalin e sugestões de Eneida Favre, a quem devo gratidão .