Chklovski não era cocoroca – Myriam Ávila

CHKLOVSKI NÃO ERA COCOROCA! 

Myriam Ávila*

 

Viktor Chklovsky

            Não parece haver nada mais antigo do que o formalismo russo, com sua abordagem linguística da literatura, suas tipologias, sua aderência estrita ao texto. Se Tynianov, Eikhenbaum, Jirmunski já eram, se as funções de Jakobson e o dialogismo de Bakhtin foram se refugiar nos escaninhos dos manuais, que dizer do impronunciável Chklovski?

            Como ficou velho esse garoto que aos 21 anos fundou o OPOYAZ (Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética) e aos 22 ajudou a fazer a Revolução Russa, partiu para o front, foi ferido e conquistou uma medalha por bravura!

            “A arte como procedimento” foi escrito ainda em 1917 e revolucionou, por muitas décadas, o estudo da literatura, lançando o conceito de ostranenie (estranhamento). Sobrevivente entre seus irmãos, dos quais dois caíram vítimas do regime soviético, enquanto sua irmã morreu de fome em 1919, Chklovski viveu até a idade de 91 anos, ajeitando-se de uma maneira ou de outra ao ambiente cultural censurado da URSS.

            Mas um breve exílio em Berlim, nos anos de 1922 e 23, durante o qual sofreu com uma terrível nostalgia de sua terra, o levou a apelar para a escrita ficcional de base autobiográfica como forma de superação. Usando a correspondência que mantinha com Elsa Triolet, montou um romance epistolar em que os próprios dados autobiográficos de seu envolvimento com aquela que chamou de Alya em seu livro são inerentemente ficcionais, já que a paixão parece não ter sido nunca compartilhada por ela, tendo sido alimentada principalmente pela imaginação.   

            Zoo, ou cartas não sobre amor é o título dessa interessantíssima coleção de cartas, das quais algumas escritas pela desdenhosa musa. Ali, movido pela dificuldade de evitar escrever sobre amor – tema proibido por sua correspondente – Chklovski fala de circo, de teoria da literatura, de automóveis, de pintura, sem conseguir deixar de voltar ao tabu que se torna o motor do seu texto.

 

            “Você me deu duas tarefas:

            1) não te telefonar     2) não te visitar

            Portanto, sou agora um homem muito ocupado”

                                                           (Carta Nove)

 

            “Mas não tenho medo. Sei como Dom Quixote é feito.”

                                                           (Carta Nove)

            “Ouça com cuidado: suas palavras caíram em ouvidos moucos. Quer dizer: eu costumava martelar rebites em caldeiras; eu segurava os rebites por dentro com tenazes. Um barulho estrondoso nos meus ouvidos. Agora vejo os lábios das pessoas se movendo mas não ouço nada. A vida me ensurdeceu e as pessoas surdas são extremamente distantes.” (Prefácio à Carta Dezenove)

           

            “Seu Hispano-Suiza é caro, mas não presta. O chassis costuma vir com assentos dobráveis em lugar de portas. Isso deve agradar aos gigolôs.”(Carta Vinte e Seis)

           

            “De todo modo, vocês não entenderão pé nem cabeça disso tudo. Afinal, as partes cruciais foram podadas pelo revisor.” (Prefácio à Carta Dezenove)

 

            Além das surpresas de Zoo, que, segundo Chklovski, ainda leva um outro título alternativo: A terceira Heloísa, o teórico do formalismo envolveu-se também com o cinema, escrevendo vários roteiros. O primeiro, e mais interessante, é o que preparou para Kuleshov a partir de – que estranho! – um conto de Jack London intitulado, muito a propósito, “O inesperado”. O filme de Kuleshov foi chamado Po zakonu (De acordo com a lei) e exibe alguns exemplos ótimos da técnica de montagem criada pelo diretor e utilizada com maestria por Eisenstein. Hoje capaz de provocar maior estranhamento do que na época, dada a encenação expressionista e exageros retóricos de imagem, Po zakonu merece ainda ser visto por vários motivos, entre os quais a série de ícones visuais que movimenta não é o menor.

            Embora o Chklovski acomodado da meia-idade e velhice não tenha muito mais para recomendá-lo do que os relatos autobiográficos (Uma viagem sentimental, Diário) que sua agitada vida de jovem torna valiosos, vale a pena voltar a ele “como se o víssemos pela primeira vez”, com “a sensação de não-coincidência de uma semelhança” [“A arte como procedimento”].

            Visto de perto – e comparado conosco – Chklovski definitivamente não era um cocoroca.

 

*Professora UFMG