Notas sobre Anna Świrszczyńska e A poesia contra os mitos – Piotr Kilanowski

Notas sobre Anna Świrszczyńska

Piotr Kilanowski[2]

Anna Swir

Anna Świrszczyńska (7.02.1909 – 30.09.1984) foi poetisa, dramaturga e prosadora polonesa. A aparente dificuldade criada pelo seu nome (leia-se algo como Xfirchtchinska, ou Xifirchtchínska) fez com que durante um tempo fosse conhecida nos países anglofalantes pelo seu codinome utilizado como soldada da resistência antinazista “Swir”. Começou a publicar poesia em 1930. Seu primeiro livro, Wiersze i proza (Poemas e prosa), data de 1936. Daquela época data também o início de uma importante vertente de sua obra – a litertura infanto-juvenil, grande parte dela baseada na história e lendas polonesas.

Durante a guerra, além de participar da resistência, continuou a escrever. Seus poemas (Rok 1941 – Ano 1941) e dramas (Orfeusz – Orfeu) receberam prêmios das organizações culturais clandestinas. Participou do Levante de Varsóvia (1944) como enfermeira. As experiências daquela época foram a base para o livro Eu construia a barricada (Budowałam barykadę), publicado somente em 1974, trinta anos depois dos acontecimentos.

Além da litertura infantojuvenil e testemunhal, Świrszczyńska foi talvez a mais importante poeta feminista polonesa depois da guerra. Seus livros como Jestem baba (Sou mulher) de 1972 ou Szczęśliwa jak psi ogon (Feliz como rabo de cachorro) de 1978 são atentas observações do mundo feminino descritas numa linguagem direta, econômica, despudorada e precisa. As descrições da psiquê, sensualidade, corporalidade e sexualidade femininas, a apresentação de pontos de vista e percepções diferentes das masculinas fizeram dela uma poeta, que, apesar de transcorrido um quarto de século desde a sua morte, continua na vanguarda da poesia feminina. Ciente de sua importância, o poeta ganhador do prêmio Nobel, Czesław Miłosz (1911-2004), além de traduzir sua poesia para o inglês, escreveu sobre ela o livro Jakiegoż to gościa mieliśmy (Mas que hóspede que nós tivemos), no qual ressaltou sua importância para a literatura moderna polonesa.

 

A poesia contra os mitos [1]

Piotr Kilanowski[2]

 

A guerra é uma presença constante na tradição ocidental desde o seu princípio, como atesta um de seus textos fundadores: a Ilíada. A formação tradicional baseada em textos que justificam e santificam a violência por meio da criação e cultivo do mito heroico leva às guerras. O fascínio que a violência exerce sobre nós, assim como a identificação com os heróis que mataram ou morreram defendendo uma “causa justa”, turvam a nossa percepção de que a violência é sempre um mal. Mesmo quando é um mal necessário.

Talvez tenha sido essa percepção que levou a poeta Anna Świrszczyńska (1909 – 1984) à necessidade de dar um testemunho sobre a guerra que vivenciou. Vivia num país totalitário, onde a propaganda oficial educava todos a “lutar pela paz” contra os inimigos da paz que se encontravam do outro lado da cortina de ferro. Vivia num país cuja identidade nacional nos últimos séculos afirmou-se por meio do mito romântico da doce morte pela pátria, num mundo que glorificava heróis e mártires e esquecia de condenar a violência e a guerra. Ao contrário, a Polônia armava-se para se defender. E como a velha máxima diz que a melhor defesa é o ataque, novamente se preparava para a guerra. O esquecimento da dor real, do horror, da desumanização que uma guerra traz consigo e a transformação do trauma em ressentimento permitem a

perpetuação das guerras. O dever da testemunha, o dever do ser humano, o dever da poeta é lembrar que “a guerra não tem rosto de mulher”, como disse Svetlana Alexiévitch. E assim Świrszczyńska resolve escrever mais uma epopeia sobre a guerra na tradição ocidental. Diferente da epopeia homérica, esta é composta de quadros quase fotográficos, é econômica, cheia de silêncios e realidade crua, há nela heróis, que na sua maioria são anônimos e estão mortos. Seu tema é o Levante de Varsóvia, do qual a autora participou como enfermeira – 63 dias de cruel guerra urbana, que culminou com a destruição de uma cidade e o morticínio de seus habitantes.

Como a Troia da primeira das epopeias, Varsóvia foi quase totalmente destruída. Os moradores que sobreviveram ao Levante, após sua queda, foram levados presos para outros lugares. Alguns para campos de concentração, outros para trabalhos forçados, outros ainda simplesmente obrigados a abandonar seus lares e a cidade, que, então, foi submetida à destruição planejada pelos exércitos de Hitler. No lugar de uma grande chacina começou a nascer mais um mito, mais uma lenda heroica. E é por isso que a poeta inicia seu livro com um lamento, um poema que leva um título esperançoso, tentando encantar a realidade e afirmando que este foi “O último levante polonês”. Na sequência vem a dedicatória para a filha, ou seja, para os descendentes, remetentes da verdade que a poeta quer transmitir. E depois seguem os quadros da guerra. Os títulos, como títulos de quadros, precedem o que será narrado, descrevem o quadro que será lido a seguir. Os poemas são curtos, descrições aparentemente objetivas, como que ecfrásticas. A autora, filha de um pintor, antes da guerra escrevia poemas que descreviam obras plásticas. Nesses poemas-quadros vemos os seres humanos que a guerra transforma em objetos, em carne que sofre, em corpos. Corpos movimentados pelo medo, pelas ordens, pelos mitos, pela guerra. Corpos mortos e corpos que matam. O excesso de humanidade que não permite “Atirar nos olhos de um homem” é, de imediato, punida com a redução ao estado de objeto – a morte.

Ao lado dos iníquos que roubam, que se aproveitam da situação, que matam, há os justos que ajudam e os que combatem, possuídos pelo mito. Dos dois lados os soldados repetem a si mesmos “não me matarás, inimigo” (“Fala o soldado”). Mas dificilmente a poeta condena os soldados. Ao contrário, a maioria de seus retratos são retratos de heróis e de humanos que ultrapassam os limites de sua humanidade. Mas os que ultrapassam esses limites por vezes são como crianças que em nome do mito, em nome da guerra, matam e morrem (“Eles tinham doze anos”, “Pirralho”, “Destroça as barricadas”, “A enfermeira de catorze anos pensa ao adormecer”). O mito da morte heroica, da morte pela pátria tem um poder destruidor.

O curioso, no entanto, é que o inimigo não é desumanizado. Há ao longo do livro vários poemas que acentuam sua humanidade (“Disse: não chore”, “O sonho da escoteira”, “Quando atiras em mim”, “Enterro o corpo do inimigo”), por vezes até de modo irônico (“O oficial alemão toca Chopin”). Não há poemas que diretamente descrevam os massacres da população civil promovidas pelos nazistas em Wola e Ochota, os assassinatos dos feridos e do pessoal médico em hospitais poloneses, nos territórios recém-conquistados. O verdadeiro inimigo, não foi o inimigo. O verdadeiro inimigo foram os generais, os responsáveis pela eclosão do Levante. A verdadeira inimiga é a guerra e seus donos. Poemas como “O soldado fala para o general”, “O major disse”, “Que contem os cadáveres”, acusam “aqueles que deram a primeira ordem para o combate” e permitiram que o combate que não tinha chances de vitória se estendesse por dois meses. A destruição da cidade e de vidas deu base para mais um mito heroico. E é por isso que é preciso lembrar o lado real da guerra – o lado sujo.

Por fim, é preciso notar que Anna Świrszczyńska, grande poeta feminista, autora de livros poéticos até hoje revolucionários e vistos com reserva por apresentar a sexualidade e a corporalidade femininas em suas glórias e sofrimentos, escreveu um livro sobre a guerra do ponto de vista da mulher. As protagonistas femininas: enfermeiras, garotas com macas, mensageiras, escoteiras, irmãs corcundas, serventes no hospital, esposas que não querem deixar seus homens irem para a guerra, mães esquecidas, mães heroicas, mães desesperadas, mães dos filhos mortos contam uma história diferente do mito heroico. As mulheres são um dos protagonistas coletivos deste livro, mostrando-se em momentos de sensibilidade, fragilidade e fortaleza. Contrapõem à história escrita por homens, a história das mulheres. E novamente: assim como não foram descritos massacres da população civil, não vemos no livro cenas das mais comuns numa guerra, como os estupros e a violência contra as mulheres. Em vez de ser apresentado sob a perspectiva da vítima, o mundo da guerra é visto sob a perspectiva da enfermeira que quer salvar o bem mais precioso do ser humano, sua vida, e com seu bom senso feminino percebe que o glorioso mito heroico se esquece da simples fisiologia humana.

Poemas de Anna Świrszczyńska do livro Eu construía a barricada  (Budowałam barykadę) publicado pela editora Dybbuk em agosto de 2017. O livro foi traduzido por Piotr Kilanowski, a tradução contou com a revisão de Eneida Favre

 

Strzelać w oczy człowieka

 

pamięci Wieśka Rosińskiego

 

Miał piętnaście lat,

był najlepszym uczniem z polskiego.

Biegł z pistoletem

na wroga.

 

Zobaczył oczy człowieka,

powinien był strzelić w te oczy.

Zawahał się.

Leży na bruku.

 

Nie nauczyli go

na lekcjach polskiego

strzelać w oczy człowieka.

 

Atirar nos olhos de um homem

 

em memória de Wiesiek Rosiński

 

Tinha quinze anos

era o melhor aluno de polonês.

Corria com a pistola

contra o inimigo.

 

Viu os olhos do homem,

deveria ter atirado naqueles olhos.

Hesitou.

Está estendido na calçada.

 

Não lhe ensinaram

nas aulas de polonês

a atirar nos olhos de um homem.

 

Dwie twarze koloru żelaza

 

Kiedy z nieba lały się̨

sądy ostateczne,

kiedy żywi zazdrościli nieboszczykom schronienia pod ziemią,

ci, co długo tęsknili do siebie,

spotkali się̨ przypadkiem.

 

 

Patrzyli przerażeni

na swoje twarze koloru żelaza,

na oczy wilków, na szmaty.

 

I kiedy znów się̨ rozstali,

żeby uciekać́ przed śmiercią̨

w dwie przeciwne strony,

zrozumieli, że umarła

ich mała, śliczna miłość.

 

Duas faces cor de ferro

 

Quando do céu derramavam-se

os juízos finais,

quando os vivos invejavam os cadáveres,

por seu abrigo debaixo da terra,

aqueles que por longo tempo sentiam saudade um do outro

se encontraram por acaso.

 

Olhavam aterrorizados

para suas faces cor de ferro,

para os olhos de lobos, para os trapos.

 

E quando de novo partiram

para fugir da morte

para dois lados opostos,

compreenderam que morreu

seu pequeno e lindo amor.

 

Żołnierz niemiecki

 

Dziś w nocy płakałeś przez sen,

śniły ci się twoje dzieci

w dalekim mieście.

 

Wstałeś rano, mundur, hełm,

na ramię automat.

 

Poszedłeś rzucać żywcem w ogień

cudze dzieci.

 

O soldado alemão

 

Hoje de noite choravas no sono,

sonhavas com teus filhos

na cidade distante.

 

Levantaste de manhã, farda, capacete,

metralhadora no ombro.

 

Foste jogar vivas no fogo

as crianças alheias.

 

Rozmowa przez drzwi

 

O piątej nad ranem

pukam do jego drzwi.

Mówię przez drzwi:

w szpitalu na Śliskiej

umiera pana syn, żołnierz.

 

On uchyla drzwi,

nie zdejmuje łańcucha.

Za nim żona

dygoce.

 

Ja mówię: syn prosi matkę,

żeby przyszła.

On mówi:

matka nie przyjdzie.

Za nim żona

dygoce.

 

Ja mówię: doktor pozwolił

dać mu wina.

On mówi: proszę zaczekać.

 

Podaje przez drzwi butelkę,

zamyka drzwi na klucz,

zamyka na drugi klucz.

 

Za drzwiami żona

zaczyna krzyczeć

jakby rodziła.

 

Conversa pela porta

 

Às cinco da manhã

bato na sua porta.

Falo pela porta:

no hospital na Śliska,

seu filho, o soldado, está morrendo.

 

Ele entreabre a porta,

não tira a corrente.

Atrás dele a esposa

treme.

 

Eu digo: o filho está pedindo à mãe

para vir.

Ele diz:

a mãe não irá.

Atrás dele a esposa

treme.

 

Eu digo: o doutor deixou

que lhe déssemos vinho.

Ele diz: espere, por favor.

 

Entrega a garrafa pela porta,

fecha a porta com uma chave,

fecha a porta com outra chave.

 

Atrás da porta a esposa

começa gritar

como se estivesse parindo.

 

W schronie czekając na bombę

 

Trzęsą się, kulą się,

zamykają oczy,

zasłaniają uszy,

modlą się, milczą,

swój tuli się do swego,

obcy tuli się do obcego,

żona tuli się do złego męża,

zła córka objęła matkę,

pijak mówi : Przebacz mi Boże.

 

Wszystkich otwiera trwoga,

łączy trwoga,

oczyszcza trwoga.

 

Wniebowstępują zbiorowo

do nieba trwogi.

 

No abrigo esperando a bomba

 

Tremem, curvam-se,

fecham os olhos,

tapam os ouvidos,

rezam, calam,

o conhecido abraça o conhecido

o estranho abraça o estranho,

a esposa abraça o mau marido,

a filha má abraçou a mãe,

o bêbado diz: Perdoa-me meu Deus.

 

O pavor faz todos se abrirem,

o pavor a todos une,

o pavor a todos purifica.

 

Ascendem coletivamente

ao céu do pavor.

 

Gdy strzelasz we mnie

 

Przez okamgnienie

patrzymy sobie w oczy.

Gdy minie okamgnienie

strzelisz we mnie.

 

Ciężko jest umrzeć

ciężko jest zabić

w moich oczach trwoga

w twoich oczach trwoga

zabijasz te dwie trwogi

strzelając

we mnie.

 

Quando atiras em mim

 

Durante uma piscadela

nos miramos nos olhos.

Quando passar a piscadela

atirarás em mim.

 

É duro morrer

é duro matar

nos meus olhos o pavor

nos teus olhos o pavor

matas esses dois pavores

atirando

em mim.

 

[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil. O texto foi utilizado como a introdução ao livro Eu construía a barricada.

[2] Tradutor de poesia e professor de literatura polonesa na UFPR