Poética da penúria: o ator beckettiano — Fernando Faria

Poética da penúria: o ator beckettiano

Fernando Faria* 

Billie Whitelaw – “Footfalls”, 1976.

O teatro de Samuel Beckett é inovador na cena contemporânea. Atravessou o século XX, mantendo-se fiel à proposta (não intencional, é verdade) de quebrar as estruturas do teatro convencional. O autor desenvolveu uma dramaturgia fundamentalmente cênica e voltada para a performance. Seus diálogos, extremamente simples, repudiam a linguagem requintada, avançando para a criação de uma escrita musical. Suas personagens desconstruídas evoluíram das figuras burlescas, aos corpos mutilados e semi-sepultos, e assumiram a dupla função de personagens e cenários “falando visualmente”, ainda que a imagem possa se apresentar imóvel. O teatro de Beckett é construído pela somatória das linguagens visual e sonora, representando a sua teatralidade. E com isso engloba todos os elementos do teatro: a atuação, a luz, o texto, o cenário, a sonoplastia, enfim, a intermidialidade. Um teatro que se une à busca do mínimo essencial, que adquire significado imensurável. Uma precisão econômica de ações, gestos, sons e palavras, que fazem com que cada um dos elementos esteja pleno de significado, de expressão. Tudo é uma só linguagem para Beckett. A linguagem do “não-teatro”, que alterou a cena do século XX e adentrou o século XXI mantendo o mesmo espírito inovador. Beckett transformou a palavra em som, os diálogos em melodia e as repetições, verbais ou imagéticas, em ações minimalistas. É latente a sua preocupação com a sonoridade na trajetória de suas obras.

Partindo da premissa de que tudo que vemos e ouvimos no teatro beckettiano é uma só linguagem, podemos dizer que “tudo em seu teatro é música”: a dança das luzes sobre as cabeças de Play; o movimento escancarado dos lábios e dentes da Boca de Not I; o implacável caminhar da figura espectral de May, em Footfalls; os diálogos truncados e a longa espera até o seu retorno, em Rough for Theatre I [1]. Tudo na obra de Beckett é movimento, mesmo que sejam intercalados pelo silêncio e pela imobilidade física. A Boca de Not I se cala apenas momentaneamente para permitir que o Ouvinte se manifeste. A retomada de sua ladainha compara-se a um movimento pendular, cuja melodia afasta-se de seu ponto de partida, para depois retornar, como um “choro interminável”. As personagens de Beckett agonizam em estado terminal, mas não falecem. Um instante de penúria que agoniza que estaciona, mas não se detém.

 

O espetáculo Inomináveis é resultado da experimentação de recursos visuais e musicais. Sua musicalidade compreende, não apenas a música em si, mas uma polifonia de informações, enviada através dos elementos que compõem a linguagem teatral de Beckett: os latões que abrigam as cabeças de Play e a maquiagem que imobiliza suas expressões faciais; a lente que amplia a Boca de Not I e a orelha que ouve, na mesma peça; a voz em off da suposta mãe de May, em Footfalls, e a presente ausência da protagonista; a fogueira que ilumina a cena de Rough e, ao mesmo tempo, aquece suas personagens. Recursos contidos em Inomináveis que transformam a sua musicalidade em uma reunião minimalista de elementos teatrais afinados entre si, a fim de atingir os espectadores e lançá-los a um estado de meditação.

A estrutura circular das quatro peças gera uma curva melódica infinita. Seus supostos fins coincidem com seus começos. Movimentos pendulares uniformes, que geram melodias sem conclusões. Os silêncios que permeiam as peças são interrupções que funcionam para conscientizar a plateia e despertá-la, propositadamente, de seu estado meditativo. Os silêncios e as suas retomadas, dão continuidade à melodia minimalista, transportando a plateia novamente à sua condição contemplativa. As palavras que ecoam em Not I são re-arranjadas, dispostas em novas combinações e repetidas à exaustão. O propósito é que o espectador reflita, mais tarde, sobre o que foi visto e/ou ouvido. A opção pela utilização da lente ampliando a Boca reforça a ideia minimalista da imagem, aumentando a solidão da personagem. Os atores de Play exercendo a função de operadores de luz não diminuem o impacto de um elemento inquisidor. As vozes aceleradas ou ralentadas da peça contracenam com as luzes e são adicionadas ao modo coral e a imobilidade cênica que compõem a forma teatral. A ausência de cenários e de aparatos cênicos nas quatro peças, adicionada aos silêncios, e às personagens, sem passado, sem futuro e até mesmo sem corpos, demonstram a absoluta insignificância de detalhes palpáveis, um recurso que obriga a plateia a aguçar sua visão e audição, caindo na “armadilha” do estado meditativo. A montagem das peças, pelo prisma sonoro e imagético, aponta, a meu ver, a influência do Movimento Minimalista na obra de Beckett. Seus recursos sonoros e visuais, repetidos indefinidamente, reafirmam o conceito de um movimento pendular.

A encenação de Footfalls sustenta a afirmação de que a música, no teatro de Beckett, se faz presente através da reunião dos elementos teatrais. Não é possível discernir a imagem do caminhar de May, do som de seus passos. Os espectadores de Footfalls não percebem as modulações ou movimentos progressivos, mas são induzidos a sintonizar o ritmo dos passos da protagonista, que os conduzem a um estado passivo e contemplativo. A sequência de repetições visuais e sonoras da peça faz o tempo assegurar o passado pela repetição de seus elementos e reservar ao presente, a espera de uma nova repetição no futuro.

Quanto ao trabalho dos atores na obra de Beckett, evocamos um exemplo, quase uma parábola, levantada por Walter Asmus[2], a respeito da atriz alemã, Hildergard Schmahl, que foi capaz de superar seus hábitos e realizar uma brilhante performance da protagonista em Footfalls, na estreia alemã de Tritte, em 1976, dirigida pelo próprio Beckett. O então diretor foi confrontado com a atriz, cujo trabalho no teatro era baseado na procura por motivações realistas e que não se dispunha, ou não era capaz de trabalhar automaticamente e de forma intuitiva.

As dificuldades de Schmahl começaram no primeiro dia de ensaio, quando ela anunciou que não “compreendia a peça”, recebendo como resposta que deveria enfatizar seus passos, seu caminhar: “A peça surge na sua cabeça com a atividade de caminhar, e o texto somente se constrói ao redor dessa imagem”, disse Beckett. – “Mas, então, como essa imagem de May pode ser entendida?”, retrucou imediatamente a atriz.

Nas semanas seguintes, Schmahl lutou para realizar os desejos do diretor, imitando com frieza a qualidade conspiratória da leitura das falas em um único tom, enquanto seguia através dos movimentos da caminhada e com a postura sugerida por ele. “Eu não posso fazer isso mecanicamente”, dizia ela, “Eu devo primeiro entender e depois pensar”. Sua entrega vocal permanecia dispersa, sem convencer e carregada com “cores” supérfluas. Apesar dos esforços, Schmahl conduzia um tipo de procura heróica por intenções realistas que poderiam produzir as qualidades externas descritas a ela, chegando a visitar uma clínica psiquiátrica de pacientes femininas com obsessões. Beckett não a encorajou nessa direção e continuava a enfatizar a importância do trabalho corporal. “A posição do corpo vai ajudá-la a encontrar a voz certa” – mas a atriz não confiava nesse conselho e Beckett afirmava que a postura de May não deveria expressar medo, mas que deveria sim, viver exclusivamente para ela mesma. “Como a atriz pode entender e fazer uso das descrições de suas metas encapsulando a figura dela mesma de forma absoluta?”, divagava a atriz.

Respostas a essas questões chegaram a Schmahl através do mesmo caminho que ela trilhou no início dos ensaios, porém, somente depois que esgotou todas as possibilidades de encontrá-las através de meios ativos e conscientes. Após algumas semanas, Beckett disse a ela explicitamente:

 

“O processo de compreensão não pode ser forçado. Quando você se sente muito distante do tom certo, você já falhou. Você está olhando para sua atuação fora do tom certo, o que é fatal. “Você está atuando de uma forma muito saudável… tente gradualmente, se ver por dentro, enquanto pronuncia as palavras.” (In Beckett in performance, p. 181) 

Schmahl então decidiu priorizar a performance física, em detrimento da psíquica, deixando de produzir as “imagens vindas de dentro” e suas intenções psicológicas desapareceram. Ela era capaz de segurar seu corpo de forma rígida, evitando movimentos incalculáveis e permanecendo independente do ambiente, como se fosse um objeto num corredor de luz. Nenhum movimento frívolo a distraía. A tensão comunicava por si mesmo com o espectador, que era jogado para dentro do turbilhão da história da personagem. A concentração da atriz era latente e desafiava o observador a uma concentração absoluta.

Schmahl finalmente obteve sucesso com a ajuda de uma autonegação radical, ao agir por meio de comportamentos físicos calculados, após abandonar o uso ativo da pesquisa psicológica, que lhe deu muito trabalho. Para Beckett, a personagem identificada na peça é auto-suficiente, sua postura é uma indicação de emoções momentâneas isoladas, menores do que a metáfora de uma condição ontológica crônica; ou seja, uma concentração quase exclusiva na corporalidade seria a forma natural de retratá-la.[3]

Obviamente este é um ponto de vista do autor e não do diretor. O que é relevante aqui, entretanto, é que o processo de criação não se tornou inatingível para uma atriz, cuja experiência e talento residem no drama convencional. Apesar da propensão a questionar, Schmahl transformou um trabalho que se pretendia ser extremamente técnico, em um longo e tumultuado processo de aprender a confiar no texto. Resta-nos perguntar se era de fato necessário que aquele processo fosse tão torturante.

Em uma entrevista concedida ao pesquisador norte-americano Jonathan Kalb, Asmus fez a seguinte declaração:

“Quando eu dirigi Footfalls me pareceu que há um relacionamento real de ódio entre mãe e filha, que é muito realista, e que você pode realmente discutir com a atriz, que tem suas próprias experiências com sua mãe e assim por diante… há uma história social, real, por trás, que podemos encontrar se falarmos sobre as nossas vidas e os nossos relacionamentos com os pais… mas Beckett nunca teria tido essa discussão particular.” [4]

Esse tipo de troca íntima com os atores ou essas associações familiares podem, a princípio, não ter utilidade para a construção de uma personagem beckettiana, mas são, invariavelmente, úteis para tornar o processo de criação menos incômodo, ao invés somente de realizar, de maneira árdua, as tarefas físicas e vocais exigidas pela dramaturgia do autor.

Pela minha experiência com as encenações de Play, Not I, Rough for Theatre I, Footfalls e outras peças de Beckett que não fazem parte de Inomináveis, vejo que, normalmente, os atores envolvidos se apercebem da necessidade do desenvolvimento e aprimoramento técnico, e isso se torna precípuo, após algum tempo, deixando o restante, sobretudo as associações psicológicas, para um segundo plano. A negação de Beckett em discutir situações psicológicas com seus atores é uma afirmação de que os seus dilemas físicos são efetivamente mais significantes.

No entanto, o processo interno vivido por Schmahl e também pelas atrizes Tainá Orsi e Carina Scheibe e Fabiana Aidar, atrizes da montagem de Inomináveis, foi salutar para a compreensão da obra de Beckett e funcionou como elemento motivador para a construção de suas personagens. Mesmo tendo elas que abandonar suas motivações psicológicas, cuja tarefa de “perder a noção de personagem” se deu em duas etapas, a saber: análise do texto como uma peça convencional e, em seguida, armazenar o conhecimento adquirido, de forma com que se concentrassem na musicalidade verbal e na exploração corporal.

O exercício exclusivamente técnico durante o processo de construção da personagem beckettiana, pode tornar sua representação demasiado “fria”, como gostariam o encenador Gordon Craig e o dramaturgo Maurice Maeterlinck. Mas com Beckett é diferente. Ele exige o ator “vivo”. A vida no ator que anima as imagens do palco beckettiano e amplifica o impacto de suas deficiências, mesmo que a animação ganhe expressão somente através de sons e movimentos precisamente calculados. O ator vivo representando a personagem em estado terminal. Esta é sua ironia. E cada aspecto de caracterização psicológica é a dica de uma vida complexa e não ficcional, que se estende além da simples figura, enfraquecendo o efeito do sentido da pura existência.

Mesmo assim, são legítimos os conflitos enfrentados por Carina, Rafaela, Gabriel, Tainá, Tamara, Carlos, Ilze e Fabiana, atores de Inomináveis que, através de dificuldades técnicas ou das relações estabelecidas do texto com as suas vidas pessoais ou profissionais, tornam-se atores “vivos”, anímicos, dentro da seara beckettiana. Representar uma personagem cega é experienciar uma tragédia; é experimentar a sensação de sentir frio em uma perna inexistente; é vivenciar a solidão da fala incansável, porque se é apenas uma boca. É impossível que um ator, ao incorporar uma personagem beckettiana, não vivencie a sua tragédia. A luta travada com as questões psicológicas serve como alento para que, ao abandoná-la, encontremo-nos mais fortalecidos.

Portanto, é possível afirmar que os atores que se submetem a representar as personagens beckettianas, devem saber que o trabalho é centrado na economia corporal e na percepção sonora. E que necessitam também de uma dose extra de autocontrole e de contenção das emoções, além do desenvolvimento de uma consciência corporal. Devem abdicar da expressão do olhar, da ação gestual, do movimento dos passos, em favor de causarem um efeito de estranhamento no espectador. Hão que rever métodos e conceitos de atuação e abandonar quase todos os recursos interpretativos cristalizados. Os detentores dos papéis beckettianos devem desaprender, para re-aprender. Seus instrumentos de trabalho passam a ser olhos, lábios, dentes, língua, e sua capacidade de transmissão concentra-se, quase que somente, em sua voz, fazendo da imobilidade arma certeira em sua condução. Suas ações resumem-se apenas em dizer palavras, sem réplicas, sendo eles, como já afirmara Matteo Bonfitto, um catalisador de fissuras que envolvem diferentes processos, muitos dos quais ainda não elaborados e que, a princípio, não prevêem possibilidades de solução (BONFITTO, 2006, p.17). Mas, acima de tudo, devem estar “vivos”. Mesmo que para encarnar seres agonizantes, incapazes de qualquer reação. O ator beckettiano caminha em direção oposta ao texto que o conduz, desconstruindo os elementos tradicionais do teatro, fragmentando e desumanizando suas personagens, fato que o aproxima das competências e condições exigidas ao ator pós-dramático.

O texto beckettiano, por sua vez, é uma fonte preciosa para os exercícios da arte de representar. Ele autoriza rupturas precisas, progride através de inversões e legitima as trocas de pontos de vista. Para Bernard Dort, a linearidade cênica da escrita beckettiana é polivalente, supondo a combinação de vários modos de representação. Uma escrita dramática que se organiza como um cruzamento de escritas cênicas virtuais, transformando-a em uma fonte para jogos dramatúrgicos (DORT, 1990, p. 91). A linha de demarcação que separa a obra dramática de Beckett de sua obra narrativa se apagou, e seus textos narrativos são cada vez mais representados. Portanto, para Dort, a interpretação se esvai. O que conta são menos os significados, cujo texto está cheio, que o jogo de suas significações. Dessa forma, podemos falar verdadeiramente em “prazer”, no prazer de atuar. A obscuridade de Beckett não se esvai, mas ganha a companhia do prazer. O dramaturgo nos martela com o desejo e a impossibilidade de morrer, mas faz isso sobre tantos tons e com tantas variações, que seu teatro é de uma vitalidade pródiga. Na sua fragmentação e na sua lacuna, ele oferece um campo quase infinito às nossas possibilidades de jogo (Ibidem: p. 91). 

Portanto, podemos concluir que não é possível existir somente um ator beckettiano, mas sim, atores que performatizam Beckett com estilos variados. Fechar-se num único estilo é encerrar as possibilidades de leitura da obra. Dort recusa o engessamento e desconsidera qualquer tentativa de cristalização de um método, confirmando uma das enigmáticas frases de Beckett: “a resposta chave em minhas peças é talvez.”[5]

O teatro de Beckett aproxima as afinidades do autor com o teatro pós-dramático preconizado por Lehmann[6]. O seu conhecimento musical autodidata, a influência minimalista na trajetória de sua obra, o desfacelamento das suas personagens demonstram que existem possibilidades reais de atuar nas peças do dramaturgo, dialogando diretamente com as vias musical e imagética.

Referências bibliográficas

ASMUS, D. Walter. Practical aspects of theatre, radio and television. Rehearsal notes

     for the German premiere of Beckett’s That Time and Footfalls. At the Schiller

     TheaterWerkstatt,Berlin, Journal of Beckett Studies,London: John Calder

     Publishers, 1977.

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2007.

DORT, Bernard. “L’Acteur de Beckett: davantage de jeu”. Revue d’Esthétique,

        numéro sur Beckett. Ed. Jean-Michel Place, 1990, pp. 90-91.

HARMON, Maurice. No author better served – The correspondence of Samuel Beckett 

       & Alan Schneider.London:HarwardUniversity Press, 1998.

KALB, Jonathan. Beckett in performance. New York:CambridgeUniversity Press,  

     1989.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad: Pedro Süssekind, São Paulo: 

      CosacNaify, 2007.

* Professor de Artes Cênicas, pesquisador, diretor teatral.



[1] Play, Not I, Rough for theatre I e Footfalls são peças de Beckett que fazem parte do espetáculo Inomináveis, dirigido por mim, e que teve sua estreia em novembro de 2010 no espaço Travessa Cultural, na cidade de Florianópolis – SC.

[2] Walter Asmus foi assistente de direção de Beckett na maior parte dos projetos do autor na Alemanha: En Attendant Godot (1975), That Time (1976), Play (1978), Ghost Trio (1977) …But the clouds… (1977) e What Where (1985). Também dirigiu todas as peças de Beckett em várias cidades europeias, começando com Happy Days e Fin de Partie, em Copenhagen (1978). Nos Estados Unidos dirigiu Waiting for Godot (1978), no Brooklyn Academy of Music, numa tentativa de recriar a produção do autor realizada em 1975 no Schiller Theatre, com atores americanos.

 

[3] Walter Asmus, In Beckett in performance, pp. 62-64.

[4] Entrevista concedida a Jonathan Kalb, em Hannover, Alemanha, em 07-01-1987.

[5] Afirmação atribuída a Beckett por McMillan e Fehsenfeld. Ver McMILLAN; FEHSENFELD, 1988, v. 1 p. 13.

[6] O pesquisador alemão Hans-Thies Lehmann escreveu o livro Teatro pós-dramático, dentre outros.