Goethe em tempos de revolução – Marcus Vinicius Mazzari
Michael Jaeger: Wanderers Verstummen, Goethes Schweigen, Fausts Tragödie. Oder: Die große Transformation der Welt [O emudecer do Peregrino, o silêncio de Goethe, a tragédia de Fausto. Ou: A grande transformação do mundo]. Würzburg, Königshausen & Neumann, 2014.
Marcus Vinicius Mazzari*
Com o alentado e denso estudo O emudecer do Peregrino, o silêncio de Goethe, a tragédia de Fausto (600 páginas), Michael Jaeger (1961) afirma-se como um dos mais relevantes nomes na filologia fáustica contemporânea. Essa posição começa a ser reivindicada em 2004, ano da publicação da monografia de quase 700 páginas A Colônia de Fausto (2004), minucioso estudo, tributário em larga medida do pensamento de Karl Löwith (1897-1973), que identifica na tragédia goethiana uma “fenomenologia crítica da modernidade”, conforme a expressão do subtítulo. Fausto assoma nesse primeiro trabalho como espécie de agente arquetípico de uma crise que, após o terror jacobino, teria alcançado outro momento altamente dramático (na visão de Goethe) durante a revolução parisiense de julho de 1830. Integrando certos aspectos desse evento, sobretudo o papel desempenhado pelos saint-simonistas, ao quinto ato do Fausto II, o velho poeta antecipa com clarividência genial – eis a tese central da Colônia de Fausto – os totalitarismos do século XX e mesmo a atual realidade do “turbo-capitalismo”. Jaeger desdobra essa perspectiva crítica na publicação, de caráter mais ensaístico, Global Player Faust (2008) e vem coroá-la com o estudo de 2014, que coloca no centro de sua abordagem a personagem do Peregrino, massacrada ao lado de Filemon e Baucis pelo “braço militar” de Fausto, isto é, Mefisto e seus asseclas.
Em meados de 1831, portanto a menos de um ano de sua morte, Goethe inseriu no manuscrito da tragédia uma cena que, conforme assinala Jaeger no início do estudo, alinha-se entre “as imagens mais enigmáticas e perturbadoras, mas também mais modernas e plenas de significado de toda sua obra”. É quando o Peregrino adentra o palco na “Região aberta” na última parte da tragédia, e nele Goethe teria transfigurado a própria experiência histórica numa sociedade em vias de romper radicalmente com as antigas tradições que condicionaram toda sua formação, de tal modo que o assassinato do Peregrino significaria também o desespero do velho poeta no mundo “mefistofélico” e “velocífero” que tomara então o rumo (como se pode afirmar retrospectivamente) do turbo-capitalismo que reina hoje em escala globalizada.
Para alicerçar essa visão do Peregrino como espécie de alter ego do poeta (portanto, um fragmento-chave na “grande confissão” que Goethe declarou realizar por meio de suas criações), Jaeger entrelaça a minudente análise textual com estações da biografia do poeta, sobretudo em seus últimos anos, sobre os quais incide assim uma luz surpreendentemente original. Desse modo, o leitor é contemplado com uma grandiosa interpretação do drama, principalmente dos trechos redigidos por volta de 1830, e ao mesmo tempo com um esboço biográfico, tão ousado quanto arguto, do poeta octogenário, mas sem que lhe seja possível dissociar esses dois níveis de leitura, tão bem amarrados, como se fossem de uma só têmpera, apresentam-se eles na argumentação crítica de Jaeger. De leitura particularmente fascinante são os capítulos em que nos é mostrado, com grande plasticidade e riqueza de detalhes, a férrea autodisciplina que Goethe se impôs para arrancar a conclusão do Fausto às adversidades que marcaram seus últimos anos: a morte do filho August em Roma, hemoptise, infarto e outros graves problemas de saúde, ou ainda seu desespero com a situação política por volta de 1830 (“doutrina desorientadora aliada a ação desorientadora é o que reina no mundo”, dirá ele na carta a Humboldt escrita às vésperas da morte).
Espanta também a profusão de material histórico trabalhado por Jaeger em seu confronto com o teor factual das últimas cenas da tragédia, isto é, o fenômeno histórico da colonização. A esse enfoque articula-se ainda o diálogo ou, muito mais, o contraste que o intérprete estabelece entre concepções goethianas, sempre desentranhadas dos versos, e posições filosóficas e políticas de Hegel, Marx e outros teóricos, em especial aqueles que, como Georg Lukács ou Ernst Bloch, leram o Fausto em chave “perfectibilista”.
Valeria ressaltar que entre as fontes mobilizadas pelo autor está também a Dialética da Colonização, de Alfredo Bosi, mais precisamente seu primeiro capítulo “Colônia, Culto e Cultura”, consultado na tradução inglesa de Robert P. Newcomb Colony, Cult and Culture (Dartmouth, 2008). Especialmente produtiva nesse contexto é a constatação que faz Bosi, em suas explanações sobre a “condição colonial”, de que as palavras “cultura, culto e colonização” derivam do verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus, e culturus o particípio futuro.
Na argumentação de Jaeger, Goethe oferece uma ilustração paradigmática do processo colonizador, nas três dimensões estudadas por Alfredo Bosi, mediante as cenas em torno de Filemon e Baucis. Esses nomes, como sabido, foram tomados ao 8º livro das Metamorfoses, em que Ovídio narra a hospitalidade do casal de idosos que acolhe os incógnitos Júpiter e Mercúrio. Os acontecimentos miraculosos do 8º livro – que se baseiam num princípio que Goethe, em consonância com sua experiência histórica, não proporciona aos seus personagens homônimos: a metamorfose – são resumidos nas palavras qui coluere, colantur, ou seja, “quem honrou será honrado”. Tratando-se aqui do mesmo verbo latino colo, uma dimensão fundamental do 5º ato da tragédia goethiana se revela especialmente significativa se contrastada com a narrativa do poeta latino e, sobretudo, contemplada no horizonte descortinado por Alfredo Bosi em sua análise da “dialética da colonização”. Conforme escreve Jaeger na página 528 de seu estudo: “Pois em todos os níveis (de colo, cultus e cultura), o processo colonizador representado por Fausto e Mefistófeles avassala o espaço de Filemon e Baucis e impulsiona a transformação do mundo”.
A notável contribuição que O emudecer do Peregrino, o silêncio de Goethe, a tragédia de Fausto traz à filologia fáustica se deve também aos apoios teóricos mobilizados por Michael Jaeger. A Dialética da Colonização testemunha com suficiente força a visada original que preside a esse estudo em cujo centro está a desconcertante personagem do Peregrino. Cumpriria destacar também, entre outras fontes de inspiração para a monografia de Jaeger, o livro de Josef Pieper Über das Schweigen Goethes, [Sobre o silêncio de Goethe], publicado em 1951 e resgatado agora do esquecimento, e o estudo de Pierre Hadot (1922 – 2010) N’oublie pas de vivre, Goethe et la tradition des exercices spirituels (2008).
Jaeger se vale dos trabalhos de Pieper e Hadot – assim como de obras de outros autores e do próprio Goethe, em especial sua Viagem à Itália – para alicerçar a bela análise de uma dimensão que se opõe em tudo ao mundo mefistofélico configurado na tragédia com assombrosa clarividência. É a dimensão que o poeta nos descortina na “Região amena” que abre o Fausto II, também na “Noite de Valpúrgis Clássica” com sua celebração da Natureza, de Eros e da origem da vida, ainda na Arcádia do 3º ato, espaço extraterritorial em que Fausto vivencia momentos de idílio com Helena, e, por fim, nas “Furnas Montanhosas” que fecham a tragédia sob o influxo do “Eterno-feminino”, para Jaeger o documento mais belo e significativo do “ecumenismo meditativo” desenvolvido por Goethe em seus anos de velhice.
Gustav Seibt: Mit einer Art von Wut – Goethe in der Revolution [Com uma espécie de Ira – Goethe na revolução]. Munique, C. H. Beck Verlag, 2014.
O posicionamento de Goethe perante a Revolução francesa, “o mais terrível de todos os acontecimentos”, registra mudanças significativas ao longo dos anos. No dia quatro de janeiro de 1824 Eckermann anotou as seguintes palavras: “É verdade, nunca pude ser um adepto da Revolução francesa; pois os seus horrores estavam muito próximos de mim e indignavam-me diariamente e mesmo a cada hora, enquanto suas consequências benéficas ainda não podiam ser vislumbradas então. […] Mas tampouco fui eu um adepto da arbitrariedade autoritária. Estava também inteiramente convencido de que uma grande revolução jamais é culpa do povo, mas sim do governo. […] Uma vez, porém, que eu odiava as revoluções, chamaram-me de adepto do que está constituído. Mas esse é um título muito ambivalente, que eu não admito. Se tudo o que está constituído fosse bom, primoroso e justo, eu não teria nada contra; mas como, ao lado de coisas boas, vigora também o ruim, injusto, insuficiente, ser um adepto do constituído com frequência não significa outra coisa senão ser um adepto do obsoleto e do ruim”.
Após ter abordado o encontro entre Goethe e Napoleon numa publicação de 2008 (Goethe und Napoleon. Eine historische Begegnung), o historiador Gustav Seibt (1959) dedica em 2014 um novo livro às relações de Goethe com a política e história francesas, colocando desta vez a grande Revolução de 1789 e seus desdobramentos no foco de seu interesse crítico. Estruturada em oito capítulos, a argumentação de Seibt desenvolve-se sempre com o apoio de fontes levantadas e trabalhadas de maneira criteriosa, o que lhe propicia iluminar a fundo não apenas a reação imediata de Goethe ao evento capital da era burguesa, mas também o processo histórico que levou a Alemanha a afastar-se dos ideais revolucionários. Entre os méritos desse estudo está o de elucidar minuciosamente e de vários ângulos uma declaração goethiana que em seu teor apresenta a “injustiça” como preferível à “desordem”. Quase nunca citada de modo correto, tal declaração veio a converter-se numa das sentenças prediletas de políticos empenhados em justificar regimes conservadores ou mesmo reacionários e ditatoriais. Foi como estudante que pela primeira vez tomei conhecimento dessa frase, dita, salvo engano, pelo ministro do STF durante o governo Geisel, Leitão de Abreu.
Mas também em tempos pós-ditadura a controversa frase continuou a ser mobilizada, por exemplo, em ótimos textos de Rubens Ricupero (Folha de S. P., 11 de abril de 1998) e Luis Fernando Verissimo (Estadão e Globo, 3 de Julho de 2008). Ambos a citam em lúcidas reflexões sobre as “desordens” provocadas pelo MST e a necessidade premente da reforma agrária no Brasil. O primeiro abre seu texto com as palavras: “‘Prefiro a injustiça à desordem’ é, objetivamente, o que dizem, parafraseando Goethe, muitos editoriais acerca do problema de ordem pública no qual se transformou a questão agrária. É óbvio que não se diz isso tão cruamente. Como entre nós ninguém é de direita e todos se proclamam sociais-democratas, afirma-se favorecer em teoria a reforma agrária. Na prática, condena-se a única maneira de torná-la possível: uma dose prolongada e maciça de mobilização popular”.
E Verissimo: “Quando Goethe disse que preferia a injustiça à desordem, a Europa recém fora sacudida pela revolução francesa e enfrentava outro terremoto, o bonapartismo em marcha. Sua opção não era teórica, era pela específica velha ordem que os novos tempos ameaçavam. Por mais injusta que fosse, a velha ordem era melhor do que as paixões incontroláveis libertadas pela revolução. Mas a frase de Goethe atravessou 200 anos, foi usada ou repudiada por muitos, na teoria ou na prática e em vários contextos, e chega aos nossos dias mais atual do que nunca.”
Mas em que contexto o poeta alemão declarou preferir a injustiça à desordem? Provavelmente ignoram-no os que se valem da frase para justificar a injustiça social. Mas talvez o contexto seja desconhecido mesmo a pessoas cultas e progressistas, como Verissimo e Ricupero. Ela se encontra no relato autobiográfico Belagerung von Mainz [O cerco de Mainz], publicado em 1822, e a primorosa análise de Gustav Seibt desdobra-nos detalhes das circunstâncias históricas de sua gênese e também da redação definitiva do relato, quase 30 anos após os eventos.
Goethe acompanhava o Duque Carl August durante a campanha militar em que as tropas da coalização austríaco-prussiana sitiaram e por fim tomaram a cidade de Mainz (Mogúncia), que por quase um ano estivera nas mãos dos revolucionários franceses que buscavam exportar a revolução para o solo alemão. Durante a rendição da cidade desencadearam-se cenas de violência extrema e sua descrição por Goethe só seria comparável, segundo Seibt, ao crasso relato de Mefistófeles, no 5º ato do Fausto II, sobre o massacre de Filemon, Baucis e do Peregrino. Sob a data de 25 de julho de 1793 o poeta narra a retirada dos revolucionários derrotados, entre os quais vários colaboradores alemães que eram hostilizados pelos habitantes de Mainz, os quais por sua vez haviam sofrido confiscos e toda sorte de repressão e perseguição durante a ocupação francesa. De repente a multidão, açulada por um agitador, voltou-se contra um colaborador dos franceses com a intenção de linchá-lo imediatamente. Foi quando Goethe, segundo seu próprio relato, interveio bradando que não toleraria atos de selvageria nesse lugar. Questionado depois por um alto oficial sobre os motivos da inesperada decisão de proteger, sob o risco da própria vida, um odioso “clubista” (como eram chamados os que se reuniam nos “clubes” jacobinos), Goethe disse a famosa frase: “está em minha natureza, prefiro cometer uma injustiça do que tolerar desordem” (es liegt nun einmal in meiner Natur, ich will lieber eine Ungerechtigkeit begehen als Unordnung ertragen.)
Eis, portanto, o contexto em que se inserem as controversas palavras do maior clássico alemão: a tentativa não só de proteger um jacobino – e, consequentemente, um inimigo político – da ira popular, mas também, como mostra a percuciente análise de Gustav Seibt, de pôr termo à espiral diabólica da violência.
*Prof. da Universidade de São Paulo.