Cinco gravuras debaixo desse quase céu – Poemas de Telma Scherer
Cinco gravuras debaixo desse quase céu – Poemas de Telma Scherer*
Para silêncio de cordas e nãos é preciso ter o cuidado de não se mover. Se mexer esse braço, já estronda o órgão suspenso desse quase céu. O tempo. Aqui é azul e por isso são abismos os espaços do som. Para a dor de encontrar, não há remédio. O não é proferido sob o sol a pino e então que tudo abunda. São tambores, fagotes, zabumbas, trombones e trompas de falópio. São os sossegos que não regeneram. Para cima e para baixo, há vida. Mas o sol se move. E a vida esquecida entre sons já então se cronometra. Um leve mexer de mechas é o suficiente para sonatas inteiras, intragáveis, a encher o espaço aberto. O corpo. Tão perto do calendário, o peito, que só um cristão aguentaria. Ainda há jogos de paciências, há dedos, e ciências na geladeira. Para ficar um pouco em paz, come-se o não com vinho. Idealizam-se iguarias. Para a dor de encontrar, entretanto, não há remédio. Por isso se samba até sem perna, sem braço, sem cílios que se abrem em abraços, sem tédio, para a sina do silêncio de cordas e nãos.
E o quê e o ukiyo-e, às sete horas da noite. O que o ukiyo-e às sete horas da noite? É tarde, é noite, é hora de gravar todos agravos nesta gravura de horas. Neste dorso do tempo, tigre deitado, rosnando, tigre quase um gatinho de cócoras sobre o muro. Mas a noite sabe. O que sabe o ukiyo-e sobre a sobra que sobra nesta sombra de muro? A casa é espanto. A casa é murada de ruídos. A casa é morada de espíritos que sobem e descem escadas, o som dos seus chinelos, seus gritos, seus uivos, sua televisão. A casa não quer cuidado nenhum, quer as sobras, quer tudo o que sobra de nós. Ukiyo-e é a sombra transitória, nós passamos, não resta nem sombra. Estamos ligados nas tomadas. Somos as sobras de nadas nadando entre madeiras, pincéis, entre os dedos do gravador. Também ferimos, como goiva e buril. Também cortamos o assunto. Também unimos nosso silêncio aos sons de séculos passando sem vizinhos na casa vazia. Vocês não veem que somos esqueletos? Sobramos apesar de tudo. E apesar das goivas e formões formamos um uníssono que só se escuta quando quando, quando longe, quando então, usando algures e algas, quando no céu se dizem amém, amém, amamos. Nós nunca nos dizemos sem tinta preta. Nós não acreditamos em Deus, só colonizamos. No entanto nos guardamos para o paraíso e enquanto não temos mais o que fazer, fazemos. Fazemos amor com as cortesãs de Yoshiwara. Fazemos glicínias, rosas, púrpuras, toaletes maquiadas, fazemos matriarcas caírem a zero. Porque nós somos o insulto. Misturamos os insumos e o que o ácido não queima também não verga a madeira. Não subimos para fazer visitas, não tomamos chás, não queremos bolo em pratinhos oferecidos durante a tarde. Para nós é sempre tarde e sempre tarde para saber. Sombreamos o traço mesmo quando nos chamamos, e quando nos provocam, então, aí somos Marte e Vênus. Temos céus na boca, registros, coleções de latas, e somos sem perdão. Porque passamos assim, como as cédulas de mão em mão, ganhando bactérias, perdendo tempo, perdendo o que para vocês é tudo e para nós só suma luxúria. Gastamos com nozes, rolos, caldas, caramelos, chocolates e tesouras. Não fazemos maiores alardes, mas é assim, na impermanência das poltronas que nós mesmos nos prensamos.
Cada passo na rua eu achei que fosse seu. Cada ecoar de cão só podia ser reação aos seus cada passos. Alarde de margaridas, florindo ainda que de manhã, eu sempre achei que fosse você. E eu nem acharia tanto, não fosse o tamanho do sono sorvendo o orvalho de tantas noites de solidão. Tive medo de que você chegasse tarde ou chegasse bravo ou nem chegasse. Por isso guardei os meus perfumes. Passei tesouras em todas as toalhas de mesa, me retalhei em cem, e sem mais mistério, sentei na sala. Sentei nessa poltrona a ver gravuras japonesas e você não chegava e não chegava tanto que me levantei. E esse tanto era abrir de portas fechar de portas abrir de portas saltar de cócoras era tantear assim, aos atropelos. E encontrar percevejos debaixo dos colchões e chorar aos borbotões e nada não adiantaria. Porque nunca era mais que aquele tanto. E nunca mais era o sol escaldante de quando você chegou.
monge amuado
molhado de lodo
no vento no tráfico
no esgoto
monge morto
vestido de marrom
maroto destemido de manhãs
absorto
onde a sorte é solerte
e onde a onça faz o frete
e suga
sim, nessa mesa torta
nessa tumba poderosa
onde o monge livra
os livros do cinza
e do sépia dessas trevas
onde ele mora mundo
e onde viaja e vaga
e vislumbra o vício
de recomeçar
e por isso se o monge
destroçar caroços
e apontar oceanos pelos
baixos e sonsos
pedaços de corda
dessa forca
é porque a força que forja as armas
amarra e solta
precisar de amanhã
é mover estrelas quando
a cortina embala
o quase quadrado
da janela em grade
e não há gritos
só suor engolido
somatórios mudos
de passados já passados
por isso
não é nada
não é nada e nunca
nem existe a busca
que se faz fazendo
assim
não carrego
suas mágoas de há anos
nem pago ingresso
para os seus trens que já não são
e isso sim é que é
negócio fechado
a porta e o salário
e a bruma e os otários
que aceitem seus cheques
seus augúrios
suas promessas e
os seus búzios
porque da minha parte
não há buzinas
asfaltos
só o prado e a pequenina aranha
que se move desde
as folhas
para tecer sua cama
para comer os distraídos
para destruir soldados
e velas e aquarelas
que não se sustentam
duas lâmpadas avisam
que não há olhos
debaixo das mesas
e que no revém do vaivém
há distância e segurança
que mata
apedreja
e premia em cassetetes
a porradas
esta dança que só mora
nas calçadas
* natural de Lajeado/RS, trabalhou como performer e ministrante de oficinas de poesia, cursa o doutorado em Literatura na UFSC. Publicou os livros de poesia: Desconjunto (IEL, 2002), Rumor da casa (7Letras, 2008) e Depois da água (Nave, 2014).