Poesia: sussurro, grito e silêncio – sobre três poemas de Iossif Brodskii, Aleksander Wat e Zbigniew Herbert – Piotr Kilanowski

Poesia: sussurro, grito e silêncio – sobre três poemas de Iossif Brodskii, Aleksander Wat e Zbigniew Herbert[1]

 

Piotr Kilanowski[2]

 

Quando Theodore Adorno escreveu a célebre e terrível frase: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”[3], certamente não imaginava que a poesia poderia falar ou até gritar por meio do silêncio. O papel e o poder da poesia após os totalitarismos questionados naquela frase aparecem em vários poemas. A cisão entre “o poeta e a família humana”, como mostra Miłosz em sua obra O testemunho da poesia[4], nascida da poesia que quer ser a religião para os eleitos, rejeitando a comunidade burguesa, desapareceu na poesia dos países da Europa Central e Oriental em função da necessidade de uma palavra poética que pudesse expressar o sofrimento indescritível, que foi comungado por todos os que foram tocados pela guerra e pelos totalitarismos. Seja como vítimas, testemunhas ou ajudantes dos perpetradores, a realidade cruel do século XX tocou a todos os habitantes das terras chamadas de Terras de Sangue pelo historiador Timothy Snyder[5]. Essa experiência deu como fruto a poesia que, diferente da simbolizada pela lua de Paulo Leminski (Lua à vista/brilhavas assim/ sobre Auschwitz)[6], participava diretamente dos acontecimentos. Palavras de Czesław Miłosz, Krzysztof Kamil Baczyński, Tadeusz Gajcy, Antoni Słonimski, Konstanty Ildefons Galczyński, Władysław Broniewski, na Polônia e entre os poloneses exilados do seu país, voltaram a selar a união entre o poeta e o seu povo. Acompanhavam os seus conterrâneos, durante a guerra, na distribuição clandestina, na repetição boca a boca, no ato de se copiar manualmente e repassar para os amigos seus poemas. O arquivo poético, registro de vivência, tornou-se o arquivo da experiência sentida como coletiva e expressada por meio da poesia. Desta forma, a poesia evidenciou o seu papel de consciência coletiva e, ao mesmo tempo, tornou-se uma tentativa de encontrar os nichos de liberdade no meio da realidade opressiva. A poesia tenta não seguir as leis políticas, expressa a dúvida em vez de afirmar as ideologias. No meio do mundo em ruínas, simultaneamente reflete as ruínas e tenta organizar o caos. Por meio da fala, ao mesmo tempo organizada e fragmentária, reflete a presença do caos e a necessidade da harmonia. Mais ainda, tenta escrever a história, de acordo com a visão de Walter Benjamin: usando imagem, recorte e aproximação explica tudo pela parte e mostra o lado dos oprimidos e condenados ao esquecimento e apagamento pela minoria governante.

 

Do lado Leste da fronteira polonesa, na Rússia, esse papel da poesia foi evidenciado pelas perseguições sofridas pelos maiores poetas russos: Osip Mandelstam, Marina Tsvietaieva, Anna Akhmatova e, posteriormente, Iosif Brodskii e Irina Ratuchinskaia. O valor desse tipo de poesia e o da poesia ou da literatura em geral é revelado nos relatos sobre os campos soviéticos escritos por Evguênia Ginzburg, Varlam Chalamov e Gustaw Herling Grudziński, nos escritos sobre o gueto, de autoria de Marek Edelman e Hanna Krall, ou do poeta Władysław Szlengel, nos vários relatos dos judeus que se escondiam do lado de fora do muro, como Calel Perechodnik e, por fim, nos relatos sobre os campos de concentração e extermínio nazistas de Richard Glazar, Jean Améry, Margarete Buber Neumann e Primo Levi, que apresenta o Inferno de Dante recitado em Auschwitz[7]. O contato com a poesia ajudava os prisioneiros a recordar a própria humanidade, a se reinserir no seio da família humana da qual os totalitarismos tentaram expulsá-los. Ajudava a restabelecer o resquício de harmonia e de sonho em meio ao pesadelo caótico que foram obrigados a viver. O resgate da dignidade, o contato com o fruto da experiência espiritual da humanidade, o contato com a dimensão de si mesmos negada pelas circunstâncias podem ser mencionados como os mais importantes aspectos do papel da poesia e da cultura sob os totalitarismos. Poderíamos apreciar o papel de poesia sob os totalitarismos em três aspectos principais. Primeiramente, como a afirmação de pertencimento à grande família humana, contrariamente ao que afirmavam os perseguidores, como por exemplo no caso de Primo Levi e seu companheiro. Em segundo lugar, como a possibilidade, mesmo que momentânea  de criar uma harmonia interna, que ajudasse a lidar com o caos externo, cujo exemplo é o caso de Evguênia Ginzburg[8], que durante os dois anos de sua prisão na cela solitária, sem nenhum contato com o mundo, vivia repetindo para si mesma as estrofes das poesias que conhecia de cor, salvando-se assim da loucura e fortalecendo-se internamente a ponto de ser capaz de negar as acusações, apesar dos interrogatórios cruéis. No caso dela, a poesia por várias vezes mostrou-se extremamente útil ao longo dos 18 anos em prisões soviéticas, tanto no trato com os perseguidores, nos quais despertava uma nota de humanidade, quanto na relação com os companheiros de infortúnio, os quais fortalecia com suas declamações poéticas. Por fim, o terceiro papel da poesia, talvez menos óbvio, é que trata-se de discurso por natureza plurissignificativo, que permite várias interpretações, que reflete o distanciamento tanto da realidade quanto da linguagem cotidiana. Por isto a poesia por si só é a resistência a qualquer discurso dogmático, que tenta instaurar a verdade única, ainda mais quando se esforça, como fizeram os totalitarismos, em imprimir a marca dessa pretensa verdade em cada palavra que se pronunciava publicamente. Poderíamos resumir com as palavras de Alfredo Bosi, quando fala da poesia-resistência. A poesia traz para o leitor as imagens muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito de si mesmo, o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os seres.[9]

 

Após a guerra na Polônia (sob o domínio da Rússia soviética) e depois dela, outros poetas voltaram (ou continuaram) a produzir poesia, atendendo às necessidades do povo e a urgências internas dos criadores: Tadeusz Różewicz, Zbigniew Herbert, Wisława Szymborska, Aleksander Wat, Jerzy Ficowski. Na sua poesia, a lembrança dos traumas sofridos na guerra e após ela, seja pelas mãos dos alemães ou russos, voltava a tentar expressar o inexpressável, levando aos conterrâneos a possibilidade de se reconhecerem, entenderem melhor o que acontecia com eles, apresentando o paradoxo da impotência da linguagem em comunicar a sua experiência e, apesar disso, a compulsão de tentar expressá-la.

 

Os caminhos para que a poesia expressasse o inexpressável foram vários. Desde a ironia e o sarcasmo, que criam um distanciamento da realidade, permitindo assim ao emissor e ao receptor unirem-se numa sensação de superioridade em relação à realidade ironizada, passando pela antipoesia[10], a qual de maneira diferente da ironia, mostra que a linguagem e a realidade são duas coisas diferentes. Havia também a poesia, que é o nosso objeto de interesse neste estudo. Os poemas baseavam-se em tentativas de usar a organização extrema da linguagem, própria da poesia, para expressar o grito e o silêncio, por meio da imaterial sensação poética que surge do confronto entre o uso rotineiro e o uso poético do idioma. Provoca assim uma espécie de estado alterado, que junta a compreensão racional aos elementos chamados de irracionais.

 

Se a narração poética da experiência, feita da outra margem da prisão, que resultaram ser os países do bloco comunista, é algo que nos toca, a voz que vem de dentro da prisão, seja expressa de forma velada ou não velada, seja distante no tempo ou relatada quase que imediatamente, seja, por fim, experienciada fisicamente ou por meio de testemunho das testemunhas, tem o poder de nos sacudir.

 

Poderíamos fazer a analogia entre os poetas e a imagem dos vaga-lumes de Didi – Huberman[11], que apesar de tudo sobrevivem, seja no meio das trevas totalitárias, seja no meio da luz ofuscante proposta pelas ideologias que mantinham o monopólio sobre a razão. Gostaria de apresentar adiante, então, três pirilampos, três poetas, três poemas, que iluminam aquele período histórico, testemunhando e cantando, e que por meio de sussurro, grito ou silêncio fazem sobreviver a experiência e mostram a possibilidade de transformá-la em luz da poesia que resiste e ilumina. Veremos e comentaremos na sequência três poemas de três poetas: Iossif Brodskii, Aleksander Wat e Zbigniew Herbert.

 

O poema do russo Iossif Brodskii (1940-1996), laureado com o prêmio Nobel em 1987, foi escrito oito anos depois de o poeta ser expulso de sua terra natal. O poema contêm um relato de suas variadas experiências. No dia do seu aniversário de quarenta anos Brodski recorda a sua rica vida. Quando criança, quase morreu de fome no cerco de Leningrado. Dizem que foi denunciado pelo amigo, poeta e concorrente ao amor de Marina Basmanova[12], para depois sofrer acusações de ser um parasita social. Foi preso duas vezes nos hospitais psiquiátricos soviéticos, depois condenado a 5 anos de trabalhos forçados num campo de concentração soviético perto do Círculo Ártico. Expulso à força do seu país, separado de sua parceira Basmanova (até o fim da vida) e do filho, Brodskii continuou a escrever a poesia que irrestritamente louvava a vida. Inclusive em seu poema – resumo da vida, poucos dos fatos mencionados acima aparecem, e quando o fazem, não recebem nenhum tipo de destaque, pois o mais importante não é o vivido, mas o aprendido.

***

 

No lugar das feras, eu enfrentava as grades das jaulas,

Gravava meu apelido e sentença com prego nos barracos,

morei na praia, joguei roleta e cartas

jantava trufas com sabe-o-diabo-quem de fraque.

Da altura de uma geleira vi do mundo a metade.

Duas vezes fui aberto com faca, três vezes me afoguei,

Aqueles que esqueceram de mim povoariam uma cidade.

O país que me pariu e fez, larguei.

Pelas estepes que lembram dos urros dos Hunos vadiei,

vestia roupas que estão voltando à moda,

plantei centeio, telhados de celeiros vedei,

fora água seca, tomei as bebidas todas.

Deixei a pupila enferrujada do guarda nos meus sonhos entrar.

Devorava o pão do exílio, sem deixar migalhas nos panos.

Permitia às minhas cordas vocais todos os sons, fora  uivar;

mudei para o sussurro. Agora tenho quarenta anos.

O que posso dizer sobre a vida? Que resultou ser cumprida.

Só a desgraça provoca em mim  a compaixão.

No entanto, até ter pela argila a garganta entupida,

de dentro dela soará somente gratidão.

24 de Maio, 1980[13]

 

De alguma maneira, Brodskii se furta a relatar aqui toda a experiência trágica de sua vida. Ele a menciona de um modo tão universal, que poderíamos pensar, por exemplo, em Ezra Pound, seu vizinho no cemitério San Michele, em Veneza, preso numa jaula, Aleksander Wat na prisão de Lubianka sob a vigilância constante da pupila enferrujada da sentinela. Todos os dois também exilados de suas pátrias, como tantos outros poetas desde Ovídio…

 

O autor, após relatar suas vivências, meio que surpreso por ter sobrevivido até a idade de quarenta anos (“O que posso dizer sobre a vida? Que resultou ser cumprida.”), pois tantos outros não sobreviveram ou não estavam livres como ele (apesar de ter pago pela liberdade com a perda da pátria), fala do escopo da expressão sob a escravização: entre o uivo e o sussurro. O uivo, que reduz o ser humano à sua dimensão animal, a expressão da dor do humano reduzido à carne, estava fora das opções do poeta. O modo predileto de se expressar passou a ser o sussurro – por um lado, íntimo e confidencial, por outro, abafado, quase calado, seja por medo, seja pela impossibilidade de se falar de outra maneira sobre as vivências que lhe tocaram. O sussurro, a voz que ainda resiste, o resto da voz, ou a sua ruína consegue, no caso de Brodskii, revelar uma outra declaração importante: “Só a desgraça provoca em mim  a compaixão./No entanto, até ter pela argila a garganta entupida,/ de dentro dela soará somente gratidão.” Do fundo da sua inimaginável, inenarrável experiência de perseguido, condenado e exilado, Brodskii sussurra duas dicas éticas que funcionam como o salvador fio de Ariadne para sair do labirinto da própria vivência. A primeira delas: não é verdade que tudo é mentira, ilusão – o testemunho da dor, da desgraça provoca a solidariedade, compaixão que se constitui em base para a vida, em base para a poesia. E justo por isso segue-se a segunda dica: não importa que sua vida seja cruel, melhor é existir do que não existir, por isso sejamos gratos. Pelo menos na nossa expressão, pois as últimas linhas do poema não se referem ao sentimento e, sim, à fala. Já que o mundo é tão repleto de desgraças e o sofrimento é inerente à condição humana, para torná-lo mais suportável é preciso solidarizar-se com o próximo e agradecer tudo o que sofremos, pois o sofrimento nos torna mais humanos. É uma plataforma de contato com o outro, por meio da compaixão, e com o nosso interior, com a nossa capacidade de sentir. Já que é impossível sentir só coisas boas e belas, agradeçamos e aceitemos a totalidade da vivência, com tudo o que a vida nos traz, tentando transformar o sofrimento em canto, mesmo que seja um canto apenas sussurrado.

 

Poderíamos dizer que Brodskii, de alguma forma faz coro ao poeta polonês e seu amigo no exílio, Czesław Miłosz (1911-2004), que expressa um pensamento semelhante em seu curto poema “Se não existe”.

 

Se Deus não existe,

não é tudo permitido ao homem.

É o guarda do seu irmão

e não deve ao seu irmão entristecer,

falando que Deus não existe.

 

Os dois poetas parecem dizer que a poesia não deve servir de veículo para o poeta compartilhar seu desespero com o seu próximo – leitor. Ao contrário, deve ser como o vaga-lume, trazendo um lampejo de luz no meio das trevas, perfeitamente perceptíveis sem ela. Talvez esta seja mais uma forma de resistência da poesia.

 

Uma luz diferente é trazida pelo poema de Aleksander Wat, que mesmo do outro lado do muro de Berlim, que simbolicamente fechava a prisão do bloco comunista, prisão esta que continuou a viver dentro dele até o fim dos seus dias. Se, no caso de Brodskii, o relato, aos quarenta anos de idade, de uma vida rica, afortunada e desafortunada, termina mostrando que o poeta conseguiu de alguma maneira integrar os traumas que vivenciou, recusando na sua gama de expressão o uivo e jorrando da garganta, até a última vibração de cordas vocais, a gratidão, o enlevo, o encantamento com a vida, o caso de Wat se apresenta diferente. Isto pode ser originado pelo fato de ele ser de uma geração que nasceu e foi criada antes do advento dos cataclismos do século XX, e por isso viveu o choque de modo mais forte, pois viu seu mundo ruir várias vezes. No poema, escrito quando tinha cinquenta e seis anos, em 1956, pois era contemporâneo do século, Wat (1900-1967) volta à prisão da qual, talvez jamais tenha conseguido sair. A dor causada pela doença, provavelmente oriunda da hospitalidade da prisão soviética de Lubianka[14], por onde passou apesar (ou por conta?) de suas declaradas e praticadas simpatias comunistas, assim como seu amigo das prisões na Polônia direitista do pré-guerra e das soviéticas posteriormente, o poeta Władysław Broniewski, foi a experiência mais marcante de sua vida. Por conta da dor  relacionada pelo poeta com a experiência soviética, que “morreu e apodreceu” dentro dele, segundo suas próprias palavras, Wat suicidou-se, tomando overdose de analgésicos, em 1967. A sua obra – testemunho de sua vivência soviética Meu século (Mój wiek), relatada em forma de confissão falada a seu amigo poeta Czesław Miłosz, ainda espera sua tradução e pesquisa no universo luso-falante. Trata-se de um dos depoimentos mais fascinantes sobre o totalitarismo comunista russo, que analisa, entre outros, todo o processo de “engenharia das almas” que se dava por meio de uso da linguagem unida à violência, coerção e coação, que resultava na “construção do novo homem”.

Noturnos (III) – Aleksander Wat

 

Was spricht die tiefe Mitternacht
Nietzsche

 

O que diz a noite? Nada

diz. A noite

tem a boca

selada com gesso.

O dia – este sim. Tagarela.

Sem cesuras, sem hesitações, sem um segundo

de reflexão. E vai tagarelar assim

até cair e morrer

de exaustão.

E no entanto eu ouvia o grito

na noite. Cada noite. Na famosa

prisão de Lubianka

Que belo contralto. No início

pensei que Anderson Marian

cantava spirituals. E era um grito

que sequer pedia socorro. Nele

estava o início e o fim

tão unidos que impossível determinar onde

o fim finda

o início inicia.

É a noite gritando.

É a noite gritando.

Embora tenha a boca

selada com gesso.

É a noite gritando. Depois

o dia começa o seu nanana

até cair e morrer

de exaustão.

A noite – esta não morrerá

A noite não morre

embora tenha a boca

selada com gesso.

 

Saint Mandé, 5 de novembro 1956

 

No poema que vimos acima, Wat, que antes da guerra era o poeta da feliz e inspirada invenção linguística, um dos principais nomes do futurismo polonês, relata numa linguagem quebrada e simples, com a voz que parece entrecortada, engasgada, dolorida, algo da sua experiência em Lubianka. Alguns dizem que, por conta da sua dor, a poesia de Wat é uma subjetiva taquigrafia do sofrimento. Mas os versos como os acima, ou como estes: “Minha dor – quatro paredes/ sem janelas e nem portas./Só escuto a sentinela: trás do muro/andar em volta”[15], são marcados com a sensação da dramática essencialidade, que transforma a experiência individual em universal, existencial.

 

A pergunta sobre o que diz a noite, feita duas vezes, primeiro em alemão da epígrafe Nietzscheana, depois com a própria voz do autor, chama a nossa atenção para o significado simbólico da noite[16]. A leitura deste significado permite pensar em inspirações e medos, mas também no silêncio da noite na qual obrigatoriamente, consciente ou inconscientemente, ouvimos o nosso âmago. Noite, como a mencionada lua de Leminski, fonte de inspirações poéticas, vagos medos, irracionais anseios, espaço de conversa consigo mesmo, lugar dos sonhos e pesadelos. A riqueza de possíveis significados é de imediato contrastada com a abrupta secura da resposta curta e grossa, o cortante: “Nada”. A noite antropomorfizada pelo poeta não apenas não diz nada, ela tem também uma boca, que na chocante imagem seguinte, é selada com gesso. Por um lado, a noite, suave ou terrível, sedutora, feminina tanto em polonês quanto em português, a noite dos sonhos, dos amantes, do repouso, da poesia. Símbolo de tudo que é humano com as suas idiossincrasias. Do outro lado, a mão brutal da violência que com gesso sela a sua boca, a boca do condenado, impedindo-lhe de expressar o seu último protesto, o grito, o testemunho do terrível. A noite da dimensão simbólica da cultura é calada drasticamente. O leitor que, depois de repetida a pergunta, poderia esperar o falar romântico da noite, seus murmúrios e sussurros, é de imediato levado a uma outra percepção – o silêncio forçado, o grito preso na garganta levam-lhe às onipresentes trevas totalitárias. A dimensão da morte, associada com a noite, é imediatamente ativada. A dimensão sem limites nem contornos, o abismo espreita por entre os versos do poeta. O silêncio forçado das trevas totalitárias, o silêncio que à força abafa o grito, testemunha o anoitecer da civilização.

 

Enquanto isso, o dia: “Tagarela./Sem cesuras, sem hesitações, sem um segundo/ de reflexão. E vai tagarelar assim/até cair e morrer/de exaustão.” A primeira coisa que chama a atenção nesse contraste entre o dia e a noite, entre o silêncio e a zoeira vazia de sentido é o tipo de morte. Enquanto a noite morre com a boca selada com gesso, o dia “tagarela” até à morte. Partindo deste contraste, pensemos na diferença de viver entre os muros da prisão (noite) e fora deles (dia). De um lado o silêncio forçado dos oprimidos, do outro, a tagarelice voluntária do sistema. De um lado, a tuba da propaganda, tagarelando sem cessar, do outro, as pessoas nas logorreias ininterruptas com aparência de normalidade, disfarçam, abafam a terrível verdade, excluem qualquer possibilidade de diálogo efetivo com outras experiências nos conversantes solilóquios, querendo ouvir apenas a si mesmas e não o outro. O vazio “nanana/ até cair e morrer/ de exaustão” do dia, da forçada ou voluntária inconsciência é na sequência contrastado com a verdade tenebrosa do grito: “Nele/estava o início e o fim/tão unidos que impossível determinar onde/o fim finda/o início inicia.” O falar vazio, a algazarra da feira, o “desfalar”, é contraposto ao grito, a verdade da dor que perdeu qualquer outro meio de se expressar com o mínimo de coerência e, no entanto, é a expressão suprema e o testemunho da experiência humana, desde o primeiro grito do recém-nascido, pelos gritos da dor ou êxtase, até os estertores finais. A poesia não canta mais, nem sussurra, diante do suicídio da civilização ela precisa gritar.  O grito é a linguagem que se abstêm de permanecer uma linguagem racional. A palavra racional, como evidencia o poema não passa do nanana tagarela e vazio. O grito por toda a sua gama de significados, mencionados acima, remete a linguagem ao nível do símbolo, da metáfora poética, ao nível primordial do mito. Sobre o mito, que é a linguagem poética, nos diz Ernesto Grassi “o mito é o fundamento do lógos,(…) o mundo alusivo é o fundamento do mundo demonstrativo, que demonstra uma insuficiência de linguagem, pois em sua forma racional, não é capaz de expressar o primordial”[17] Neste mesmo livro, o filósofo italiano traz o étimo da palavra metáfora. A sua origem é o grego metaphérein (transferir, inclusive transpor fisicamente de um lugar para outro). Metáfora caracteriza a transferência entre diferentes campos. A palavra é transferida da linguagem racional para a linguagem simbólica e vice-versa. O grito desnuda a incapacidade da linguagem racional de trazer um eco da realidade por si só, como a metáfora traz para o leitor o eco sensível.

 

Outro aspecto desta oposição entre o dia e a noite, a tagarelice e o grito, a racionalidade e a palavra poética é que diante do desgaste das palavras, cujos significados foram subvertidos e esvaziados pela onipresente propaganda, fenômeno bem descrito pelo estudioso do totalitarismo paralelo Victor Klemperer, à poesia cabe gritar, para tentar renovar os seus sentidos. Renomeando as palavras corrompidas, redescobrindo a linguagem e o seu poder de assinalar realidades, transpondo por meio das metáforas a linguagem de um domínio para outro, o poeta tenta resgatar a linguagem. Por isso o grito aparece também como o canto, forma de ressiginificar a palavra na poesia.

 

Quem nos fala, o eu lírico, é um dos prisioneiros. No meio da noite vigia, ou não consegue dormir, por medo, incômodo, na expectativa dos interrogatórios. O grito abafado do lado de fora é ouvido dentro da prisão a cada noite. Dentro e fora podem ser literais ou metafóricos. Os prisioneiros também precisavam dos seus dias tagarelantes, para disfarçar por um instante a dimensão onipresente da treva. E, assim como no início desse poema, a primeira leitura desse grito vem pela dimensão cultural. O grito parece o belo contralto de Marian Anderson, cantando spiritual. A ironia dupla, além de desnudar o território da cultura, traz a lembrança da cantora famosa por seus protestos contra a discriminação racial nos Estados Unidos, o que na prisão do sistema comunista, que se dizia o lugar de igualdade, liberdade e fraternidade de todos os seres humanos, ganha um sentido totalmente inesperado. “É a noite gritando”, repetido por três vezes, dramatiza o poema trazendo o crescendo antes do clímax do poema. Qual poderia ser o sentido desse grito? Grito existencial, grito de desespero (pois “nem sequer pedia socorro”), grito que mistura as dimensões da cultura e da experiência do abismo? De modo totalitário o spiritual que pretende ser uma conversação com deus, expressão da dor metafísica, natural à condição humana é misturado com outra dimensão inenarrável, a dimensão da dor infligida ao ser humano pelo seu próximo. O bem e o mal mesclados, o belo e o horroroso em um. A noite totalitária que quer ser tudo e estar em todas as dimensões da vida.

 

Esse grito, da noite que não morre, não morrerá jamais. A palavra foi corrompida, a cultura e a linguagem foram contaminadas com a treva totalitária. A verdade do ser humano sobre si mesmo mudou irrevogavelmente. O que diz a noite? A noite traz o nada, a dimensão niilista. A noite poética transforma-se em noite da civilização. A treva totalitária dessacralizou a linguagem, dessacralizou até a dimensão do nosso íntimo, no qual as duas noites se misturam. A pergunta inicial do poema mostra a boca selada com gesso da noite no seu significado cultural e o grito que não morre nunca da noite totalitária. Por outro lado existe ainda a possibilidade do grito-canto ser uma tentativa de metáfora, transposição, que permite a ressignificação da linguagem a partir de sua volta aos primórdios poéticos. É ativada a dimensão da linguagem, o grito, que não consegue mentir, que não se presta à manipulação, que reinventa a linguagem esvaziada e subvertida pela propaganda do sistema. Como no “Apolo e Mársias”, de Herbert, o grito é a base de uma nova arte, a arte humana baseada no sentir e sofrer, totalmente diferentes da arte perfeita e divina de Apolo. Apesar da treva do dia totalitário, de noite o vaga-lume ainda sobrevive. A cada um, em seu âmago, para o qual a pergunta se dirige, cabe responder o que lhe diz a noite.

 

O terceiro vaga-lume que gostaríamos de apresentar neste trabalho nunca foi o prisioneiro de Lubianka, mas em sua poesia trazia constantemente tanto o sofrimento e testemunho dos totalitarismos, quanto a reflexão sobre a crise dos valores e da cultura no mundo depois da guerra e durante o totalitarismo comunista. Zbigniew Herbert (1924-1998), em seu poema “Senhor Cogito – anotações da casa morta” dialoga com o “Noturnos III”  de Wat. Herbert conhecia tanto a pessoa quanto a poesia de Wat. Podemos supor que o poema e a experiência do poeta mais velho serviram de inspiração para o poema que veremos a seguir.

 

O poema continua a reflexão de Herbert sobre o sofrimento e o papel da arte perante ele, iniciada naquele que talvez seja o mais famoso de seus poemas mundo afora “Apolo e Mársias”[18]. No poema que acrescentava, como costumava fazer o poeta, outro final à história mítica, sobre o duelo entre um deus e Sileno, Herbert refletiu sobre a necessidade de uma arte que, diferentemente da apolínea, pudesse dar o testemunho da verdade dos seres sencientes, simbolizada pelo grito de agonia de Mársias. No poema que iremos ler, o grito volta para o interior de uma prisão que é ao mesmo tempo um templo. O próprio título, que nos remete a Dostoievski e sua experiência de ouvir os gritos na prisão, relatada no livro, ajuda a situar uma das possíveis locações do poema. Curioso é que, na tradução do título do livro de Dostoievski, Herbert utilize uma tradução anterior, que já foi substituída por outra na tradição polonesa. As anotações da casa morta hoje aparecem como As lembranças da casa dos mortos. Além do título usado por Herbert refletir fielmente o original russo, Herbert alude a seu próprio poema “A casa” (“Dom”), que apresenta a morte da casa física e a sobrevivência da casa simbólica durante a guerra. No entanto, sem dúvida, a implicação mais importante do uso do título nesta forma  é relacionar o poema com o relato de seu amigo e compatriota, o escritor  Gustaw Herling-Grudziński, em cujas memórias, Outro mundo (Inny świat), o livro de Dostoievski aparece justamente sob este título, e cumpre o papel, mencionado anteriormente, da cultura como ponto de contato com o humano no campo de concentração soviético. O livro de Herling foi um dos primeiros testemunhos da existência e terrível verdade dos gulags, a ver a luz, primeiro em tradução para o inglês, em 1951, em Londres, e, posteriormente, em 1953, no original polonês, em Paris. Na Polônia, o livro foi editado somente em 1988, no ocaso do comunismo e depois do volume O informe da cidade sitiada, de Herbert, que contém o poema, publicado em Paris em 1983 e na Polônia em 1992.

 

O Senhor Cogito – anotações da casa morta

 

1

jazíamos enfileirados

no fundo do templo do absurdo

ungidos com sofrimento

em molhadas mortalhas de pavor

 

como frutos

caídos

da árvore da vida

apodrecendo separadamente

cada um à sua maneira

apenas nisso dormitava

a sobra de humanidade

 

com veredito inconcebível

destituídos do trono dos primatas

semelhantes a celenterados

protozoários

asquelmintos

 

privados

da ambição

de existir

 

e então

às dez da noite

quando as luzes foram apagadas

inesperadamente

como cada revelação

soou

a voz

 

masculina

livre

comandando

o levantar

dos mortos

 

a voz

poderosa

majestosa

tirando-nos

da casa da servidão

 

jazíamos enfileirados

baixos

escutávamos atentos

 

e ela

pairava

sobre nós

 

2

ninguém conhecia

sua face

 

fechado hermeticamente

no lugar inacessível

chamado

debir

 

no próprio

coração do tesouro

 

sob a guarda de sacerdotes cruéis

sob a guarda de anjos cruéis

 

nós o nomeamos Adão

isto é feito da terra

 

às dez da noite

quando as luzes eram apagadas

Adão começava o concerto

 

para os ouvidos dos profanos

ele soava

como o rugido do acorrentado

 

para nós

epifania

 

era

o ungido

o animal sacrificial

o salmista

 

cantava

o deserto inconcebível

o chamado do abismo

o laço nas alturas

 

o grito de Adão

era composto

de duas três vogais

estendidas como costelas de

abóbadas celestes

 

depois

abrupta

pausa

 

o rasgamento do espaço

 

e de novo

como um trovão próximo

as mesmas duas três

vogais

 

avalanche de pedras

ruído de muitas águas

as trombetas do juízo

 

e não havia naquilo

nenhuma queixa

súplica

nem sombra de doloroso

 

crescia

magnificava-se

vertiginosa

 

coluna escura

que empurrava/empurra

as estrelas

 

3

após alguns concertos

silenciou

 

a iluminação da voz

durou pouco

 

não redimiu

os fieis

 

levaram Adão

ou ele mesmo se retirou

para a eternidade

 

apagou-se

a fonte

da rebelião

 

e talvez

apenas eu

ouça ainda

o eco

de sua voz

 

cada vez mais delgado

mais silencioso

cada vez mais distante

como a música das esferas

a harmonia universal

 

tão perfeita

que inaudível

É o grito que inicia e termina a vida, que acompanha as vivências liminares do ser humano, é o grito que testemunha a presença do abismo, é o grito que, composto de algumas vogais, contém a verdade sobre a vida e o sofrimento, dimensões universais do ser, postas em evidência pela experiência totalitária. Mas o contexto político, por mais que fosse importante na época da publicação, é somente o pano de fundo para a reflexão universal a respeito do sofrimento humano[19].

 

O eu lírico, o herbertiano senhor Cogito, uma espécie de imagem do intelectual centro-europeu do século XX, com vários traços autobiográficos, é um recurso que permite ao mesmo tempo o distanciamento e a aproximação. Aqui ele inicialmente compartilha da situação dos prisioneiros, para no final ser um dos poucos, se não o único, a escutar ainda o eco do grito de Adão. Na primeira parte, relatada em primeira pessoa do plural, diferente do singular “eu” do final do poema, temos como sujeito do discurso os prisioneiros, reduzidos à dimensão do corpo animal, “semelhantes a celenterados/ protozoários/ asquelmintos/ privados/ da ambição / de existir”. A sua vida é reduzida ao instinto de sobrevivência, na espera da morte, cuja presença se anuncia com o palavreado que rodeia o seu ritual (“jazíamos enfileirados” – tentativa de traduzir “leżeliśmy pokotem” do polonês que traz a ideia de fileira dos animais mortos após a caça, “ungidos” , “mortalhas”).

 

Tendo os prisioneiros passado por todas as etapas de aniquilação da personalidade praticadas em campos totalitários, foram reduzidos a puro instinto de sobrevivência de celenterados, asquelmintos e protozoários e a sua única plataforma de contato com a existência e de comunhão com os outros é a dor. Agora encontram-se no fundo (nos porões?) do templo do absurdo. Temos nesta metáfora um recado semelhante ao de Wat: as dimensões sagradas juntam-se às abjetas, o nada toma posse do lugar de estabelecer os sentidos. O uso do adjetivo ungido, que estabelece uma associação entre morte e unção como sendo a união com deus, dignificação. “Ungidos com o sofrimento” – talvez possamos encontrar aqui também o diálogo com a tradição da tragédia clássica, na qual o sofrimento imerecido trazia às personagens a dignificação, algo que não ocorre nos contextos totalitários, nos quais o sofrimento é utilizado propositadamente para privar as pessoas de dignidade.

 

De um modo ou de outro, a sacralização da opressão sinalizada por essa linha, assim como o “templo do absurdo”, ao mesclar o dignificante com aquilo que tira a dignidade, continua a mostrar a perda do sentido sofrida pelos valores sagrados, civilizatórios. O sistema totalitário como uma espécie da paródia da cristandade, ou o sistema eclesiástico cristão como o protótipo do totalitarismo podem ser encontrados em Herbert com certa frequência. Basta citar poemas como “Relatório do paraíso” (“Sprawozdanie z raju”), traduzido por Nelson Ascher[20] ou “Nos portões do vale” (“U wrót doliny”) traduzido por Marcelo Paiva de Souza, que no artigo “Ao vivo, direto do vale de Josafá – algumas reflexões sobre a poesia e a tradução da poesia de Zbigniew Herbert”[21], também trabalha este tema.

 

A sequência do poema aprofunda essa mescla de imagens santas com o abjeto. Prisioneiros, veem-se como “frutos/ caídos/ da árvore da vida/ apodrecendo separadamente/ cada um à sua maneira”. O paraíso, lugar de estar ao lado de deus, está maculado com podridão. O lugar de encontro com o sagrado e com os valores é marcado pela decomposição. Os seres humanos só conservam o resto da sua humanidade no fato de apodrecerem, morrerem, cada um de seu próprio modo. E no entanto, nesse espaço do paraíso podre (talvez seja  uma alusão às pretensões paradisíacas de todas as utopias aplicadas), na prisão na qual a luz é apagada às dez, para não permitir nenhum tipo de liberdade de viver no ritmo individual, nesse espaço apocalíptico, os prisioneiros presenciam a Segunda Vinda. A voz do Deus bíblico que tira da casa da servidão, do Messias que retorna, do Cristo que manda os mortos se levantarem, traz a esse espaço a revelação. E a voz paira acima dos presos.

 

O inegável tom bíblico do Velho Testamento na primeira parte do poema cede lugar à introdução de inúmeras alusões religiosas mais ligadas ao Novo Testamento, na segunda. O templo do absurdo, a prisão, no seu debir, (o santo dos santos, lugar onde era guardada a Arca da Aliança), no lugar das revelações (presume-se a sala de torturas e interrogatórios) é preenchido com o grito do prisioneiro. Os sacerdotes e anjos cruéis que guardam o espaço nos trazem de volta a dimensão totalitária das religiões e a religiosa das ideologias totalitárias. O templo – prisão, com semelhanças com o templo de Jerusalém, simboliza a centralidade da opressão, como a condição do ser humano, enxergada com tanta nitidez no século XX. O mítico centro do mundo – lugar da construção do templo, é o centro da condição humana –  a prisão. Este tipo de paralelo nos remete de imediato a Camus e outros escritores e filósofos existencialistas. O cenário particular da prisão totalitária, é ao mesmo tempo o cenário universal da experiência humana. Adão é cada um de nós, tirado da terra. Se pensarmos em Adam Kadmon, o “homem original” da Cabala, que une as dimensões do alto e de baixo, que veio a ser a simbólica representação da união entre o micro e o macrocosmo, representada em forma de homem na Árvore da Vida da Cabala Luriânica, que emana das divinas fontes imanifestas Ain Soph Aur, podemos pensar no Adão do poema como o representante do mundo no seu sofrimento essencial e inerente à existência senciente.

 

Ao mesmo tempo, este mesmo Adão, trazido para o debir, lugar do sacrifício à divindade no templo, carrega variadas marcas de semelhança com o Cristo, ou o Messias (ungido – é o que seria a tradução de christós para o português, por sua vez christós é a tradução da palavra hebraica Mashíach, o consagrado, Messias; animal sacrificial – cordeiro de deus; salmista – nos remete a Davi, rei cantor, cujo descendente foi o Cristo). Se pensarmos na morte de Cristo, em meio a torturas infligidas pelo Império Romano, podemos construir mais uma possibilidade de analogia com impérios totalitários. A Segunda Vinda do Messias se dá na casa morta, à semelhança daquilo que acontece em Irmãos Karamazov, de Dostoievski, onde Cristo é preso pelo Grande Inquisidor. Diferentemente do silêncio diante das acusações do Cristo de Dostoievski, o Cristo de Herbert grita. O seu grito-canto, que de novo lembra o poema de Wat, “cantava/o deserto inconcebível/o chamado do abismo/ o laço nas alturas”, o espaço da morte, da aniquilação, do nada. Para os prisioneiros, que como Wat escutavam o grito, diferentemente dos que o faziam com ouvidos profanos, ele trazia revelação. Que revelação poderia ter sido esta? De ser o próximo na fila de torturas, de ser mortal, de ser feito de carne que sente a dor. O grito assusta como “um trovão próximo”, conscientiza de que não é nosso o Reino, o Poder e a Glória. O grito é onipresente, enche o mundo, é o mundo. O Adam Kadmon, micro e macrocosmo, transforma-se em símbolo do mundo que sofre, exibindo as costelas das abóbadas celestes. O grito não é um grito de queixa, súplica ou lamento. É um protesto, rebeldia contra o mundo que tem na sua base o sofrimento. Novamente como os vaga-lumes de Didi-Huberman aparece no meio da treva para trazer um pouco de luz.

 

Variadas referências bíblicas aparecem ao longo da segunda parte, como: “ruído de muitas águas” (Ezequiel 43, 2; Apocalipse 1, 15) ou “as trombetas do juízo” (aparecem tanto na Missa de Réquiem quanto no Apocalipse 8, 6). O rasgar do espaço lembra o rasgar do véu do templo relatado no momento da morte de Cristo em São Mateus (27, 51). As estrelas, que são empurradas pela coluna escura, lembram “as estrelas do céu que caíram na terra, como frutos verdes que caem da figueira agitada por forte ventania”, no Apocalipse (6,13) ou em São Marcos (13, 25), como prenúncio da Segunda Vinda.

 

A ordem do mundo foi destruída, o cosmos foi desconfigurado pelo sofrimento do universo contido no grito de Adão/Cristo/Homem que foi levado ou retirou-se para a eternidade. O mundo dos valores, o mundo marcado pela presença divina foi destruído, e como diria Fernando Pessoa “o universo/Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança”[22] , na terceira parte do poema.  Após a volta de Deus, para ser novamente morto e humilhado, após o fim do mundo, no poema aparece pela primeira vez o tempo presente. Não sabemos se aconteceu o Juízo. Talvez não possa haver o Juízo no mundo cuja base é o sofrimento… O Deus que voltou, sofreu como o Cristo. Como ele foi humilhado. Não deixou nenhum legado, nenhuma Boa Nova. “Não redimiu os fiéis”. Sobra apenas o inseguro depoimento do último testemunho, o Senhor Cogito, que numa parte do poema graficamente marcada por retirar os versos da linha vertical “para dentro” da página diz ser o único que ouve “ainda/o eco/ da sua voz/ cada vez mais delgado/ mais silencioso/ cada vez mais distante”. Estamos no mundo de hoje, no mundo pós-apocalíptico, pós-moderno, entre as ruínas da civilização, onde só os poetas ainda conseguem ouvir o eco do grito proferido pela voz de deus. “A música das esferas/a harmonia universal” se foram do mundo. Ao se pensar na referência à harmonia das esferas de Pitágoras e ao som inaudível para todos, exceto para o próprio mestre, permanece a pergunta colocada nas entrelinhas por Herbert: será que o mundo algum dia foi mesmo o espaço ordenado, harmônico, o Cosmos, ou será que essa harmonia não passava de ilusão dos idealistas? A harmonia expressa pelo silêncio, tão perfeito “que inaudível”, pelo silêncio que comporta os sonhos da ordem e os gritos da noite.

 

Brodskii, Wat, Herbert – três vaga-lumes, três tentativas de dizer de modo poético o inexpressável. Apresentam três formas de expressão poética, evidenciando a necessidade de reinventar a linguagem, sussurrando, gritando ou silenciando, dizer o indizível, três modos de sobreviver elucidando as trevas do século XX, reinventando a linguagem para pensar a vivência e, por meio do instrumento perfeito do discurso, transformá-la em experiência. Mostram, da mesma forma que os vaga-lumes que sobreviveram, que a poesia depois de Auschwitz é uma necessidade. Poesia, que resiste e que teima em evidenciar por meios poéticos a barbárie inerente ao ser humano, sem, no entanto, ser um ato de barbárie.

 

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[1] O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil. Autor agradece correções sobre o artigo e sobre as traduções dos poemas a Eneida Favre.

[2] Tradutor, professor de literatura polonesa da UFPR

[3] ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução: Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998, p. 26 [7-26]

[4] No capítulo II do seu livro intitulado “Poetas e a família humana” Miłosz conta a história da cisão, progressivamente aumentada desde século XIX, entre os poetas e o resto da sociedade, que veio a ser postulada pela poesia que queria se separar do ser humano comum. Os simbolistas franceses fizeram deste postulado a norma da sua poética. A poesia deveria ser compartilhada como o sacramento, pelos eleitos, em vez de falar do mundo, deveria existir em seu lugar. MIŁOSZ, Czesław. O testemunho da poesia. Seis conferências sobre as aflições do nosso século. Tradução e prefácio de Marcelo Paiva de Souza. Curitiba: EdUFPR, 2013.

[5] SNYDER, Timothy. Terras de sangue: a Europa entre Hitler e Stalin. Tradução de Mauro Pinheiro. São Paulo: Record, 2012.

[6] Para análise do poema e deste símbolo remeto-me a excelente interpretação de Wilberth Salgueiro: SALGUEIRO, W. Poesia versus barbárie – Leminski recorda Auschwitz (a lua em luto). In: SALGUEIRO, W. (Org.). O testemunho na literatura: representações de genocídios, ditaduras e outras violências. Vitória: EDUFES, 2011.

 

[7] No conto “O canto de Ulisses” do livro É isto um homem? p.111.

[8] GINZBURG, Eugenia Stroma ściana, vol. 1-2, trad. Andrzej Mandalian. Varsóvia: Czytelnik 2009. Há traduções do livro para italiano (Viaggio nella vertigine), francês (Le Vertige e Le ciel de la Kolyma) e inglês (Journey into the whirlwind). O livro foi adaptado para o cinema, infelizmente a adaptação seguiu padrões hollywoodianos.

 

[9] BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, EdUSP, 1977, p. 191.

[10] Utilizo aqui o termo na acepção proposta por Michael Hamburger ao se referir entre outros a poesia de Różewicz, no nono capítulo (“Uma nova austeridade”) do seu livro A verdade da poesia: tensões nas poesia modernista desde Baudelaire.  Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

[11] Didi-HubermaN, georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução: Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

[12] Informação provinda de ensaio de Keith Gessen. “The Gift. Joseph Brodsky and the fortunes of misfortune”. The New Yorker. 23 de maio de 2011. Disponível em < http://www.newyorker.com/arts/critics/atlarge/2011/05/23/110523crat_atlarge_gessen>, acesso em 22.jun.2014.

[13] Todas as traduções poéticas neste trabalho, a não ser quando indicado, são de minha autoria. A tradução deste poema foi publicada em Qorpus, vol 13 de 01.06.2014.

[14] Wat foi vítima de um micro derrame que alojou no centro da dor, em seu cérebro, um coágulo, cuja remoção era impossível. Consequentemente, desde os anos cinquenta, quando aconteceu o derrame, passou a vivenciar cotidianamente a dor numa intensidade enorme. Em suas memórias o poeta atribui à dor a qualidade de castigo por seu envolvimento com o comunismo e a relaciona com a sua experiência soviética que aconteceu alguns anos antes do início da doença.

 

[15] O poema originalmente metrificado, mas sem rimas. A tradução da íntegra do poema e seu original podem ser conferidos na seção Teatro na praia.

 

[16] A minha subsequente leitura deste poema é devedora da interpretação dele feita por Kazimierz Nowosielski que em seu artigo “Co mówi noc. Wokół jednego wiersza Aleksandra Wata.” Znak vol. 519, agosto de 1998, entre outros, tece considerações a respeito dos sentidos da noite, seu grito e da tagarelice do dia.

 

[17] GRASSI, Ernesto. O poder da imagem. A impotência da palavra racional. São Paulo: Duas cidades, 1978, p. 73).

[18] Os poemas de Herbert “Apolo e Mársias” e “Casa” aqui mencionados podem ser acessados no anexo do trabalho.

 

[19] A minha subsequente leitura deste poema é devedora das interpretações dele feitas por Bogdan Burdziej (BURDZIEJ, Bogdan. “Objawienie w Martwym Domu według Zbigniewa Herberta.” Em: FRANASZEK, Andrzej (org.). Poznawanie Herberta. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 2000, p.405-435) e Andrzej Franaszek (FRANASZEK, Andrzej. Ciemne źródło. Esej o cierpieniu w twórczości Zbigniewa Herberta. Cracóvia: Znak, 2008) que ajudaram na localização das citações bíblicas e apontaram as possibilidades exegéticas.

 

 

[20] Disponível em: http://poemargens.blogspot.com.br/2012/04/zbigniew-herbert-1924-98.html, acesso em 29.06.2014.

[21] publicado em Tradução em Revista (Online), v. 1, p. 7, 2011. Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/17860/17860.PDF, acesso em 29.06.2014.

[22] em seu poema  “Tabacaria”