O Teatro de Machado de Assis e a Comédia Francesa – Helena Tornquist

Florianópolis, 21 de novembro de 2011.

O Teatro de Machado de Assis e a Comédia Francesa

                                                   Por Helena Heloisa Fava Tornquist*

O teatro, como forma artística de maior prestígio ao longo do século XIX, foi o centro de ressonância das mudanças observadas na sociedade oitocentista. Por volta de 1850, contrapondo a vida cotidiana aos excessos de fantasia a que havia chegado o drama romântico, mas expressando ainda a ordem sujeito/identidade que só a modernidade iria abalar, surgiu na França  uma nova modalidade de peça teatral. Tratava-se um texto cômico  baseado na observação da realidade, mas animado por uma vontade moral – a ‘comédia séria’, como alguns a definiam então.
Sabemos que  na tradição ocidental a ação da comédia estava centrada no tema amor e casamento e apoiada em situações destinadas a provocar o riso fácil e desfechos que harmonizavam os contrários. Neste novo gênero, se é que assim se pode chamar, a exacerbação das paixões da era romântica dava lugar à racionalização dos sentimentos e introduzia no palco novos atores: cortesãs, aristocratas decaídos, inventores fracassados, don juans e espertalhões. De certo modo, a burguesia que frequentava os espetáculos e os que gravitavam em torno dela, passavam a marcar  sua presença  na representação artística.
A intenção cômica, de certo modo, desaparecera: nessas peças não se encontram mais as cenas da velha comédia que provocavam o riso fácil, nem mesmo os tipos representativos que integravam a galeria dos cômicos de todas as épocas.  Na verdade, trágico e cômico aos poucos deixavam de ser critérios diferenciadores.
Não admira que uma sociedade que não conseguia resolver suas contradições internas carecesse de condições para o riso franco. Como bem lembra R. Peacock, o século XIX burguês só tinha olhos para a comicidade satírica, o riso retórico, triste, sério, e sentencioso: admitia-se ainda o riso puramente recreativo despreocupado e trivial. O ‘sério’ tinha que permanecer grave, isto é, monótono e sem relevo.
Cabe lembrar que a rejeição ao cômico implícita na identificação com a ideologia da seriedade que então marcava a cultura ocidental explica-se pela necessidade de preservação do logos. A comicidade é a ruptura, é a descontinuidade que se contrapõe ao caráter contínuo da razão. Para Luis C. Baeta Neves o riso, o cômico são vistos como envoltos em inconsequência, momentaneidade, irrelevância – a seriedade seria o inverso. O riso não deve ser levado a sério. A ideologia só quer que riamos do que é cômico e que nos esqueçamos dele em seguida…  Não seria mero acaso que nos teatros de Paris o riso franco fosse delimitado geograficamente, ficando circunscrito aos bulevares da margem esquerda do Sena, longe, portanto, do Faubourg Saint Germain, local onde se concentrava o poder e a riqueza naquela quadra do século.
Embora a teoria aristotélica permanecesse à base da concepção geral dessas peças, a simplificação do diálogo dramático representava a tentativa de adaptar o conteúdo e o tom geral do espetáculo aos ideais democratizantes que orientavam a nova ordem. Adequando-se ao público, numa versão “moderna” do conceito de catarse, as comédias sérias faziam concessão ao gosto médio da burguesia,  apresentando a verdade de modo discreto, a fim de evitar comoções. Em suas criações os novos dramaturgos estavam movidos por um  propósito: em lugar da emoção forte, o público deveria ser levado a refletir.

TEATRO PARA UM NOVO PÚBLICO
Em sintonia com o sentimento dominante, alguns autores dramáticos franceses haviam encontrado o modo de agradar às novas plateias: empenhadas em mostrar a vida contemporânea,  suas peças desenvolvem, via de regra, uma ideia de interesse social amplo, a partir de situações em que o homem de então se visse retratado. Tratava-se, segundo Peacock, de uma sóbria confrontação do homem com aquela sociedade que vinha lentamente amadurecendo e que, finalmente, havia configurado seu caráter particular.
Com efeito, transformado em espelho da sociedade, o teatro francês consagrava nomes entre os quais se destacavam  Alexandre Dumas Fils, Octave Feuillet e Émile Augier, autores de peças que tiveram amplo sucesso também no exterior, inclusive no Brasil. Através da ação dessas comédias, fica-se conhecendo a sociedade de então: o elenco era invariavelmente composto por personagens que pertenciam à camada social privilegiada, ou seja, o Terceiro Estado vitorioso em 1789. Em outras palavras,  eram, em geral, burgueses enriquecidos, muitas vezes em conflito com remanescentes da velha aristocracia. Também  nas didascálias dos textos impressos era observada invariavelmente uma ordem que falava claramente da hierarquia vigente na sociedade representada: em primeiro lugar, eram sempre referidos todos os personagens masculinos, independentemente de seu destaque na trama, depois os femininos e, por último, os criados.
Se esse teatro se destacou por conferir um novo viés à participação da mulher no teatro, tendo Margueritte Gautier se tornado por assim dizer um paradigma, a participação feminina na comédia burguesa sugere que atente para o  contexto histórico-social em que ela se firmou. Após a Restauração observou-se na  França o que tem sido chamado de ‘ofensiva familiarista’, responsável pela transformação da família em mecanismo regulador da sociedade, “comunidade de certo modo natural” e “chave da felicidade individual e do bem público”, na qual,  à mulher era atribuído um papel fundamental, como bem registra Michelle Perrot.  Como símbolo da  fragilidade, a mulher tinha o destino traçado – casar e ter filhos  isto estava inscrito em sua natureza. Para tanto, ela recebia uma educação diferente da que era dada ao homem; jovem ainda, entraria para o mercado matrimonial, onde contavam, entre outros atributos, beleza, educação e, principalmente, um dote, tendo em vista que  missão da  mulher era garantir a instituição da família. Neste contexto, o lar era  um lugar sagrado onde a mulher estava segura contra os males do mundo.
Para assegurar o caráter de representação dessas  comédias o tom cômico era, via de regra, abafado e dizia respeito aos próprios impositivos sociais – em nome do decoro, a atuação da mulher era pautada  pela preservação dos bons costumes.  Entretanto, em muitos desses textos dramáticos, constata-se que esse modelo feminino, por definição representativo do ideal de sociedade, nem sempre era seguido à risca – sob as águas tranquilas da submissão da mulher algum movimento já era perceptível, confirmando-se mais esta observação de Michele Perrot sobre a sociedade francesa de então: “a proclamação do igualitarismo, os progressos insensíveis do individualismo exercem pressões geradoras de conflitos, que podem, por vezes, chegar à ruptura”.  É assim que, apesar dos propósitos de referendar o ideal familiarista que orientavam a representação, a ação e o próprio discurso dramático davam sinais de que a mulher começava a buscar seus próprios caminhos.
Efetivamente, se a atuação da mãe nessas comédias sublinhava seu papel de guardiã dos valores morais e símbolo da honorabilidade do lar, não era difícil encontrar vozes femininas destoantes, precisamente aquelas que fugiam aos padrões estabelecidos, entre as quais, jovens que se rebelavam contra o casamento de interesse, recusando pretendentes impostos pela vontade paterna. Este é o caso de Clémentine  da peça Um belo casamento de Emile Augier: reagindo à hipocrisia de uma sociedade que transformara a mulher em mero objeto, taxava seus pretendentes de courrriers de dot (caça-dotes), classificando-os em dois tipos – “os que visam a fortuna e depois a mulher e os que olham a mulher e depois a fortuna.”  Desfazendo o estereótipo da fragilidade feminina, ela defendia a ideia de que a mulher também deveria ir à guerra por ser mais corajosa e suportar melhor a dor que o homem.
Muitas vezes o empenho do dramaturgo em pôr em discussão o casamento, é claro. Assim, Catherine, personagem de Lions e renards, na iminência de um casamento transformado em mera transação comercial, e sentindo-se simples objeto de escolha masculina expressa toda sua revolta. Mas não só nos textos de Augier podem-se ser destacadas mulheres que ousam defender suas próprias ideias. Isso ocorre também em peças de Alexandre Dumas Filho e de Alfred de Musset, por exemplo. O último, em especial, que, além de poeta, teve uma atuação destacada no teatro, criou situações semelhantes em comédias como Il faut qu’une porte soit ouverte ou fermée  – cuja cena de abertura mostra Madame Verlières travando séria discussão com um antigo namorado acerca da situação de desvantagem da mulher na vida social.
Mas  Alexandre Dumas Filho foi quem expôs com mais clareza esta denúncia: a instituição do casamento estava submetida aos interesses pecuniários.(Question d’Argent, Questão de dinheiro). Uma personagem desta peça chega a afirmar claramente: Il faut être riche pour aimer dans un certain monde ,  enquanto que a filha de Durieu, um parvenu, (novo rico) tem sua atuação marcada pela resistência às imposições que lhe são feitas pela família. Tendo captado a lógica que move as ações dos que a cercam, ela usa as mesmas armas em defesa de seu espaço. Inteligente, tanto que é a única frequentadora da biblioteca do pai onde se mantém atualizada com as inovações do século,  ajovem não hesita em denunciar a relação casamento/dinheiro e o fato de ser  tratada como uma peça nessa ‘negociação’ .
Agindo deste modo, tais personagens não estariam defendendo apenas o direito da mulher de fazer valer seus próprios sentimentos na união matrimonial; como pessoas lúcidas, essas mulheres ousavam afrontar a norma estatuída e apoiadas na consciência de uma diferença que as valorizava e na coragem de enfrentar situações difíceis, o que elas reivindicavam era, sobretudo, sua própria liberdade de expressão.
Há ainda outro viés a destacar. Se para o pensamento dominante, a mulher estava mais próxima do mundo orgânico, sendo identificada com a natureza (em sua bipolaridade Bem/Mal, a cada instante “a filha de Eva corre o risco de precipitar-se no pecado”)   vale a pena examinar, o modo como dos autores tentavam desatar o nó que a ideologia criava, ao enaltecer a figura da mulher e, ao mesmo tempo, limitar-lhe o espaço para agir. A preocupação com a reforma da sociedade e consequentemente a atenção ao público que frequentava o teatro, reforçara  uma regra que associada à noção de verossimilhança – a do bom tom ou decoro. Mas, tendo em vista que o teatro é opsis, uma forma de arte que depende essencialmente do olhar, a contradição mostrava-se em toda sua extensão: como defender os valores estabelecidos, banindo os excessos e desregramentos dos costumes, sem mostrá-los no palco? Por isto, entre os tipos que se fixaram estavam as cortesãs, as frequentadoras do chamado “mundo equívoco”, exatamente aquelas que representavam um dos principais atrativos do teatro (é o caso de Margueritte de A dama das camélias) – vemos que a arte devolvia em ricochete o que a ideologia queria abafar. Atender à mimesis – entendida como a reprodução das coisas tais quais se apresentam –, tornava-se, como se vê, um problema. Isso explica muitas lacunas e silêncios observados nesses textos dramáticos, na verdade  contradições que hoje nos falam mais que o discurso explícito.
Ao lado da figura da cortesã, que denuncia a face preconceituosa de uma sociedade em que o homem tinha todas as liberdades e a mulher praticamente nenhuma, há que destacar ainda a atuação marcante das viúvas. Gozando de uma liberdade que solteiras e casadas desconheciam, à viúva era facultada a tomada de decisões “sérias”, entre as quais a de negociar e também de escolher o futuro dos filhos. O fato é que, libertada da tutela masculina, e contando com mais experiência de vida, a viúva podia então circular com mais desenvoltura na sociedade. Mas isto é o que importa: era a liberdade que lhe dava voz ;  sendo uma pessoa , tinha ideias próprias e sabia expô-las. Ou seja era sujeito de seu discurso.
Tudo isso estava muito claro nas peças que chegavam ao Brasil tão logo obtinham sucesso em Paris – sucesso de bilheteria e de leitores, lembremos, já que os textos eram habitualmente publicados assim que a peça entrava em cartaz, sendo também objeto das colunas de crítica dramática dos jornais e  magazines em voga. Entre esses críticos, estava Machado de Assis, que, dando seus primeiros passos no mundo das letras, assinava comentários semanais. Esses textos, assim como algumas traduções de peças de Octave Feulliet e de Emile Augier feitas por ele, falam de seu interesse pelo mundo da ribalta, o que sem dúvida, iria repercutir largamente em suas próprias criações.

AS COMÉDIAS SÉRIAS DE MACHADO DE ASSIS

Machado de Assis tinha ideias muito claras sobre o teatro e como crítico chamava atenção para os diferentes modos de manifestação do riso. Pode-se dizer que foi pelo teatro que Machado de Assis  iniciou sua carreira de escritor: a peça Hoje avental amanhã luva foi editada no ano de 1860, seguidas de várias outras na mesma década,   nas quais é clara sua opção pelo modelo dramático que vinha da França. De modo geral, esse teatro privilegiava a esfera privada, o que se percebe de saída na ambientação das peças: as informações acerca do cenário invariavelmente remetem para uma sala de visitas decorada ao gosto da burguesia que vivia na cidade do Rio de Janeiro (a Corte) – ou seja, a sede do Império.
Como vimos, ao discutirem temas importantes para a sociedade – entre os quais o casamento, as comédias de então assumiam um tom de seriedade muito particular. Este mesmo tom é o que Machado de Assis conferiu às sua  comédias, o que certamente era muito diferente da comicidade popular e do tom farsesco do teatro de Martins Pena. Por esta razão ou talvez porque seus textos requeriam uma chave interpretativa diversa da usual, sua contribuição para a dramaturgia brasileira têm sido injustamente esquecida e consequentemente, ao contrário do que em geral se tem propalado, Machado não “abandonou” o teatro por lhe  faltar talento: na verdade, seus textos resultavam de uma opção relacionada ao contexto em que escreveu.
Diante do quadro que se acaba de traçar, um escritor que sempre se mostrou atento à necessidade conciliar os elementos inerentes aos modelos que vinham de fora com a realidade de seu país, teve consciência das dificuldades que tinha pela frente. Não seria fácil, por exemplo, dar conta da ideologia implícita nas comédias que chegavam ao Brasil, diante da situação real da mulher em seu país, nem tão simples fazer com que o discurso sobre a liberdade da mulher soasse verossímil numa sociedade escravocrata, alicerçada na tradição patriarcal.
Cabe lembrar ainda que, em seu empenho pela criação de uma literatura nacional, Machado estava atento ao problema da representação da sociedade. Assim, se, de modo amplo, a base da nossa organização social afirmava os ideais da Revolução Francesa (ao menos nos preceitos constitucionais), há diferenças a  destacar, quase todas decorrentes da formação histórica e das práticas sociais que singularizavam a sociedade em que vivia. Uma leitura atenta de seu legado dramático evidencia que o eixo desse teatro não passa pela defesa da família, tal como descrita acima. Se o casamento permanece como fio condutor da comédia machadiana, o conflito dramático contorna a ideologia familiarista para se concentrar numa reflexão teórica em que personagens, com perfis e opiniões distintas, discutem em cena o casamento como instituição.
Já nas primeiras peças machadianas – todas escritas na década de 60 – as figuras femininas  chamam atenção por serem donas de seu discurso. Em Desencantos, a personagem Clara é viúva e mostra-se de saída bem independente, tendo ideias próprias,  sustentando-as com forte argumentação; mas, no segundo ato, quando aparece novamente casada, é visível que o tom de seu discurso está mais contido, tornando-se, por assim dizer insípido. Já a personagem Elisa de O Protocolo, peça  escrita  logo depois, assume o mesmo tom reivindicativo da Gabriela da peça de Emile Augier que fizera sucesso no Teatro Ginásio: como a personagem da comédia francesa, Elisa reclama direitos que lhe são negados no casamento, entre os quais, a liberdade de ir e vir na cidade.
Embora os  textos de Machado  dialoguem com o modelo cômico francês, sua independência já se manifesta na contextualização desse teatro – a ambientação de todas as comédias é brasileira, é carioca. Chama atenção, por exemplo, o fato de não ele conferir ao papel da mãe a importância que esta  tinha no modelo cômico estrangeiro. Se a situação da família na sociedade em que o modelo cômico fora criado era, sob muitos aspectos, bastante diversa da que se observava no Brasil, na  atuação das personagens Machado procurava dar conta disso.
Um exemplo eloquente de seu empenho em adequar à realidade que conhecia o modelo dramático estrangeiro  pode ser observado no aproveitamento que fez de um texto de Émile Augier. Em A juventude, peça encenada em 1870, o dramaturgo francês introduzira uma figura materna que era a própria contrafação da mãe empenhada na formação moral da família – é Madame Huguet quem lembra ao filho a necessidade de ser esperto para vencer na vida, incentivando-o a abandonar a moça que amava em troca de um casamento vantajoso.  Na apropriação do assunto, nosso escritor optou por  outro caminho. Trazendo para o contexto brasileiro a situação dramática básica – o incentivo ao abandono da pessoa amada, em nome da ascensão social e de vantagens econômicas, vindo justamente de quem deveria zelar pela formação moral do filho – Machado optou pela forma narrativa. Esta é a origem  do conto “Teoria do medalhão”,  publicado na Gazeta de Notícias com o subtítulo Diálogo, em 1881.   Além de migração para outra forma – ou gênero literário – uma diferença fundamental deve ser registrada no tratamento desse tema: no conto brasileiro, a figura materna foi substituída pelo pai que conversa com o filho no dia em que este completa 22 anos. Criando um discurso cheio de duplos sentidos, esta narrativa fixava uma situação bem mais complexa. O texto de Machado de Assis, como que subvertendo a condição de diálogo que o subtítulo anunciava, expôs em profundidade as mazelas da sociedade brasileira, através da explicitação da forma cínica de proceder para se alcançar sucesso. No jogo que estabeleceu entre o dito e o subentendido, ele denuncia, de forma irônica, o discurso vazio, mas impostado, posto a serviço da busca de notoriedade, mas também a ausência de pensamento crítico, a falta de originalidade daqueles que galgavam os postos de destaque na vida política. A orientação dada pelo pai de Janjão, sem nenhum escrúpulo de consciência do mesmo modo que a argumentação de madame Huguet para convencer seu filho a aceitar a noiva que não amava, contrariavam o princípio de família apregoado na comédia burguesa. Levar à cena dramática no Rio de Janeiro essa situação representava uma ousadia que talvez Machado não quis enfrentar. Por isso, evocando na forma os diálogos socráticos, esse diálogo acabou  reduzido a um monólogo e foi publicado como conto, o que não deixa de também comprovar que Machado percebia o caráter interdiscursivo que marca as diferentes formas simbólicas.
Nas raras ocasiões em que pôs em cena a figura materna – duas peças escritas já na virada do século XIX, destaque-se – estas se distinguiam por peculiaridades que reproduziam ao cotidiano brasileiro de então. A par da sabedoria baseada no senso comum, as figuras femininas do teatro machadiano são dotadas de alguma energia e poder de reflexão, de acordo com a função que detêm, mas não deixam de mostrar certa cumplicidade em relação a filhos, sobrinhos e enteados que com elas convivem, uma forma de companheirismo que, certamente, não estava no modelo cômico  francês.
Deixando de lado o que observava no cotidiano de sua terra, o escritor brasileiro não hesitou em substituir em suas comédias a mocinha romântica por mulheres ativas que se destacavam pela energia da ação, pela capacidade de análise e de reflexão, e, sobretudo, pelo domínio do próprio discurso, o que pode ser comprovado em Lição de Botânica, sua última peça, escrita em 1906. A inteligência e o controle da situação, revelados pela viúva Helena diante de um botânico estrangeiro pouco afeito a assuntos do coração, não deixava de anunciar mulheres de  outra época.
Nas entrelinhas de um discurso dramático que se apresentava como legitimador da ordem burguesa, podem ser ouvidas vozes expressivas dessa subjetividade em construção – uma persona que tentava sair da esfera privada, a que estivera secularmente relegada, para entrar na cena pública. Ao dar voz a algumas das personagens femininas de suas criações dramáticas, Machado de Assis antecipava, de certo modo, uma liberdade de expressão que seria conquistada pela mulher brasileira somente no século XX – na vida cotidiana e também na ficção, enquanto ele próprio adotava outro modelo para sua comédia. Embora as situações e as figuras remetessem à comicidade tradicional, suas comédias  tratavam de  assuntos sérios. Mesmo assim, esta dramaturgia é a prova de que através do riso era possível falar da sociedade  em que vivia e que, levando à cena situações envoltas no manto da seriedade, era possível criticar os costumes de seu tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. BERTHIER, Patrick. Le Théâtre au XIXè Siècle. Paris: Presses Universitaires de France,
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5. FEUILLET, Octave. Théâtre Complet. Paris: Calmann Lévy, 1892.2 v.6.
6. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Critica Teatral. Rio de Janeiro: Jackson, 1957.
7. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Teatro Completo. Rio Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, SNT 1982. (Clássicos do Teatro Brasileiro,
8 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Jackson, 1957.
9 PERROT, Michelle. Dramas e Conflitos Familiares In: ARIÈS, Philippe História da Vida Privada. 4. São Paulo: Companhia das Letras,1992.
10.SAINT VICTOR, P de. Le Théâtre Contemporain, Paris: Calmann-Lévy, 1879.
11. STEIN, Ingrid. Figuras Femininas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
12. TORNQUIST, Helena. As Novidades Velhas: O teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002. Série Acadêmica 18.

  RESUMO

A presente reflexão destaca textos dramáticos levados nos palcos de Paris em meados do século XIX. Marcada por um tom de seriedade e também conhecida como comédia burguesa, essa dramaturgia, de amplo sucesso nos palcos brasileiros da época, fala do momento histórico em que a mulher começava a conquistar espaço na sociedade. Entre os escritores brasileiros é Machado de Assis, em especial, quem no início de sua carreira, se destacou por adaptar o modelo dramático que chegava da França à nossa realidade. Praticando uma comicidade diferente dos padrões a que estavam habituadas as plateias de seu tempo, as comédias sérias provocavam o riso através do discurso das personagens, numa comprovação de   que a consciência da subjetividade se constrói pelo domínio da linguagem.

Palavras – chave – comédia francesa/dramaturgia oitocentista/teatro de Machado de Assis

* Professora de Literatura na UFSC. Pesquisadora da obra de Machado de Assis.