Encontro de andarilhos – Aurora Bernardini

Encontro de andarilhos

 

Aurora Bernardini*

Manoel de Barros

Manoel de Barros

Na pequena biblioteca que o sul-mato-grossense Sérgio Medeiros deixou-me como legado de suas andanças em São Paulo, encontro um precioso livrinho datilografado, ainda hoje inédito, que tem o título instigante de O Pai do Poema. Folheio e confirmo: é sobre Manoel de Barros. Mas não é um daqueles ensaios que se obsequiam em repetir os curiosos repertórios do poeta, de per si suficientes para interessar o leitor: o caso aqui é outro. O que interessa a Medeiros é descobrir a natureza da criação.

“Imaginemos um poema” – cito Sérgio –, “composto de versos, que de repente desabasse. Ora, diante do leitor restariam apenas palavras soltas, palavras que, após o impacto da detonação, voltariam ao repouso, acumulando-se umas sobre as outras ao acaso”. Isso ocorre, a propósito, no exemplo seguinte:

 

o pneu o pente

o chapéu a muleta

o relógio de pulso

a caneta o suspensório

o capote a bicicleta

o garfo a corda de enforcar

o livro maldito a máquina

o amuleto o bilboquê

o abridor de lata o escapulário

o anel o travesseiro

o sapo seco a bengala

o sabugo o botão

o menino tocador de urubu

o retrato da esposa na janela

e a tela

 

Sendo a enumeração caótica um dos procedimentos típicos de Manoel de Barros, pergunta-se Sérgio: “É lícito concluir, lendo essa enumeração, que temos diante de nós o caos amorfo e não exatamente um poema, uma vez que este, depois de desmoronar e submergir na confusão de palavras, perderia para sempre seu statusanterior, ou seja, o de obra?”

“O antro habitado pelo artista era o caos, a desordem originária,” – assim Sérgio encaminha a sua resposta – “e a tela, de autoria dele, para merecer a qualificação de obra, deveria estar submetida a um plano, a uma intenção modeladora da matéria amorfa, ou seja: a uma forma estética que não parecesse malograda. O caos na arte não existiria, a não ser, é claro, como estágio imediatamente anterior à feitura da obra. Ao megulhar no caos, o artista se constituiria a si mesmo (é seu batismo) como criador, porque encontraria aí a matéria disforme, que ainda não foi trabalhada ou reprocessada. Essa matéria são os signos aviltados que já não podem falar do sagrado e do mágico, e que por isso pedem para serem remodelados.”

Leiamos pois, agora com outros olhos, a enumeração acima.

As palavras aparecem na página – explica Sérgio –, e eu esquematizo a análise, acopladas duas a duas, em linhas sucessivas alinhadas à esquerda.

“As palavras debandam e são registradas no instante de seu voo. Portanto, se o poema se decompõe, enquanto composição tradicional em versos, no momento seguinte ele se repõe, surgindo como um jogo, como uma brincadeira de montar peças sobre peças (…) O reverso do verso é ainda o próprio verso.”

Isso se entende melhor – continua explicando Sérgio – ao se considerar o poema manoelino “A voz do meu pai” (Poesias, l956).

Nesse momento o crítico galga mais uma etapa de seu processo de interpretação: amarra o poema em questão à série conveniente, que assim ilustra a rotina de um cidadão exemplar:

 

Sou ligado por cordões e outros aparelhos secretos

a um

escritório complicado.

Portas mecânicas me subtraem e me devolvem súbito

ao negro asfalto.

Entro e saio do edifício que come meu rosto e o

cunha

na pedra.

Varo becos, bancos e buzinas.

 

Para que a rotina não transforme o funcionário em autômato, ele trata de mudar de vida: introduz em seu repertório um sapo seco, um sabugo, um botão, que, contrapostos às peças de seu repertório de burguês bem estabelecido – o chapéu, o relógio de pulso, o suspensório, o capote –, viram pelo avesso os símbolos de um status já superado.

“Nesse momento” – conclui Sérgio – “o artista assume a sua condição de indigente: todos os seus signos estão no lixo, são trastes ou fragmentos de um mundo que não existe mais, porque desmoronou.  A tela que se forma com esses objetos todos, tem um caráter mágico: o quadro não fala mais do chão como sendo algo distinto da própria substância, porém o incorpora, transformando-se ele também em um ´ terreno baldio´. A poesia de Manoel de Barros constitui um esforço consciente no sentido de recuperar, para o discurso verbal, esse gesto paradigmático, que devolveria à fala seu poder mágico (…)de fala inaugural. (…) Quanto maior a magia, mais concreto é o mundo invocado.”

Esse caminho de volta às origens que os poetas empreendem tem as dimensões e as ambiências mais variadas. Há os que cruzam vales e montanhas para se inspirarem, há os que fitam de longe as imóveis lonjuras da planície, há os que dão a volta de seu quarto e percorrem as fissuras da parede, há Manoel de Barros – e aqui cito Sérgio mais uma vez – “que atravessa um quintal sujo e deixa-se invadir pelas poças d´água e pelo lixo, onde as galinhas costumas ciscar. Esse caminho não leva adiante, pois termina na cerca divisória, feita com ripas podres. Do outro lado da cerca, há outros quintais, alguns têm dono, outros são da prefeitura, ou de ninguém. No quintal que nos interessa, um menino está agachado no chão e amassa o barro: ele vai construir um universo, para que seus brinquedos possam ter um lugar só deles para circular.”

O artista vagabundo imita o jogo do menino, não dispensa o apoio material, nesse seu mundo lúdico, de fronteiras maltraçadas ente a infância e a idade adulta, entre o sujeito e o objeto, entre a causa e o efeito.

Em sua definição de poesia (Arranjos para Assobio (1982), Manoel de Barros propõe um enigma

 

Poesia,  s. f.

(…)

Designa também a armação de objetos lúdicos

com emprego de palavras imagens cores sons

etc. – geralmente feitos por crianças pessoas

esquisitas loucos e bêbados

 

que Sérgio desdobra assim: o poeta busca a criança, mergulhando na loucura e no delírio, a fim de descobrir o caminho de volta às origens, que é a meta de sua poética.

“Por aqui não existem ruínas de civilizações para o homem passear dentro delas. Só bichos e águas e árvores para a gente ver” – diz Manoel ao amigo Guimarães Rosa, num trecho da entrevista publicada pela revista Bric a Brac.

Se a volta à origem (explícita em Poemas Concebidos sem Pecado – 1937 eem Compêndio para Uso dos Pássaros – l961) situa o menino em sua cidade de criação (Corumbá), em seguida ele é levado a Campo Grande e depois, já jovem, ao Rio de Janeiro. De secundarista católico a universitário comunista, de S. Francisco de Assis a Oswald de Andrade, do Panteísmo ao Animismo, da União Promíscua com a Natureza à Metafísica, os versos do poeta espelham seu itinerário ideológico: sonetos os primeiros, fragmentos os segundos, telas, arranjos, recordações… afinal, tantas formas que numerosas dissertações e teses já tentam hoje retrilhar, em seu percurso.

 

II

 

Num outro livrinho marcante, na época ainda datilografado e apenas esboçado, outro jovem crítico, Rudolf Dugánov, ensaiava seus primeiros passos à procura dos manuscritos que Velímir Khlébnikov (1885-1922) havia semeado por seu longo caminho de andarilho, pela Pérsia de antanho.  Conhece-se o fato de ele andar com uma fronha às costas, na qual ia enfiando seus manuscritos, e a maioria das vezes acontecia de ele esquecê-la em uma de suas paradas.

– Você está vendo essa parede, – dizia-me Dugánov quando o visitei primeiramente em 1973, apontando a estante cheia de fascículos que ocupava por inteiro uma parede de sua sala, em Moscou, – aí está a obra de minha vida. Pretendo reunir todos os trabalhos dispersos de Klébnikov e escrever a história de sua criação poética.

Na oportunidade deu-me um dos textos do livro que estava escrevendo. O capítulo, chamado, justamente, Arte poética, analisava um poema de quatro linhas de Khlébnikov que, quando exposto aos colegas do curso de Literatura Russa da USP, arrancou exclamações de maravilha. A longa busca de Dugánov – fiquei sabendo, – encerrou-se em Astrakhan, onde morreu em condições trágicas. Hoje lá foi erguido o “Museu Khlébnikov”, em dupla homenagem ao poeta e ao crítico [1]. Muitas vezes perguntei-me o que teria acontecido com o livro dele, mas, embora tivesse procurado pelas livrarias, ninguém soubera me informar. Certo dia de 1991 estava eu na Rue de Lille, em Paris, onde ainda há uma livraria de livros russos mantida por um senhor muito simpático e visitada por russófilos do mundo inteiro, quando meus olhos foram atraídos por uma capa dura, braca e preta, ilustrada com um perfil muito familiar. –Acabou de chegar – disse-me o dono que sabia de meu interesse por Khlébnikov desde a época de meu doutoramento, — dê uma olhada. Aproximo-me e custo a acreditar:   Velímir Khlébnikov, – Natureza da Criação – era o título, o e autor, R. V. Dugánov! [2]

Não apenas pela admiração por uma vida tão intensamente dedicada a um ideal, mas porque o livro é realmente notável, comecei a traduzi-lo (ainda faltam alguns capítulos), mas o que tinha e o que  tenho já me permite a  pequena síntese que vou fazer do que Dugánov escreveu  sobre a vida errante e a arte  de Khlébnikov, o poeta  dos  poetas e “o mestre de todos nós”, como dele disse uma vez, Maiakóvski.

Em suas notas autobiográficas de 1914, assim sentia Khlébnikov, poeticamente, suas raízes naturais e históricas: “Nasci em 28/10/1885, num acampamento mongol de nômades seguidores de Buda, localizado no fundo seco do Mar Cáspio em retirada. Em minhas veias corre sangue armênio e dos cossacos de Zaporoj, cujos traços raciais se manifestavam no fato de Prjeválski, Miklukha-Maklai e outros exploradores terem sido descendentes dos pássaros de Setch”.

Sua origem bandidesca e cossaca, no cruzamento do Oriente com o Ocidente era referência importante para o espírito rebelde, unificador e sintético de sua obra, para seu “destino de poeta”. Seu pai, de uma família conceituada de Astrakhan, era ornitólogo e inspetor florestal: daí a natureza e seu estudo terem sido a primeira ambiência do filho, que assim a descreve:

 

Cercavam-me a estepe, as flores e os camelos uivantes.

As barracas redondas

Mares de ovelhas, magros rostos iguais,

Udods decorando o espaço com o fogo da asa,

Orgulhosa tralha do céu deserto.

Assim passavam os dias e atrás deles, os anos.

(…)

 

A mãe, de uma ilustre família de Petersburgo, historiadora e estudiosa de música, pintura, literatura, deu aos cinco filhos excelente educação: Víctor (esse era o nome de batismo de Velímir) aprendeu a ler com quatro anos e sempre leu muito, russo e francês.

Devido ao trabalho do pai, as viagens eram contínuas e o filho, futuro caminhante incansável, cavaleiro e exímio nadador, muitas vezes acompanhava-o. Da estepe de Kalmítski para a Volínia, de lá para a província de Simbírskie, onde Víctor, em 1897 (ano de sua primeira produção poética, já assinada como Velímir, que chegou até nós), foi inscrito no terceiro ginasial, depois para Kazan onde, em l903, entrou para a Universidade.

Desde os 11 anos Khlébnikov já fazia anotações fenológicas e ornitológicas, acompanhando o pai, que lhe deu o hábito da observação científica. Ambos participaram, por duas vezes (1903 e 1909), de expedições científicas ao Daguestan. Em l905, com o irmão Aleksandr, realiza Velímir uma grande viagem aos Urais, um dos acontecimentos mais marcantes de sua juventude, que lhe inspirou toda uma série de poemas, apesar de seu primeiro escrito publicado (na revista moscovita Caça e Natureza de l911), ter sido de caráter científico: “Notas ornitológicas da enseada de Pávddinski”. Os pássaros serão, para ele também, um tema privilegiado.

Na Universidade, além dos estudos científicos tradicionais e dos escritos que nunca deixou de praticar, encantou-se com Spinoza, que leu em latim, estudou japonês e mediu forças com a pintura e a música.

Como diz Dugánov: “Já dessa enumeração de interesses, embora não completa, pode-se depreeender que K. ainda não tinha definido sua vocação, embora não houvesse dúvida quanto à sua grandeza”.

Não só esse jovem de 19 tinha uma profunda apreensão do espírito de seu tempo, antecipando-se a muitas das idéias das transformações universais que advieram e que ainda virão, como a preocupação para com o futuro do gênero humano fizeram com que ele criasse uma verdadeira poesia da ciência. Apenas dois exemplos: a preocupação pela transformação da biosfera natural em noosfera, ou, como dizia ele: “a esfera da razão criada pela energia da cultura humana”; e a introdução nos hábitos das pessoas de algo parecido com a organização das abelhas nas colmeias: “o coração, a carne, do impulso para a frente das comunidades dos homens não está no homem-príncipe, mas no tecido-príncipe – no nobre novelo do tecido humano encerrado na caixa de cal do crânio”.

Antes de sua transfiguração da ciência em poesia, quando o estudante K. era apenas um aluno dos mais dotados – lembra o professor Vassíliev, o decano de física e matemática da Universidade: “toda vez que aquele jovem alto, fechado e mudo aparecia nas reuniões estudantis, todos se levantavam involuntariamente, e, por incrível que pareça, até mesmo o professor”. Provavelmente pressentiam a desmedida abnegação do futuro poeta.

Sua vocação definiu-se em 1905, ano do fracasso da primeira revolução russa, e da derrota da Rússia na guerra contra o Japão. (Não se esqueça seu grande interesse pela História que o marcou, desde os primeiros anos, graças ao exemplo materno). Qual seria o destino da Rússia?   E qual seria a medida para a estatura e o destino da Rússia? A essa duas tarefas ele haveria de dedicar sua curta vida, (como se sabe, morreu aos 37 anos): o estudo da natureza da língua, fonte de tantas verdades,  e o estudo da natureza do tempo, no qual estariam incluídas as leis do destino histórico da Rússia . Da mesma forma que ele não se limitou, em seus estudos histórico-temporais, a estudar o passado mas se preocupou em predizer o futuro (“O avanço do Oriente sobre o Ocidente” está previsto e justificado entre os milhares de páginas e cálculos por ele realizados), assim também não se contentou em dominar a língua, mas criou uma nova língua.

Simbolismo, Cubismo, Futurismo, Flaubert, Baudelaire os clássicos da literatura russa e mundial, esses e inúmeros outros são marcos artísticos do percurso de K.—eles também já trilhados por estudiosos, ou ainda por “ rastrear” mas, como diz novamente Dugánov: “uma só das obras de criação de Khlébnikov, um só de seus manuscritos que  ainda hoje – quando já apreendemos a compreender o espírito do seu trabalho – continuam provocando em nós uma sensação de entontecimento, teria bastado para o surgimento de uma nova escola poética.

Vamos, então, a um deles. (À pequena quadra estudada por Dugánov).

Antes, porém, umas poucas ressalvas. A aparente simplicidade do poema que encerra, conforme se verá, uma complexidade extrema, não deve nos enganar: jamais K. praticou “a arte pela arte”. “A natureza, da qual a arte da palavra constitui as salas suntuosas, é a alma do povo”, escreve ele. Alma do povo ideal esta, mais do que idealizada. Alma do povo que conhece os universos de Púchkin, Dostoiévski, Tiútchev, – alma que percebe a magia de suas “Encantações” (Veja-se, por exemplo “Encantação pelo Riso”, traduzida  em Poesia Russa Moderna (3)), e a quem Klébnikov dedica agora esta

Encantação pelo Nome”.

 

(O título foi sugerido por Dugánov, que data o pequeno poema de 1907-1908).

 

О достоевскиймо бегушей тучи.

О пушкиноты млеющего полдня.

Ночь смотрится, как тютчев,

Замерное безмерным полня.[1][3]

 

 

A tradução literal pode, inicialmente, ser a seguinte:

 

Oh, dostoievskimó da corrente nuvem .

Oh, puchkinóty do meio-dia enlanguescedor.

A noite olha-se, como Tiútchev,

Enchendo o comensurável com o incomensurável.

 

Nos encantamentos folclóricos russos, a estrutura apresenta uma parte épica e uma parte lírica. Esta última não é manifesta neste poema, não nos dando portanto o apoio para estabelecer o nexo entre o encantamento e os nomes. Afinal, em que sentido são tomados aqui Dostoiévski, Púchkin e Tiútchev?

Verificamos, em primeiro lugar, que um dos métodos frequentes em K. e utilizado aqui, é o da criação de neologismos: enxerta-se a parte formal de um vocábulo à raiz de outro.

Como na pintura pontilhista, vale a sensação de hibridismo, vale a presença dos dois sentidos: duas cores puras colocadas lado a lado dão a sensação bruxuleante de uma terceira.

Dostoiévski + pismó (carta), (mas também estilo, modo literário, forma léxico-imagética), onde o conceito do “escrever” é substituído pelo nome do escritor;

Púchkin + krassóty (beleza), onde o conceito de “beleza” é substituído pelo nome do “criador da beleza” — Púchkin, o poeta por excelência.

Deixando a literalidade, por enquanto, passemos à interpretação. Estamos, aparentemente, diante de uma paisagem da literatura russa, impressionista, metafórica, tal como a sugerida pelas “manchas” de Baudelaire, assimiladas pelo simbolismo russo. O fundamento disso: a sombriedade de Dostoiévski, a solaridade de Púchkin e a estrelaridade de Tiútchev, já sentidas e descritas literariamente em termos semelhantes por outros poetas e críticos como Viatchesláv Ivánov, Blok ou Biéli. Mas, e do ponto de vista do mundo da natureza, como interpretar

o poema?

Dentro da tradição lírica da Naturphilosophie, os dois últimos versos do poema reportam-se diretamente a um poema do próprio Tiútchev, “Como o oceano abraça a esfera terrestre”:

 

… Прилив растет и быстро нас уносит

B неизмеримость темных волн.

Hебеcный свод, горящий славой звездой,

Tаинственно гуядит из глубины,

И мы плывем, пылающею бездной

Cо всех сторон окружены.

 

…A maré cresce e logo nos arrasta

Pela imensidão de suas ondas sombrias.

Do profundo secretamente espia

E nós nadamos pelo abismo em chamas

De todo lado envoltos.

 

Não há dúvida de que Tiútchev foi para K. um momento fundamental de inspiração. (Veja-se a rima tutch-tiútchev já utilizada por K.para a descrição indireta da lua – lua-poeta, como dizia Tiútchev). Então, não poderia tratar-se, no poema, de uma paisagem antropomórfica,” paisagem-alma”, no sentido de Pasternak ou de Verlaine, tendendo para a música, ou “paisagem-rosto”, tendendo para as artes plásticas, muito presente em Maiakóvski e freqüente em K.?  Veja-se o que se entende por paisagem-rosto, por exemplo no poema de K. “Na terra da bela morte Machuké”:

 

И в небесах зажглисъ, как очи,

Болъшие серые глаза.

И до сих пор живут средъ облаков,

И до сих пор им молятся олени,

Писателю России с туманными глазами,

Когда полет орла напишет над утесом

Болъшие медленные брови.

E no céus se acenderam qual vistas

Grandes olhos cinzentos.

E até agora vivem entre as nuvens,

E até agora os imploram as corças

Ao escritor da Rússia, com olhos nevoados,

Quando o vôo da águia desenha sobre a rocha

Grandes sobrancelhas demoradas.

 

Não se trata precisamente disso, na pequena quadra. Dostoiévski, Púchkin e Tiútchev, tais como aparecem ali, são apenas nomes, e a paisagem que contemplamos é vista através do prisma desses nomes.

Em primeiro lugar, não se vê no poema um quadro único, mas três, que mudam sucessivamente, constituindo as três situações possíveis do mundo visível, conforme a posição da terra em relação so sol.  Na primeira, a terra está imersa na sombra das nuvens que encobrem o sol; na segunda o sol está no zenith e a luz é total; na terceira, o sol está no nadir e a terra está imersa em sua própria sombra, revelando o céu estrelado.

Em segundo lugar, a sequência desses quadros não é linear, mas hierárquica, como três níveis de luminescência, três graus de ascensão.

Finalmente, esses quadros cambiantes se integram no único quadro do espaço visível do mundo, tomado em estado puro, fora do tempo. “Paisagem” significa aqui o inteiro cosmo, passível de contemplação espontânea, através o prisma dos “nomes próprios da literatura russa”. Como compreendê-la? Como sendo o cosmo em seu aspecto estético, propõe Dugánov.

Vladímir Solovióv entendia que “o surgimento do belo (os fenômenos luminosos) no mundo corresponde à ordem geral cosmogônica: o aspecto solar, o lunar e o estelar”. No sistema de Khlébnikov os três níveis de luminescência geram respectivamente três mundos – o terrestre, o solar e o estelar e, consequentemente, três esferas estéticas às quais correspondem os três nomes. A metamorfose dos nomes Dostoievskimó Puchkinóty e Tiútchev é igualmente dada em três fases, três graus de ascensão do nome: na primeira sente-se agudamente o caráter compósito, na segunda a ênfase é deslocada para a primeira parte e, na terceira, há um nome puro e simples.

É no sentido metafórico que devem ser compreendidos estes nomes. Na estética mitopoética, o nome do artista é o símbolo de sua obra. O mundo de Dostoiévski é assimilado ao mundo terrestre, o mundo de Púchkin ao do sol e o de Tiútchev, ao das estrelas. O vocabulário de escritores russos utilizado por K. tem a mesma função do vocabulário mitológico da poesia clássica: Dostoiévski é o deus do mundo terrestre, Púchkin do mundo solar e Tiútchev do mundo estelar. Só que atrás disso existe mais um momento, ainda mais importante. O nome do artista-escritor é o nome de um mundo construído de palavras, é o nome dos nomes: estamos portanto diante de uma paisagem onomatomórfica.  Mas isso ainda não é tudo. Trata-se de uma paisagem onomatomórfica em forma de e n c a n t a m e n t o.  Agora sim, não há contradição. Pelo contrário, o encantamento é a expressão adequada a essa compreensão do nome. O ato mágico, tal qual nós o compreendemos – poeticamente, – consiste justamente na atribuição do nome, porque os antigos baseavam seu poder sobre a natureza no conhecimento dos nomes verdadeiros. Pois é justamente para essas camadas pagãs, vivas na consciência poética do presente, que se orienta K. Trata-se da mais atual compreensão da essência da poesia enquanto arte da palavra, segundo a estética mitopoética. Para o poeta, compreender o mundo significa encantar a palavra, erguer-se até o nome. Como escreveu K., para o poeta “tudo é tão-somente um passo para o nome, mesmo a abóbada noturna”. Mas a unidade e a completude do mundo compreendido e expresso no poema é o mito. Ao invocar os nomes dos deuses da palavra, o poeta entra no âmbito da compreensão mitopoética mútua dos homens, o da natureza e o da cultura. É na palavra mitopoética, é na encantação pelo nome mítico-poética, que se concentra o ato dessa compreensão recíproca.

Nas três primeiras linhas da quadra de que temos falado é que se estabelece uma rede de correspondências entre o mundo da natureza e o mundo da palavra. Cabe falar agora do princípio unificador no qual se apoiam essas correspondências.

No que consiste o princípio da harmonia, ou o princípio da concordância do discordante? Como é preciso entender o verso final: “Enchendo o comensúravel pelo incomensurável”?

O comensurável e o incomensurável pressupõem, evidentemente, o mensurável. Assim sendo, o mundo terrestre é mensurável, o mundo solar é comensurável (passível de ser mensurado por outra medida) e o mundo estelar é incomensurável. O cosmo está diante de nós no aspecto de sua divisão em conceitos, expresso como um nome, mas expresso em termos de sua totalidade ele é apenas um número, uma cifra. A compreensão geral do poema é assim, possível. Só que o poema é um organismo vivo, não uma construção abstrata: é um pequeno mundo da palavra que tem a ver, num certo sentido, com o mundo da natureza. Como terá sido construído o microcosmo dessa quadra?

Analisando os dois primeiros versos, verificamos serem ambos constituídos por 11 pés (dois pentâmetros jâmbicos em cada verso), com o seguinte esquema de tonicidade:

 

Oh, dostoievskimó begúchtchei tútchi. (О достоевскиймо бегушей тучи.)

Oh, puchkinoty  mliéiuchtchevo póldnia. (О пушкиноты млеющего полдня.)

 

I  _ _ _ _ _´_/_ ´_ _/ ´_ _

II _ _ _ _ _/´_ _ _ _/ ´_  _

 

O terceiro verso, como dois trímetros (6 pés jâmbicos) e o quarto como dois tetrâmetros (8 pés jâmbicos), com a respectiva tonicidade:

 

Nótch smótritsa, kak Tiútchev, (Ночь смотрится, как тютчев,)

Zamiérnoe bezmiérnym pólnia. (Замерное безмерным полня)

 

III ´_/´_ _ _/_ ´_ _

IV _´_ _ _/_ ´_ _/´_ _

 

Nessa quadra, vista como um todo, ligada pela rima ABAB e pelo acento na 6a. sílaba de todos os versos, (o verso russo é sílabo-tônico), é possível notar a contraposição dos versos longos (ambos com acentos na décima sílaba) e dos versos curtos, (ambos com acento na segunda sílaba).

Vale a pena notar também a mobilidade dos acentos na sexta sílaba (no I verso, é o primeiro acento; no II verso, é o segundo acento; no III verso, é o terceiro acento; no IV verso, é o segundo acento). Tomando-se como eixo de simetria a sexta sílaba, verifica-se que o II e o IV versos ficam no centro; o I é deslocado para a direita, o III para a esquerda, configurando uma construção em degraus.

O vocalismo da quadra revela propriedades surpreendentes (o consonantismo é pouco relevante). A série e/o/u constitui 70% da quantidade de vogais do poema:  e   é acentuado três vezes, u três vezes e o seis vezes.

Assim se distribuem essas vogais pelos versos (repare-se a especularidade de I e III e o paralelismo de III e IV):

 

o u u

o e o

o o u

e e o

 

Ainda mais surpreendente é observar a totalidade orgânica da estrutura vocálica do poema e seu desenrolar-se dinâmico (e ocupa os três pontos da linha superior, o os seis pontos da linha central e u os três pontos da linha inferior do esquema):

Este esquema do movimento das vogais representa quase uma simetria inversa plena, onde o centro é a primeira vogal do terceiro verso, ou seja, o da palavra nótch, no qual cai o único acento fora do esquema métrico do poema!

Nessa palavra monossilábica se concentra toda a energia rítmica e fonética do poema, o que é plenamente compreensível pois nótch (noite)é justamente seu centro imagético.

Ao mesmo tempo, o princípio tricotômico do poema é anunciado pelo I verso, em todos os níveis da estrutura: três acentos, trivocalismo, trivocabular, o que prenuncia os três nomes do encantamento.

A palavra mitopoética baseia-se na identidade artística entre o microcosmo do poema, o cosmo da poesia e o macrocosmo da natureza. Justamente por isso deve-se ir além dos três nomes do encantamento. O que dá continuidade à serie seria, por assim dizer, o nome dos nomes dos nomes. Compreende-se que este nome de “terceira ordem” só poderia sugerir a saída para além dos limites desse mundo.

O acerto dessa hipótese confirma-se pela história do texto da “Encantação pelo nome”. Dela, com efeito, chegaram até nós quatro variantes do último verso. A primeira é a que conhecemos; a segunda, contém uma palavra com uma variação de para í, uma vez que K. usou para o ie da palavra bezmíernym a letra russa iat (o antigo ie usado no eslavo-eclesiástico), colocando em cima dela um ponto.  Esse fato permitiu que se lesse a palavra como se em lugar de ie estivesse a antiga letra i, ficando a palavra, portanto, bezmírnym. Na terceira variante temos zamírnym em lugar de bezmírnym. Focalizando-se o último verso nas três primeiras variantes, temos:

 

I : Zamiérnoe bezmiérnym pólnia ( Enchendo o comensurável com o incomensurável)

 

II : Zamiérnoe bezmírnym pólnia ( Enchendo o comensurável com o sem-mundo)

 

III : Bezmiérnoie zamírnym pólnia ( Enchendo o incomensurável com o além-mundo)

 

Com efeito, se o mundo terrestre (Dostoiévski) é mensurável, o mundo solar (Púchkin) é comensurável e o mundo estelar (Tiútchev) é incomensurável, então o próximo passo só pode ser a saída para o além-mundo (o mundo do além). A mudança da raiz –mer para -mir indica justamente a passagem para essa outra dimensão. Se Dostoiévski, Púchkin e Tiútchev são três estágios de luminescência, o quarto estágio pode também ser a passagem para além do mundo visível, para a sua parte interior, invisível, imaginada. Ou a mudança do nome para o número.

A quarta e última variante apresenta uma curiosa plurivocidade. Curiosamente, em russo palavra mir pode significar, ao mesmo tempo “mundo” ou “paz”. Literalmente, bezmirnoie é o adjetivo neutro que significa “sem paz”, mas que, poeticamente, mantém, latente, o sentido de “sem-mundo”.

Se mir indicava antes “mundo”, “esfera terrestre” e bezmir “sem mundo”, mir surge agora com o sentido de “paz”, contrapondo-se a “guerra”, “sem paz”, “caos” ,“ruina,”  etc. (bezmir):

 

IV: Zamírnoie bezmírnym pólnia (Enchendo o além-mundo de guerra)

Disso segue a continuação da série:  mensurável (miérnoie); comensurável (zamiérnoie); incomensurável (bezmiérnoie); do além-mundo (zamírnoie); e sem-paz/guerra (bezmírnoie), onde o novo degrau não indica nenhuma etapa de luminescência, mas sim sua ausência, o obscurecimento, a ruina, o caos, que também, na visão de K. entra a compor a ordem universal.

Cada variante do poema não muda as precedentes e o poema respira, enchendo as encantações de conteúdos novos, a cada vez. A obra é finita, todas as vezes, mas é também inacabada, passível de modificações. O organismo artístico cresce, mas em todas as variantes continua ele mesmo, em sua plenitude e unicidade.

A história do texto da encantação não acaba aqui. Num tour-de-force extremado, Dugánov ainda nos revela a passagem da “encantação pelo nome” para a “linguagem estelar”. Mas isso fica para um próximo encontro.

Se o artista  Manoel de Barros mergulha no caos  e mistura e remodela os signos aviltados, encanta as palavras para que nos possam falar de novo do sagrado e do mágico, numa tela  que também é barro, que também é chão, que também é  volta às origens, o artista Velímir Khlébnikov, nesse mesmo esforço  de unir  as pontas soltas da natureza e da cultura, cria rigorosos desenhos, capazes de criar uma nova ordem no universo das palavras  reinventadas, onde o obscurecimento, o caos, a ruina e mesmo a morte entram na mesma harmonia cósmica universal.

 

[2][1] Devo esta informação ao Professor Boris Shnaiderman.

 

[3][2] As citações e os poemas do estudo sobre Vélimir Khlébnikov foram retirados do livro de R. V. Dugánov  Velímir Khlébnikov  – Priroda Tvórtchestva  (Velímir Khlébnikov  – A Natureza da criação), Ed. O Escritor Soviético, Moscou, 1990. Para os poemas vali-me também da obra em 4 tomos V.V. Khlébnikov Sobránie Sotchiniénii (Reunião das Obras de V.V. Khlébnikov), Wilhelm Fink Verlag, München, 1971.

 

[4][3]A transliteração do poema seria a seguinte: O dostoievskimó begúchtchei tútchi. / O puchkinoty  mliéiuchtchevo póldnia. / Notch smótritsa, kak Tiútchev, / Zamiérnoe bezmiérnym pólnia.

 

* Professora da Universidade de São Paulo (USP).