A represetação dos poloneses no “Maus” de Art Spiegelman – Aleksandra Pluta

A represetação dos poloneses no “Maus” de Art Spiegelman

 

Aleksandra Pluta[1]

 

  1. INTRODUÇÃO: A ARTE DEPOIS DE AUSCHWITZ.

 

 Escrever significa registrar a existência de uma pessoa.

Saul Friedländer

 

Na cultura de hoje até a tragédia pode ser estetizada. Basta observar as fotografias apresentadas no concurso da Fundação World Press Photo Foundation nas quais as mais atuais tragédias estão retratadas seguindo sofisticados cânones estéticos de beleza. Os corpos mortos, pessoas sentindo dor, crianças morrendo de fome estão muitas vezes apresentados de uma forma que emana beleza, o que deveria despertar no espectador um certo desconforto. Como a tragédia pode ser mostrada de uma forma tão sublime? Poderíamos nos perguntar: deveria nos preocupar o fato de perceber a beleza nas obras que representam o genocídio ou o Holocausto? Até a Shoah é representada na nossa cultura segundo certas convenções. Conhecemos alguns filmes, como “A Lista de Schindler ” (1993) de Steven Spielberg ou “O Pianista” (2002) de Roman Polański, nos quais os diretores misturam estilos e gêneros cinematográficos entre suspense, terror ou horror com aquilo que é belo ou até sublime (do latim sublimis, “que se eleva” ou “que se sustenta no ar”).

Recentemente uma artista polonesa, Elżbieta Janicka, comprou numa loja de souvenir do campo de concentração de Oświęcim (Auschwitz) uma série de cartões postais. O curioso é que a paisagem apresentada neles é muito estetizada, sublinhando alguns fenômenos da natureza, como por exemplo o pôr do sol que constitui o fundo para a imagem de uma cerca de arame farpado do campo de concentração, ou a neve que cobre a cerca. O resultado estético destes cartões postais oscilam entre o macabro e o belo, entre o drástico e o sublime, entre uma atmosfera lúgubre e apavorante e aquilo que pode fascinar, seduzir.

Fonte: http://strasznasztuka.blox.pl/t/5376/zaglada/page/3.html

Seria oportuno voltar à pergunta fundamental de Theodor Adorno: depois de Auschwitz a poesia continua possível? Depois de Auschwitz qualquer forma de arte continua possível?

Sabemos que depois do Holocausto a imagem de trilhos ferroviários não vai significar só trilhos ferroviários. Existem imagens que automaticamente vão ser associadas à historia de uma das maiores atrocidades do século XX. Adorno, ao dizer que escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro, mencionava uma dívida diante da história e a necessidade de procurar tais formas poéticas e metafóricas, nas quais o contato do homem com o sofrimento das vítimas do Holocausto não ficaria neutralizado pela estetização.

Há artistas visuais que brincam com o tema de Holocausto, tais como David Levinthal (Estados Unidos), Ram Katzir (Israel/Holanda), Roee Rosen (Israel), ou poloneses: Zbigniew Libera e Piotr Uklański. Este tipo de arte é chamado por Ernst van Alphen[2] de “brincar de Holocausto”. Ela utiliza a cultura popular e os seus produtos, utiliza a estética de kitsch, o genocídio cometido pelos nazistas é submetido ao processo de estetização, como no caso de Levinthal (no “War Games”, série “Mein Kampf”)[3], o que pode ser observado nas seguintes ilustrações:

Fonte: www.davidlevinthal.blogspot.com

Colocar de um lado a tragédia e de outro um universo infantil, do mundo lúdico, de brinquedos, deveria causar um certo estranhamento. A mesma sensação podemos provar na frente de brinquedos da famosa marca dinamarquesa LEGO que representam um campo de concentração com as figuras de prisioneiros e de soldados da SS. Esta obra, por sua vez, foi realizada pelo artista polonês, Zbigniew Libera.

 

Fonte: www.culture.pl/pl/dzielo/zbigniew-libera-lego-oboz-koncentracyjny

O artista criou um kit de sete caixas de brinquedos LEGO, dos elementos das quais podem ser construídos um crematório ou um depósito onde estão guardadas as roupas dos prisioneiros recém chegados no campo. Em outras caixas LEGO podem ser encontrados elementos para a construção de salas onde podem ser executados experimentos de medicina aos quais muitos prisioneiros foram submetidos.

 

  1. O HOLOCAUSTO NA LITERATURA

Além dos poucos artistas visuais que foram apenas citados, existem muitos artistas que fazem os trabalhos a partir do tema do Holocausto. Na literatura o tema é muito presente, seja em relatos, testemunhos em primeira pessoa, daqueles que conseguiram sobreviver e sentiam-se obrigados a relatar aquilo que tinham vivenciado, seja em relatos de terceiras pessoas, historiadores ou filhos, netos ou parentes dos sobreviventes. A necessidade de relatar aquilo que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial tornou-se uma espécie de missão que muitas pessoas sentem necessidade de cumprir para não deixar esquecer o passado e para não deixar acontecer aquilo que os membros das SS desejavam que acontecesse:

“Muitos sobreviventes […] recordam que os membros das SS se divertiam ao avisar cinicamente aos prisioneiros: “Seja como for que esta guerra acabe, a guerra contra vós fomos nós a vencê-la; nenhum de vós ficará para dar testemunho, mas mesmo se algum escapar, o mundo não acreditará nele. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque nós vamos destruir as provas juntamente convosco. E mesmo que alguma prova ficasse, e algum de vós sobrevivesses, as pessoas diriam que os fatos que vós contais são demasiado monstruosos para se poder acreditar neles; diriam que são exageros da propaganda aliada, e acreditariam em nós, que iremos negar tudo, e não em vós. A história dos campos de concentração, seremos nós a ditá-la” (LEVI, 2008, p. 7-8).

Primo Levi (1919-1987), o autor dessas palavras, ao lado do recém falecido escritor húngaro, Imre Kertész (1929-2016), Elie Wiesel (1928-2016; morreu no dia quando o presente trabalho estava sendo desenvolvido), Nobel da Paz em 1986, autor de mais de 50 livros, Odette Elina (1910-1991), autora de “Sans Fleurs Ni Couronnes”, Ida Fink (1921-2011) e vários autores poloneses, entre os quais vale a pena ressaltar sobretudo Hanna Krall (1935), Tadeusz Borowski (1922-1951), Zofia Nałkowska (1884-1954), Andrzej Szczypiorski (1929-2000), são autores que exploraram o tema do Holocausto. Mas vale a pena lembrar que muitos sobreviventes que escreviam sobre as próprias experiências na época da Segunda Guerra Mundial estão nos deixando. Há onze anos, cerca de mil e quinhentos sobreviventes estavam presentes no 60º aniversário da libertação do campo de concentração Auschwitz. Dez anos mais tarde, em 2015, foram apenas trezentos e o número está continuamente diminuindo. De acordo com o artigo “A voz inesgotável dos sobreviventes de Auschwitz” escrito pelo jornalista Guillermo Altares e publicado no jornal “El País”[4], os historiadores calculam que, de 1,3 milhão de pessoas deportadas para lá, em torno de 200.000 sobreviveram à passagem por esse campo de extermínio.  Temos de ter consciência de que ao longo dos próximos anos vão morrer os últimos sobreviventes e não vamos ter mais testemunhas oculares daquela atrocidade que foi o Holocausto. Por esta razão é tão importante realizar a tarefa de contar para as próximas gerações o acontecido, resgatar a memória do Holocausto e defender outros grupos vítimas das perseguições.

Dadas as circunstâncias históricas, nos últimos tempos foram publicados muitos livros que são relatos da geração posterior àquela que sobreviveu ao Holocausto. No livro do polonês Mikołaj Grynberg, “Oskarżam Auschwitz. Opowieści rodzinne”[5] (“Acuso Auschwitz. Relatos de familia” – não existe tradução para o português), publicado em 2014, o autor entrevista filhos dos sobreviventes que moram em Israel, nos Estados Unidos, na França e na Polônia. O elemento que une todos os relatos é o sentimento de culpa (“porque os meus pais sobreviveram e tantos outros não?”), a falta de compreensão por parte dos outros, o sentimento do vazio, o silêncio em que cresceram na época da infância e adolescência, falta de informações sobre os antepassados. Muitos deles descobriram que eram judeus só na idade adulta, não podiam entender de onde vem a tristeza, a angustia e o medo com os quais cresceram educados pelos pais que tinham se salvado por milagre de uma grande máquina de matar. As angustias da segunda geração sempre eram ignoradas, porque eles mesmos não experimentaram o extermínio. Mas o fato deles serem criados e educados pelos sobreviventes influenciou muito na psicologia dessas pessoas. O peso que está sendo carregado nas costas da segunda geração é muitas vezes banalizado e ignorado, mesmo que não devesse, pois não é possível livrar-se das memórias (ou “post-memórias”) do Holocausto. “Post-memory” é um conceito utilizado por Marianne Hirsch, professora de literatura comparada no Institute of Research on Women and Gender da Columbia University, que o define como o sofrimento que a “geração após” carrega como o trauma:

“Postmemory describes the relationship that the “generation after” bears to the personal, collective, and cultural trauma of those who came before-to experiences they “remember” only by means of the stories, images, and behaviors among which they grew up. But these experiences were transmitted to them so deeply and affectively as to seem to constitute memories in their own right”[6].

Como observa Fabiano Andrade Curi na sua dissertação de mestrado “Maus, de Art Spiegelman: uma outra história da Shoah”, o que vem acontecendo nos últimos tempos é uma “ampliação do espectro da Shoah a partir da transmissão de relatos dos já quase extintos sobreviventes de campos e de perseguições para as novas gerações que não haviam nascido quando o nazismo avançou na Europa. E essas gerações vêm interpretando a Shoah por filtros históricos, psicológicos, antropológicos, políticos, filosóficos e artísticos”[7]. Um dos representantes da segunda geração dos sobreviventes é Art Spiegelman, autor da história em quadrinhos “Maus: a história de um sobrevivente”. Não há dúvida de que Spiegelman, escrevendo e desenhando o seu livro tentava trabalhar este trauma com o forte desejo de pesquisar as próprias raízes, as raízes que lhe foram negadas.

 

  1. “MAUS: A HISTÓRIA DE UM SOBREVIVENTE”

 

Eu me recuso a me tornar o Elie Wiesel dos quadrinhos.

Art Spiegelman

“Maus: a história de um sobrevivente”, de Art Spiegelman, é uma história em quadrinhos baseada em fatos reais, que recria os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. A história é narrada pelo filho do sobrevivente, Artie. O pai dele, Vladek, é judeu polonês que vivenciou a guerra e as suas atrocidades às quais conseguiu sobreviver. A história tem como personagens principais: os judeus, caracterizados como ratos, os alemães nazistas, caracterizados como gatos, e os poloneses não-judeus, caracterizados como porcos, entre outras nacionalidades (franceses, americanos etc.)

A narrativa de “Maus” faz uso de recursos gráficos comumente ligados a interesses adolescentes, ao mesmo tempo em que trata de um assunto tão traumático e delicado, podendo gerar um certo estranhamento ao leitor. Várias vezes foi questionado o fato se uma linguagem normalmente dedicada ao público infantil, infanto-juvenil e muitas vezes de teor humorístico, poderia ser usada para tratar de assuntos tão extremos como o Holocausto. Mesmo assim, a obra foi elogiada pela imprensa e aceita pelo mundo acadêmico.

O tema central do livro são as peripécias do Vladek durante a Segunda Guerra Mundial, mas encontraremos nele também temas paralelos que não deveriam ser subestimados. É interessante observar, ao lado da história principal, a história do filho de Vladek tentando obsessivamente descobrir a história do pai, conversando com ele, gravando os depoimentos dele, fazendo perguntas que lhe possam ajudar na construção do próprio livro. O autor mistura o passado com o presente, faz a transição entre dois tempos sem explicitar grandes rupturas, acrescentando detalhes que mostram a relação próxima da história do pai com a vida de Artie[8]. Além disso esta história demostra o processo de escrita, o processo de criação e a pesquisa que levaram ao surgimento do livro em si. A literatura que fala dela mesma é uma metaliteratura e a linguagem que fala dela mesma é uma metalinguagem. Quando Artie faz anotações ao longo do texto para esclarecer o próprio processo criativo, com suas dificuldades, lacunas e travas psicológicas, temos um claro exemplo de metaliteratura e através dela podemos perceber que a linha que separa a ficção da realidade torna-se muito sutil, pois o leitor é induzido a identificar o autor Art Spiegelman com o narrador. Isso fica evidente também quando o autor passa por um bloqueio criativo e vai ao consultório de seu psicanalista, Pavel, também sobrevivente de Auschwitz. Esta projeção da subjetividade sobre o relato testemunhal e suas implicações torna o livro mais rico para diversas interpretações e leituras – observam  Rosani Ketzer Umbach e Carla Carine Gerhardt, da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, no artigo “Uma leitura de Maus: a história de um sobrevivente”[9]. Um exemplo de transição entre o passado e o presente pode ser observado num trecho de livro onde Vladek convida Artie para ir com ele até o banco e, no caminho, retoma os seus relatos. “Spiegelman coloca seu personagem junto ao do pai em uma sequência de quadros dos dois caminhando em que o fundo com as residências do presente em Nova York vai sendo substituído por um cenário de cercas de um gueto polonês durante a guerra. Esse recurso gráfico, que poderia significar apenas a transição do tempo presente para o passado, carrega também o significado de que Auschwitz não está circunscrito à memória do pai, mas envolve a história da família”[10] – observa Andrade Curi. Andreas Huyssen, professor de literatura comparada na Columbia University, no seu artigo “Of Mice and Mimesis: Reading Spiegelman with Adorno” agrega: “Spiegelman desenha um livro de quadrinhos como um gênero de cultura de massa, mas o transforma em uma narrativa saturada de técnicas modernistas de autorreflexão, autoironias, rupturas temporais na narrativa e sequências de montagens de imagens altamente complexas”[11]. O que na nossa opinião diferencia a obra de Spiegelman das obras dos artistas visuais citados no primeiro capítulo do presente trabalho, é o fato de representar uma grande batalha interior realizada pelo autor e um grande esforço para descobrir o seu passado. Usando linguagem de cultura de massa, no livro de Spiegelman é possível encontrar um compromisso com os antepassados e uma seriedade ao olhar a história.

 

  1. “MAUS” E A SUA RECEPÇÃO NA POLÔNIA

 

A primeira versão do livro foi publicada em 1980, mas o livro foi concluído só em 1991. Um ano após o lançamento, em 1992, o autor ganhou “Prêmio Especial Pulitzer” e uma série de outros prêmios importantes. O livro ganhou também edições em vários países do mundo e na Alemanha está na lista dos livros obrigatórios nas escolas. Para a edição em polonês o público na Polônia teve que aguardar dez anos, pois o livro foi publicado lá só em 2001. E, como podia se esperar, alguns elementos incomodaram de uma maneira forte o público polonês.

Primeiro deles é o fato do autor ter apresentado algumas cenas em que os poloneses atuam como colaboradores dos alemães, inimigos dos judeus, responsáveis pelas mortes deles enquanto exercitavam o papel de kapo nos campos de extermínio, pessoas corruptas e amorais, que aproveitavam-se das riquezas dos judeus sem se dispor a ajudá-los. A lista de características negativas atribuídas ao povo polonês é bastante longa, e não é difícil encontrá-las ao longo do livro. A imagem do povo polonês como um povo antissemita é uma imagem um pouco distorcida e, infelizmente, bastante difundida.

 

Fonte: http://www.polishcultureacpc.org/books/Maus.html

 

Contudo vale ressaltar que durante a Segunda Guerra Mundial na Polônia ocupada todas as famílias que escondessem judeus nas suas casas eram executadas, o que era a punição mais severa entre todos os países ocupados. Os nazistas matavam não só judeus mas também todos aqueles que lhes ajudavam. O risco de ajudar era muito grande mas mesmo sendo assim são conhecidos milhares de casos dos poloneses que sacrificaram as vidas para salvar os judeus. Não é a toa que o maior número de poloneses aos quais foi concedido o prêmio “Justos entre as nações” (prêmio instituído pelo Yad Vashemomo reconhecimento a todos os não judeus que durante a Segunda Guerra Mundial salvaram vidas de judeus perseguidos pelo regime nazi) é o maior número entre todas outras nacionalidades (mais de 6.600 pessoas, ou seja 25% de todos que receberam o prêmio). Não estamos tentando aqui justificar os casos de antissemitismo que também, infelizmente, tiveram lugar na Polônia antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial (como por exemplo o massacre de Jedwabne em 1941 ou o massacre de Kielce de 1946) mas somente explicar porque o livro teve uma recepção negativa entre os poloneses. Aqueles que, ajudando os judeus, perderam vidas ou familiares, não foram representados suficientemente no livro de Spiegelman, mas temos que observar que algumas cenas que mostram o lado positivo de poloneses também estão presentes no livro.

Quem melhor poderia relatar a situação que um historiador e escritor judeu que ficou durante alguns anos no gueto de Varsóvia:

“Existe um preconceito em nossa opinião que o antissemitismo tinha aumentado consideravelmente durante a guerra, que os poloneses em sua maioria estão satisfeitos com a desgraça que aconteceu com os judeus nas cidades e vilas da Polônia. Mas o leitor atento dos nossos materiais vai encontrar centenas de documentos que atestam algo totalmente oposto. Em relatórios de muitas cidades, o leitor vai ler sobre como calorosamente foram recebidos os refugiados judeus pelos poloneses e vai descobrir sobre centenas de casos, quando os camponeses [poloneses] durante os longos meses escondiam e alimentavam os refugiados judeus de cidades vizinhas”

– escreveu em “Anotações do gueto”[12] (“Notatki z getta”) Emanuel Ringelblum[13] (1900-1944), no gueto de Varsóvia em 1943. Ringelblum, sua esposa e filho conseguiram escapar do gueto, mas um ano mais tarde seu refúgio foi descoberto pelos nazistas e tanto Ringelblum e sua família como a família polonesa que lhes dava abrigo foram executados.

Segundo elemento que podia causar polêmica logo após a publicação do livro na Polônia foi o elemento de caráter gráfico, a forma como os poloneses foram retratados. A história, concebida como uma fábula em que as personagens são representadas de forma antropomórfica, apresenta, ao lado dos judeus, retratados como ratos, e alemães, retratados como gatos, poloneses em papel de porcos. O uso de animais permitiu deixar clara a referência aos quadrinhos norte-americanos que tradicionalmente fazem a representação antropomórfica de seus personagens. O antropomorfismo presente no livro analisado neste trabalho refere-se a dar característica humanas a animais, e neste aspecto “Maus” pode ser lido como um conto moral, onde os membros de diferentes nacionalidades são representados por diferentes animais.

Na literatura crítica que se ocupa da questão de representação no livro “Maus” encontraremos muitas explicações sobre o fato de ter atribuído aos poloneses o papel de porcos. Uma das explicações que deu o próprio autor[14] diz que os porcos estão fora da cadeia alimentar metafórica que situa os ratos logo atrás dos gatos, constituindo assim o alimento para os mais fortes[15]. Nessa relação que define os ratos como vítimas dos gatos que vão devorá-los, os poloneses podem estar tranquilos – nem vão ser vítimas de gatos (desde quando os gatos comem porcos?), nem os ratos vão ser comidos por eles. Os porcos simplesmente estão fora dessa relação. Gatos comem ratos – mas não porcos. Do ponto de vista de ratos, os porcos são relativamente inofensivos. Pensando bem, este papel é desconfortável para os poloneses por dois motivos: primeiro – os ratos estão sendo vítimas e os porcos não. Seria ridículo competir agora quem foi mais vítima e quem foi menos vítima; criar hierarquias de vítimas mais vitimizadas e menos vitimizadas também não tem menor sentido. Sabemos que o Holocausto foi o genocídio de cerca de seis milhões de judeus (dos quais aprox. 2,8 milhões dos judeus poloneses) através de um programa sistemático de extermínio étnico patrocinado pelo estado nazista, e que ocorreu em todo o Terceiro Reich e nos territórios ocupados pelos alemães durante a guerra, entre eles na Polônia. Não podemos negar nem esquecer disso. Não podemos, no entanto, esquecer que os poloneses durante a guerra também foram assassinados em massa e tirar deles o papel de vítima poderia ser uma grave omissão. O número dos mortos poloneses não judeus  chega aproximadamente a 2,7 milhões. Apresentando então ratos como animais que no mundo da natureza são comidos pelos gatos, o autor sugere que a principal vítima foi o povo dos ratos. Na nossa observação, ao longo do livro, há poucas imagens que mostram o sofrimento do povo polonês. Ao contrário, prevalecem imagens dos poloneses indiferentes ou hostis ou agressivos diante dos judeus. Isso podia com certeza não causar reações positivas no público polonês.

O segundo motivo que não agradou o público polonês foi uma natural associação ao porco no imaginário de um polonês comum. Durante a Segunda Guerra Mundial era frequente que os nazistas chamassem com desprezo os poloneses de “porcos”, “porcos poloneses”, “sujos porcos poloneses” (em alemão: “polnische Schweine”). Era uma expressão extremamente ofensiva a qual os poloneses costumavam ouvir nas ruas das cidades polonesas ocupadas pelos nazistas, nas prisões, durante longos interrogatórios etc.  Esta conotação é dolorosa para muitos poloneses que nunca vão ler “Maus” sem ter consciência de como foram chamados pelos nazistas – inimigos que os judeus e os poloneses tinham em comum. Seja o povo judeu, seja o povo polonês, ambos eram as vítimas do nazismo, portanto a recepção de um livro onde um filho de um sobrevivente judeu de campo de concentração (onde ao lado de muitos judeus, morriam também muitos poloneses) relata os poloneses como porcos, não passaria sem comentários na Polônia.

Como observam Umbach e Gerhardt, Spiegelman utiliza essa “concepção ao representar os diferentes grupos étnicos que participam do enredo, em que os nazistas se consideram uma ‘raça’ superior (gatos) e têm o direito natural de extinguir os judeus (ratos). Existem ainda os poloneses aliados às ideologias nazistas, que, apesar de negarem sua natureza para salvarem suas vidas, são representados por porcos, animais sujos, imundos que só se ‘desenvolvem’ mais que os ratos, por serem ‘domesticados’ por uma ‘raça superior’”[16].
Dessa curta analise escrita por duas pesquisadoras brasileiras podemos deduzir que não foi só uma certa sensibilidade polonesa a enxergar o papel de porco como ofensivo, mas esta é a leitura dos poloneses que se dá até fora da Polônia. Considerando o número de traduções do livro no exterior, os poloneses podem ficar incomodados pela difusão de uma imagem tão negativa deles para o público que pode formar a sua visão dos acontecimentos históricos a partir deste livro.

Mesmo que o autor tenha declarado no livro “Metamaus” que estava interessado pela opressão racial e de classe (“Fue mi yo hippie el que me condujo hacia el tema de los derechos de los negros y, con el tiempo, a la temática nazi y judía. […] Ahondé en la matáfora de la opresión”[17]), podemos perceber que ele não respeitou os direitos de todos. Sabemos que a crítica dele não foi só direcionada a uma nação. Ao contrário, representantes de judeus também foram apresentados de uma maneira negativa. O que pode consolar o leitor polonês é a autocrítica que o autor fez do próprio povo e a ironia com a qual descreveu as características dos judeus cuja personificação é Vladek. Ele é mesquinho, avarento, racista, trata a sua segunda esposa de uma maneira terrível e vive num inferno neurótico. Art Spiegelman, sendo auto-irônico e ressaltando defeitos do seu pai, torna-se mais autêntico e mais verdadeiro. Contudo, o leitor polonês não vai engolir com facilidade a imagem dos poloneses – porcos. A reação do público polonês foi então esperada, o autor podia imaginar o escândalo que o livro poderia causar no país. Mas o autor queria ver a versão em polonês e esta edição foi muito importante para ele. Numa entrevista presente no livro “Metamaus” Art Spiegelman tentou explicar a sua escolha dizendo que tinha tentado primeiramente apresentá-los sob a forma de um cervo, mas dava muito trabalho por causa dos chifres. Essa foi uma explicação com tom de brincadeira. Depois Art Spiegelman começou a explicar que na tradição americana de quadrinhos os suínos não causam quaisquer associações negativas – por exemplo Piggy Porky é tão agradável e simpático como Mickey Mouse. Na entrevista o autor conta também que não foi ele então que veio com essa metáfora, mas os nazistas; ele só queria experimentá-la, confundir e desconstruir.

“Si pienso en Hitler como mi colaborador, en su plan para el Reich de los Mil Anos, las razas eslavas, polacos inclusive, no iban a ser exterminados como los judios, sino que trabajarían hasta morir. Estaban destinadas a convertirse en la mano de obra esclava de la raza superior. En mi bestiario, los cerdos de una granja se crían para carne. Los cebas, los matas y te los comes. Si en una granja hay ratones o ratas, lo único que puedes hacer es matarlos antes de que se coman todo el grano. Por tanto mi metáfora mantenía esa ventaja particular y al mismo tiempo reflejaba las reservas de mi padre hacia los polacos como grupo” (SPIEGELMAN, 2012, p. 121).

Quando “Maus” foi publicado pela primeira vez na Polônia, foi organizada uma manifestação de protesto: um grupo de poloneses  queimou o livro diante da editora que publicou o livro. “Está claro que en Polonia – diz Art Spiegelman – y entre los estadunidenses de origen polaco, la reacción a la cuestión de los cerdos ha sido desproporcionada. Al fin y al cabo, los judios se adaptaron a la idea de ser retratados como roedores. Diria que los polacos tienen un problema profundo para asimilar su pasado. Demuestra que el libro tocó un nervio sensible, una herida abierta que necesita cicatrizar. El destino trágico de los polacos bajo la ocupación nazi ha derivado en una especie de competencia de sufrimentos” (SPIEGELMAN, 2012, p. 124). Estas palavras de Spiegelman infelizmente apenas piorariam a recepção do livro na Polônia, onde apareceram muitos artigos críticos. Um deles é de autoria de Andrzej Echolette segundo o qual “este livro difama um grupo étnico – neste caso polonês – o que deve desafiar um dos cânones básicos da democracia americana com seu slogan quase ritual do “politicamente correto” […]. A calúnia aos poloneses em publicações como “Maus” fará com que a nova geração de norte-americanos não saiba que a Polônia há séculos recebia a emigração dos judeus, foi a primeira a dizer “não” a Hitler, foi o único país na Europa que não tinha nenhum governo colaboracionista, que o exército polonês lutou em todas as frentes ocidentais contra tropas nazistas, que os poloneses resgataram dezenas de milhares de judeus, que em Jerusalém muitas árvores que simbolizam este ato de salvação carregam os nomes dos poloneses”[18] [citando outro jornalista polonês, Zbigniew K. Rogowski, de “Gazeta Polska”].

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O problema fundamental com “Maus” está bem resumido pelas palavras da crítica Arlene Peixe Wilner segundo a qual “a discrepância mais óbvia ocorre entre o escapismo frequentemente associado aos quadrinhos e um realismo aterrador do tema apresentado por  Spiegelman”[19]. O experimento formal do autor de “Maus” foi chamado pelo escritor americano, Terence Des Pres, de um escudo para proteger o autor diante da realidade irrepresentável. Ele escreveu: “Parece óbvio que o conto de fadas sobre gatos e ratos, assim como o formato de quadrinhos, tem a tarefa de alienar de maneira brechtiana o destinatário, para provocá-lo e forçar uma nova atenção para a velha história”[20]. Todas estas questões de ordem moral e filosófica foram analisadas pela crítica polonesa[21] e diversos trabalhos de caráter acadêmico foram escritos e publicados na Polônia. Sempre ao lado dessas questões aparecia o problema da representação do povo polonês. Talvez ao público polonês falte o senso de humor, ou autoironia e autocritica. Mas, estudando bem os livros de história, ouvindo os depoimentos dos últimos sobreviventes, seria uma omissão não ver o problema da representação de um povo polonês no livro de Spiegelman.

 

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[1] Aleksandra Pluta é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade de Brasília, e-mail: pluta.aleksandra1@gmail.com.

[2] Cfr. Alphen van, E. “Zabawa w Holokaust”, trad. K. Bojarska, [em:] “Literatura na świecie”, nr 1-2/2004, pp. 217 – 243.

[3] Cfr. Kowalczyk, I. “Estetyzowanie Holocaustu”, http://www.obieg.pl/artmix/4139

[4] http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/26/internacional/1422275653_655395.html

[5] Grynberg, M. “Oskarżam Auschwitz. Opowieści rodzinne”, Czarne, Wołowiec 2014.

[6] Hirsch, M. “The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the Holocaust”, http://www.postmemory.net/

[7]Andrade Curi, F. “Maus, de Art Spiegelman: uma outra história da Shoah”, dissertação (mestrado), Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas 2009, p. 18.

[8] Cfr. Andrade Curi, F. “Maus, de Art Spiegelman: uma outra história da Shoah”, op. cit., p. 59.

[9] Cfr. Umbach, R.K., Gerhardt, C.C., “Uma leitura de Maus: a história de um sobrevivente”, Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, nº 22 – julho a dezembro de 2013 – ISSN 1679-849X http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/LA/index, p. 46.

 

[10] Andrade Curi, F. “Maus, de Art Spiegelman: uma outra história da Shoah”, op. cit., p. 59.

[11] Huyssen, A. “Of Mice and Mimesis: Reading Spiegelman with Adorno”. New German Critique: Dialetic of Enlightenment, Cornell University, n. 81, p. 65-82. autumn 2000, p. 70.

[12] Wroński, S., Zwolakowa, M. “Polacy i Żydzi 1939–1945”,  Książka i Wiedza, Varsóvia 1971, p. 297 [trad. A.P.]

[13] Com o início da Segunda Guerra Mundial e a ocupação alemã da Polônia, Emanuel Ringelblum  e sua família e todos os judeus de Varsóvia foram realocados para o Gueto de Varsóvia em 1940. Dirigiu sociedade secreta chamada Oyneg Shabbos integrada por outros historiadores, escritores e rabinos judeus, que consistia em registrar a vida no gueto coletando depoimentos, posters, diários e outros documentos.

[14] Cfr. Spiegelman, A. “Metamaus: una mirada de Art Spiegelman a su clásico moderno, Maus”, Barcelona Random House Mondadori, 2012.

[15] Cfr. Rysunek sprawozdawczy. Z Artem Spiegelmanem rozmawia Konstanty Gebert, „Midrasz” 2001 nr 9, pp. 45-47.

 

[16] Cfr. Umbach, R.K., Gerhardt, C.C., “Uma leitura de Maus: a história de um sobrevivente”, op. cit., pp. 53-54.

[17] Spiegelman, A. “Metamaus: una mirada de Art Spiegelman a su clásico moderno, Maus”, Barcelona Random House Mondadori, 2012, p. 118.

[18] Echolette, A. “Polakożercza Mysz”, Nasza Polska, nr 16 (287), 17.04.2001.

[19] Cfr. Considering Maus: Approaches to Art Spiegelman’s „Survivors Tale” o f the Holocaust, ed. D.R. Geis, University Alabama Press, Tuscaloosa 2007 (textos de M.G. Levine, B.A. Katz, N.K. Miller, M. Rothberg, A.F. Wilner e outros).

[20] Des Pres, T.  Holocaust Laugher?, em: Writing and the Holocaust, ed. B. Lang, Holmes&Meier, New York 1988, pp. 228-229.

[21] Cfr. Czubaj M. “Zagłada, myszy, świnie”, Polityka 2001 nr 17, pp. 52-54; Dunin K. “Polskie Świnie”, ResPublica Nowa 2001 nr 6, Jarniewicz J. “Myszy i ludzie”, Literatura na Świecie 1997 nr 10-11, pp. 419-424; Jarzębski J. “Myszy i inne zwierzęta”, Tygodnik Powszechny 20.05.2001.