Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia – Raul Antelo

Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia

Raul Antelo* 

From the time we became convinced that one conviction (or paradigm) follows on from another, and there will be probably not be a lasting and final one, we have used the prefix “post-” more frequently and precipitately.

A philosophy that gave up its position could no longer be regarded as a “heroic passion”. For this reason “political philosophy” today is eo ipso après-philosophy.

Peter Sloterdijk – The Art of Philosophy. Wisdom as a practice.

Klara Kristalova, “Skinny Girl”, 2011

A autonomia é basicamente um conceito político[1]. Nasce, em Sócrates e Aristóteles, como uma condição da cidade-estado. Com o Iluminismo, porém, ela se torna um atributo individual, em que cada um é autor de sua própria lei. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, por exemplo, Kant estabelece que nada possui valor, a não ser o que, a cada coisa, for atribuído pela lei. Mas a própria legislação, que determina todos os valores, deve ter, por isso mesmo, uma dignidade incondicionada. A autonomia é, pois, o princípio da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional e a autonomia da vontade, mais específicamente, é a propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma, independentemente da natureza dos objetos a que se aplica. O princípio da autonomia consiste, portanto, para Kant, em escolher sempre de modo tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis universais, no próprio ato de querer. É essa tradição a que vai desaguar em um pensador como Theodor W. Adorno. Comecemos, pois, o nosso percurso por uma passagem da Teoria Estética:

A obra de arte é o resultado do processo tanto quanto este mesmo processo se encontra em repouso. Comoproclamava a metafísica racionalista no seu apogeu como princípio do mundo, ela é uma mónada: centro de forças e coisa (Ding) ao mesmo tempo. As obras de arte estão fechadas umas para as outras, são cegas e, apesar de tudo, representam no seu hermetismo o que se encontra no exterior. Em todo o caso, é assim que elas se apresentam à tradição como aquele elemento vivo e autárctico que Goethe gostava de chamar enteléquia, com um sinônimo de mónada. É possível que quanto mais problemático se torna o conceito de finalidade na natureza orgânica tanto mais ele se condense intensivamente nas obras de arte. Enquanto momento de um contexto englobante do espírito de uma época, imbricado na história e na sociedade, as obras de arte ultrapassam o seu elemento monádico sem possuir janelas. A interpretação das obras de arte como interpretação de um processo em si imobilizado, cristalizado, imanente aproxima-se do conceito de mónada. A tese do caracter monadológico das obras é tão verdadeiro como problemático. Elas foram buscar o seu rigor e a sua estruturação interna à dominação espiritual sobre a realidade. Aquilo por cujo intermédio elas se transformam em geral numa coerência imanente é-lhes nessa medida transcendente, e vem-lhes do exterior. Mas essas categorias transformam-se a tal ponto que apenas subsiste a sombra de vinculatoriedade. A estética pressupõe incondicionalmente a imersão na obra individual. O próprio progresso da ciência acadêmica da arte na exigência de análise imanente, na renúncia a um procedimento que se preocupava com tudo o que concernia à arte com excepção dela, não pode contestar-se[2].

E mais adiante:

Mas a arte não é social apenas mediante o modo da sua produção, em que se concentra a dialéctica das forças produtivas e das relações de produção, nem pela origem social do seu conteúdo temático. Torna-se antes social através da posição antagonista que adota perante a sociedade e só ocupa tal posição enquanto arte autônoma. Ao cristalizar-se como coisa específica em si, em vez de se contrapor às normas sociais existentes e se qualificar como socialmente útil, critica a sociedade pela sua simples existência, o que é reprovado pelos puritanos de todas as confissões. Nada existe de puro, de completamente estruturado segundo sua lei imanente que não exercite uma crítica sem palavras e denuncie a degradação provocada por uma situação que evolui para a sociedade de troca total: nela tudo existe apenas para-outra-coisa. O aspecto associal da arte é a negação determinada da sociedade determinada. Sem dúvida, a arte autônoma, pela sua recusa da sociedade que equivale à sublimação pela lei da forma, apresenta-se também como veículo da ideologia: na sua distância, deixa igualmente intacta a sociedade de que tem horror. Mas também isso é mais do que simples ideologia: é a sociedade, e não apenas a negatividade, que condena a lei formal estética, mas mesmo na sua forma mais problemática ela é a encarnação da vida humana que se produz e se reproduz. A arte tão pouco podia dispensar-se deste momento como da crítica, enquanto o processo social não se manifestasse como processo de auto-aniquilação; e não está em poder da arte—enquanto desprovida de juízo—decidir por intenções entre os dois. A força produtiva pura, como a força produtiva estética, uma vez liberta da prescrição heterónoma, é objectivamente a imagem contrária da força produtiva acorrentada, mas também o paradigma da funesta actividade por si mesma. A arte só se mantém em vida através da sua força de resistência; se não se reifica torna-se mercadoria. O seu contributo para a sociedade não é a comunicação com ela, mas algo de muito mediatizado, uma resistência, em que a evolução social se reproduz em virtude do desenvolvimento intra-estetico, sem ser a sua imitação. A modernidade radical preserva a imanência da arte, com o risco da sua própria supressão, de tal maneira que a sociedade é aí admitida só obscuramente, tal como nos sonhos, aos quais desde sempre se compararam as obras de arte. Nenhum elemento social na arte é assim imediato, mesmo quando o ambiciona[3].

Temos aí exemplarmente expressa a teoria da autonomia da estética, formulada em um implacável exercício de meta-crítica modernista[4]. Como sabemos, a meta-crítica pode tomar como objeto de reflexão tanto a epistemologia da Estética, quanto a metafísica do Belo. Na primeira perspectiva, questiona-se o caráter do saber estético. Na segunda perspectiva, questiona-se a existência e a qualidade das propriedades estéticas. A perspectiva epistemológica é comparativa. Busca, nas ciências naturais ou na matemática pura, paradigmas em que apoiar-se. Sob a influência destes paradigmas, surgem, na história do pensamento, três enfoques dominantes: o naturalismo, o racionalismo e o anti-cognitivismo. O naturalismo (Stuart Mill) considera a estética um saber empírico construído a partir do modelo das ciências físicas. Por sua vez, o racionalismo (Kant) considera a estética um conhecimento a priori e, portanto, adota em relação a ele o modelo da matemática pura, como conjunto de combinações formais universais. O anti-cognitivismo (Hume, mas também Sartre) recusa-lhe à Estética, enfim, o mero pertencimento ao domínio do saber e conclui que não há, a rigor, um autêntico conhecimento estético. Há várias teorias que negam à arte relevância cognitiva; muitas alegam que a arte proporciona conhecimento, mas que esse conhecimento é trivial, secundário ou até mesmo nulo. Há, basicamente, dois tipos de teorias anti-cognitivistas: as teorias instrumentais e as teorias não-instrumentais. As teorias instrumentais entendem que o valor da arte depende daquilo que ela nos permite alcançar (prazer, ócio ou outras experiências compensatórias). As teorias não-intrumentais, em compensação, defendem que a arte não é algo exterior a si própria, razão pela qual o valor da arte depende, exclusivamente, das próprias obras de arte. O formalismo é o principal representante de uma teoria não instrumentalista da arte. A autonomia adorniana inscreve-se nesta tendência.

Seja como for, o pleito centra-se em determinar se a estética é uma disciplina autônoma, isto é, se o estudo dos valores de uma obra é independente do estudo das propriedades e atributos empíricos desse objeto sensível. Uma resposta negativa a essas questões reforça a autonomia da estética; uma resposta positiva nega essa autonomia e implica vê-la como suplemento de outras práticas. Sabemos que, quando em suas pioneiras Reflexões sobre a poesia (1735), Baumgarten cunha o termo Estética, a partir do verbo aisthanomai (perceber), a noção de autonomia do julgamento era central a esse tipo de empreendimento. Mas, ao longo do século XX, dadas as crescentes contribuições da teoria crítica, a semiótica, o marxismo, a psicanálise, a desconstrução e o feminismo, tem-se tornado inviável entender que a “estética” e as “belas artes” se diferenciem legítimamente entre si e sejam analisadas como fenômenos humanos autônomos, uma vez que essas categorias conceituais exprimem e reforçam certos hábitos culturais e relações de poder que afetam a definição dos próprios objetos. Sob esse ponto de vista, a estética deveria desaparecer como campo diferenciado de estudo e o “estético” não poderia continuar sendo percebido como um tipo específico de valor. Aumenta, em compensação, a crítica do papel desempenhado tanto pelas imagens (não só nas artes tradicionais, como a pintura ou a escultura, mas também no cinema, na fotografia, na propaganda), quanto pelo som ou pelas ficções, em sentido amplo, para conformarem disposições e experiências humanas específicas.

Nos anos 70, muitas são, no campo da esquerda europeia, as manifestações de questionamento ao conceito de autonomia. Mario Tronti, della-volpiano e anti-gramsciano, define a autonomia como utopia reativa.

L’autonomia del politico risulta addirittura un’utopia, una volta presa come progetto politico direttamente capitalistico; risulta addirittura l’ultima delle ideologie borghesi; diventa realizzabile, forse, soltanto come rivendicazione operaia. Lo stato moderno risulta, a questo punto, nientemeno che la moderna forma di organizzazione autonoma della classe operaia[5].

Toni Negri, por sua vez, oposto a Tronti, já argumentava, em 1979, na conclusão de Marx oltre Marx, que nas sociedades ocidentais o dispositivo da crise deveria ser abandonado para afirmar a autonomia e o antagonismo do poder que configuram a nova subjetividade como algo exterior à dinâmica binária. Sua lógica, portanto, é a das metamorfoses[6]. A negatividade de Massimo Cacciari, por sua vez, insistia também por aqueles anos que não cabia mais pensar nenhuma subjetividade para além do sistema, porque a integração era já completa e desaparecia, portanto, a autonomia do sujeito antagonista. A esquerda, que sonhava ser sinesteritas, ocupando um lugar fora do sistema, tornara-se tão somente, uma parte, mesmo maldita, que reconhecia, no entanto, a natureza catastrófica do antagonismo[7]. Em 1970, no bojo desse debate, Cacciari analisa, a propósito, o conceito de autonomia na estética de Georg Simmel e diz que

il concetto di autonomia si specifica come esclusione di ogni tematica letterario-etico-religiosa dal “propriamente artistico”. È una conclusione assolutamente inevitabile: se l’arte non ha a che fare con il concetto di fine o di dovere, essa non può intrattenersi con significati. In quanto tale, il significato è una struttura di dovere, è un rimando, mette in opera un “bisogno simbolico” – spezza, dunque, la “circolarità” espressiva dalla legge individuale. Radicalmente letta, l’autonomia si sbarazza del significato, ne rappresenta il termine opposto. Ma, a questo punto, la contraddizione diviene lacerante: non è forse proprio il recupero del significato a muovere il pensiero simmeliano verso l’estetica? La soddisfazione che l’arte deve procurare non è forse quella derivante dal re-impossessarsi da parte del soggetto dell’essere che gli era sfuggito? O, se questo non è dato, l’arte non riafferma allora, al suo specifico livello, con la sua propria forma, quella differenza, che ci si illudeva di togliere? non ripete l’arte, proprio attraverso la sua autonomia, la condanna al segno, “libero” da ogni significato? Poiché è certamente “logico” tutto ciò che Simmel deduce dalla posizione autonoma del fatto artistico – e cioè la sua “indipendenza”, la sua “libertà” –, ma ogni conseguenza si costituisce sulla base di questa problematica irrisolta. Autonomia è libertà: ma non è appunto la “libertá” del segno ormai scisso del significato? non è ormai l’indipendenza del Cogito che nulla può? E allora l’arte cessa di essere Presenza, si rifà differenza, ritorna alla problematicità che ne costituisce il contesto e la spinta di origine. Ma, con ciò stesso, viene anche meno la sua ragione d’essere sistematica, la sua funzione sintetica. La domanda del negativo riappare ancora inevasa. Il concetto di Presenza si è cosí sdoppiato: da na parte, ha ricondotto, divenendo “autonomia”, all’impotenza del pensiero sul significato – dall’altra, allo statuto etico del significato, quindi alla ripetizione del dovere, a un formalismo che mette in crisi tutto il precendente discorso sull’arte, tutta la funzione dell’estetica. Simmel oscilla di continuo tra i due poli: ora è l’autonomia formale del fatto artistico, che si impone – ora il suo potere di significazione, o, meglio, il suo potere di formalizzazione universale, di ridurre a forma e significato ogni elemento della vita. Ma sono due rami della stessa radice: il concetto di autonomia, in tutte le sue aporie, deriva direttamente dall’esigenza di superare il semplice, formale rimando etico tra prensiero e cosa, legge trascendentale e realtà; la sua crisi ricaccia nella Sehnsucht ogni ideologia della sintesi, ogni metafisica della Presenza, comunque e dovunque costituita.[8]

O espaçotempo contemporâneo

Herdeira desse debate do pensamento italiano acerca da autonomia[9], Josefina Ludmer propôs a categoria de pós-autonomia como um sintoma da época que se manifestaria através da noção de realidadeficção, que é caudatária de espaçotempo que, por sinal, também não é, a rigor, uma invenção crítica específica, uma vez que, incorporando noções anteriores de Lotman e Bakhtin, ela traduz experiências artísticas de vanguarda, formuladas paralelamente também pela matemática e a física. O professor Robert Di Salle, da Universidade de Western Ontario, autor de Understanding Space-Time: The Philosophical Development of Physics from Newton to Einstein (Cambridge, 2006), assim define esse conceito:

ESPACIOTIEMPO: continuo tetradimensional que combina las tres dimensiones del espacio con el tiempo para representar geométricamente el movimiento. Cada punto es la localización de un evento y todos ellos conjuntamente representan “el mundo” a través del tiempo; los rastros en el continuo (líneas mundanas) representan las historias dinámicas de las partículas en movimiento, de manera que las líneas mundanas rectas corresponden a movimientos uniformes, las secciones tridimensionales de valor temporal constante (“hipersuperficies espacialiformes” o “porciones de simultaneidad”) representan todo el espacio en un momento dado. Kant entrevió la idea al representar el “mundo fenoménico” como un plano definido por los ejes perpendiculares del espacio y el tiempo (Disertación inaugural, 1770) y Joseph Louis Lagrange (1736- 1814) cuando se refirió a la mecánica como “geometría analítica de cuatro dimensiones”. Pero la mecánica clásica asume un estándar universal de simultaneidad, y así puede tratar el espacio y el tiempo por separado. El concepto de espaciotiempo sólo fue explícitamente desarrollado cuando Einstein criticó la simultaneidad absoluta e hizo de la velocidad de la luz una constante universal. El matemático Hermann Minkowski mostró en 1908 que la estructura independiente del observador de la relatividad especial podía representarse con un espacio métrico de cuatro dimensiones: los observadores en movimiento relativo discreparían en intervalos de longitud y tiempo, pero concordarían en intervalos tetradimensionales que combinan medidas espaciales y temporales. El modelo de Minkowski hizo posible la teoría general de la relatividad, que describe la gravedad como una curvatura del espaciotiempo en presencia de masas y las trayectorias de los cuerpos en caída como las líneas más rectas en un espaciotiempo curvo[10].

A questão do espaçotempo percorre um enorme leque artístico das vanguardas. Tanto os cubistas analíticos quanto os sintéticos, artistas como Duchamp, Picabia ou Kupka; os futuristas, tanto italianos como soviéticos; os suprematistas e construtivistas; os modernistas norte-americanos reunidos em torno de Stieglitz e Arensberg; os dadaístas, mas também os holandeses de De Stijl, e até Matisse, e mesmo a Bauhaus, não muito sensível ao tema, exibiram alguma preocupação em torno da quarta dimensão, tópico que também reconhecemos na obra de Van Doesburg ou Kandinsky. André Breton refere-se à quarta dimensão a partir de um texto de Oscar Dominguez, “La pétrification du temps”, e Salvador Dali, por sua vez, sentia-se um continuador de Ramon Llul, cuja arte combinatória, inspirada pelos cabalistas judeus de Maiorca, alimentaria também as artes da memória de Borges e do OULIPO[11]. Mas, antes mesmo disso tudo, em 1912, quando Brisset ensaiava, com relação à linguagem, uma filologia primitivista, à maneira do douanier Rousseau, ao passo que Carl Einstein compunha as aventuras de Bebuquin, interessadas na destruição do objeto e numa política do absoluto, Marcel Duchamp descobria uma obra decisiva para a elaboração de seu anartismo, a Voyage dans la Quatrième Dimension, de Gaston William Adam de Pawlowski (1874-1933). È bem verdade que, após Charles Howard Hinton abrir o debate em torno da quarta dimensão em 1882, e para além do romance Flatland, um conto de Rudyard Kipling,“Um erro na quarta dimensão” (1894), A máquina do tempo (1895), de H. G. Wells e referências esparsas em Lewis Carroll ou mesmo Marcel Proust, já existia o ensaio de P. D. Ouspensky, “The Fourth Dimension(1908); mas citemos apenas um fragmento do livro de Pawlowski, porque ele encerra decisivas consequências para a filosofia da arte:

La civilisation est une oeuvre d’art. Une comédie bien réglée.

Qu’on ne s’y trompe pas, en effet : à côté de la bibliothèque mathématique où se cristallisent en formules les mesures symboliques de la vie, l’art, depuis les origines du monde, poursuit sa mystérieuse et patiente synthèse des qualités. Sans que nous y prenions garde, presque toute notre vie quotidienne de civilisés est dèjá littérature. Nos idées courantes sont inspirées par le roman littéraire ou par cet autre roman d’imagination que l’on appelle l’histoire, nos gestes sont suggérés par les exemples de la morale ou des beaux-arts, des formules magiques donnent leur prestige au droit comme à la médecine, l’hypothèse sert de base aux équations des savants. La civilisation est avant tout une oeuvre d’art, une comédie bien réglée, et un homme de bon sens ne peut manquer d’avoir par moments cette sensation très nette qu’il est avant tout, sur terre, un acteur forcé de jouer un rôle qu’il n’a point composé.

Ne nous en plaignons pas. C’est par ce progrès dans l’artificiel que se dégage peu à peu le monde supérieur des qualités et que s’opère insensiblement cette synthèse de la vie, de la ligne, de l’espace et du mouvement devenus immobiles et éternels grâce à l’
Art, synthèse qui nous permet, mieux que par l’analyse mathématique, d’atteindre enfin ce que nous appelons la quatrième dimension.

L’art est antérieur à l’homme. On le trouve dèjá dans les groupements de la matière.

Il ne faut point l’oublier, du reste : l’art est antérieur à l’apparition de l’homme. Il existe déjà dans les plus humbles groupements de la matière, dans la vie des cristaux comme dans les prodigieuses transmutations de matière opérées par ces alchimistes de génie que sont les plantes. Avant même que se manifeste en tous lieux, abondante et miraculeuse, la génération spontanée, impossible seulement dans les milieux pasteurisés, la matière se groupe déjà en forme d’êtres vivants, comme le prouvent les croissances osmotiques de Stéphane Leduc, avec leurs élégantes silhouettes de plantes… Car, dès l’apparition de la matière (faute de pouvoir remonter plus haut) tout est choix dans la nature, préférence raisonnée, recherche de la forme, de la ligne et de l’harmonie, poursuite de la qualité impondérable, tout est vivant, en un mot, et les premières manifestations de l’art nous apparaissent avec les premiers groupements de la matière.[12]

Como se vê, são as mesmas hipóteses de trabalho das protoformas da arte de Karl Bloosfeldt, a vida das formas de Henri Focillon ou a escritura das pedras de Roger Caillois. Mencionei, há pouco, dois catalães, Llul e Dali; acrescentemos, porém, mais um, Eugenio D´Ors, que, mesmo numa obra volumosa sobre o assunto, não é sequer lembrado por Linda Dalrymple Henderson[13]. Com efeito, tão somente um ano após Pawlowski publicar esse seu livro, Eugenio D´Ors defendia, em 1913, seu doutorado em Filosofia, em Madri, com uma Introdução à análise finita da continuidade, postumamente publicada como As aporias de Zenão de Eleia e a noção moderna de espaço-tempo. São hipóteses que se reiterarão em seus escritos de estética. Na suas “Glosas”, no jornal ABC, chega a comentar, em 1928, que

Insertar el movimiento significa, naturalmente, insertar el tiempo. El problema íntimo contenido en los argumentos de Zenón de Elea ha permanecido constantemente en pie. Naturalmente, insertar el tiempo como insertar el movimiento, es consagrarse a la caducidad, es renunciar a la eternidad y por de pronto a la fijeza. Una construcción en que el movimiento y el tiempo se insertan, compra a precio de la serenidad y el reposo, la intensidad y, por decirlo así, el poder mágico que con ello logra.[14]

Em seu livro A arte de Goya (1928), publicado em Paris, chega assim a propor uma explicação tectônica do barroco, apoiado justamente nas aporias de Zenão de Eleia[15]. Mas é mesmo na tese de 1913 onde avançara uma ousada definição de espaçotempo posteriormente muito produtiva na análise cultural:

la distancia de dos acontecimientos en el espacio es inferior al camino recorrido por la luz durante su intervalo en el tiempo, o, de otra manera, el segundo acontecimiento se produce después del paso de la señal luminosa cuya emisión coincide en el espacio y en el tiempo con el primero. Esto introduce, desde el punto de vista del tiempo, una disimetría entre estos dos acontecimientos. El primero es anterior al paso de la señal luminosa cuya emisión coincide en el espacio y en el tiempo con el segundo acontecimiento, mientras que el segundo es posterior al paso de la señal luminosa cuya emisión acompaña al primero. Un lazo de causalidad puede existir, a lo menos por intermedio de la luz, entre los dos acontecimientos. El segundo ha podido ser informado por el primero, y esto exige que el orden de sucesión entre ellos tenga un sentido absoluto y no pueda ser invertido por ningún cambio del sistema de referencia. Vese inmediatamente que una tal inversión exigiría una velocidad superior a la de luz, para el segundo sistema de referencia, con relación al primero. Así, dos acontecimientos entre los cuales existe una posibilidad real de influencia, si no pueden ser llevados a coincidir en el tiempo, pueden siempre ser llevados a coincidir en el espacio por la conveniente elección de un sistema de referencia. En particular, si estos dos acontecimientos pertenecen a un mismo orden de fenómenos ligados naturalmente o se suceden con un orden absoluto, en una misma línea de materia, coinciden en el espacio para observadores ligados a esta porción de materia.

Tenemos, pues dos principios, que deben compararse con los enunciados anteriores, ofreciendo una correlación con ellos: “Si el intervalo en el tiempo de dos acontecimientos no puede ser anulado, pasa por un minimum, precisamente por el sistema de referencia por relación al cual estos acontecimientos coinciden en el espacio”. Segundo, y consecuentemente: “El intervalo de tiempo entre dos acontecimientos que coinciden en el espacio, que se suceden en un mismo punto para un cierto sistema de referencia, es menor para éste que para cualquiera en una traslación uniforme cualquiera en relación con el primero”. Tenemos, en conjunto, la fórmula del tiempo ligada a la del espacio, por su misma definición. Y todo acontecimiento, sometido a una coincidencia de tiempo y de espacio, y definido por esta coincidencia.[16]

A mútua reversibilidade entre espaço e tempo cria, assim, na opinião de D´Ors, um fenômeno de quarta dimensão ou espaçotempo homogêneo:

Considerando así el tiempo objetivamente en función del espacio, puede ser definido como el conjunto de acontecimientos que se suceden en un mismo punto, por ejemplo en una porción de materia, ligada a un sistema de referencia. El espacio entonces es definido como el conjunto de los acontecimientos simultáneos. Esta definición del espacio es la consecuencia del hecho de que un cuerpo en movimiento está definido por el conjunto de posiciones simultáneas de las diversas porciones de materia que lo componen, de sus puntos materiales, por el conjunto de acontecimientos que constituyen la presencia simultánea de esos diversos puntos materiales. El acontecimiento, en virtud de lo dicho, se definirá como una coincidencia del espacio y del tiempo. Un conjunto de acontecimientos ligados por relación de sucesión (por ejemplo, por una ley causal) será, para Minkowski, una línea de universo. Y la noción de universo, en sí misma, será una noción sintética, en que vendrán a fundirse, inseparables ya, las dos antiguas nociones de espacio y tiempo[17].

Tais ideias seriam mais tarde desenvolvidas por um conjunto de cientistas: Earman[18], Friedman[19], Sklar[20] e Stein[21]; mas o próprio D´Ors exploraria as consequências dessa sua teoria em Las ideas y las formas. Estudios sobre morfología de la cultura (1928), onde estipula, por exemplo, que a arquitetura, como prática não autonômica, já não desempenharia mais uma função estrutural[22]. O corolário destas análises é que o acontecimento torna-se um simples indício das coisas (da Coisa) que nos interpela como dispositivo do poder, algo que já não age então como matéria, porém, como simples imagem, e assim, ao reproduzir ao infinito aquilo que só teve lugar uma vez, faz com que a própria imagem repita, mecânicamente, aquilo que jamais se poderá repetir existencialmente, definindo-se, em suma, o caráter centrípeto da imagem, situada à metade do caminho entre o fenomenológico e o transcendente, o estrutural e o histórico, ou seja, no plano do ana-crônico. É o tema que Walter Benjamin pesquisa, justamente, ao longo dos anos 30. De fato, no ensaio sobre a obra de arte, em 1936, Benjamin define a aura como um singular cruzamento de espaço e tempo, como a aparição única, singular, de uma distância, mesmo no espaço do mais íntimo e próximo. Porém, depois de trocar algumas cartas com Adorno, como a solução não aparecia plenamente satisfatória, Benjamin redige, em 1938, num manuscrito de três folhas pequenas, uma proposta bem menos entusiástica com relação às potencialidades do cinema e à autonomia da obra, argumentando que

L’esperienza dell’aura riposa sul trasferimento di una forma di reazione normale nella società umana al rapporto della natura con l’uomo (…) Quando un uomo, un animale o un essere inanimato leva il suo sguardo sotto il nostro, per prima cosa ci trascina nella lontananza; il suo sguardo sogna, ci trascina nel suo sogno. L´aura è il manifestarsi di una lontananza, per quanto vicina essa sia (… ) Nel mondo c’è tanta aura quanto vi resta di sogno. Ma l’occhio desto non perde l’arte dello sguardo, quando il sogno in esso si è spento. Al contrario, solo allora lo sgaurdo diventa davvero insistente. Cessa di assomigliare allo sguardodell´amata che, sotto quello dell´amato, alza gli occhi, e comincia piuttosto a somigliare allo sguardo con cui il disprezzato risponde a quello di chi lo disprezza, l’oppresso a quello dell’oppressore (…) Ciò avviene quando la tensione fra le classi ha superato una certa soglia. Succede allora questo: a coloro che appartengono a una delle due classi – a quella dei dominatori o a quella degli oppressi – può apparire utile o anche alletante guardare gli appartenenti all’altra classe; ma l´essere oggetto di un tale sguardo viene percepito come sgradevole o anche pericoloso (…) Senza il cinema la decadenza dell’aura si farebbe sentire in misura non più sopportabile[23].

Em Was ist Aura? destaca-se, então, não já a potencialidade conetiva da montagem mas o aspecto regressivo da imagem. Não sendo nem dialética, nem revolucionária, ela corre o risco de tornar-se tão somente uma nova configuração mitica, que nos levaria da sociedade disciplinar à sociedade de controle que pode, muito bem, valer-se de um populismo reativo para garantir esse controle. E isso, certamente, obtura toda ilusão de autonomia para a obra. A questão, portanto, estava já colocada mesmo antes da guerra. A aura era realidadeficção.

Em diálogo recente com Gayatri Spivak, David Damrosch externava seus temores de que conceitos como pós-autonomia se tornassem “culturally deracinated, philological bankrupt, and ideologically complicit with the worst tendencies of global capitalism”[24]. Talvez por esse motivo outros pensadores, dentre eles, Boris Groys, ainda renovam o crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico[25].


[1] RUSSELL, Roberto e TOKATLIAN, Juan Gabriel – “From Antagonistic Autonomy to Relational Autonomy: A Theoretical Reflection from the Southern Cone”. Latin American Politics and Society, vol. 45, nº 1, spring 2003, p. 1-24.

[2] ADORNO, Theodor W. – Teoria Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1982, p. 203

[3] IDEM – ibidem, p. 252-3.

[4] Já abordei algumas destas questões em “Postautonomía: pasajes” in Pasajes, nº 28, Valencia, inverno 2008 – 2009, p. 10-21.

[5] TRONTI, Mario – Sull’autonomia del politico. Milano, Feltrinelli, 1977, p. 20.

[6] NEGRI, Antonio – “Metamorphoses” in ALLIEZ, Èric e OSBORNE, Peter – Spheres of Action: Art and Politics. Cambridge, MIT Press, 2013.

[7] CACCIARI, Massimo – “Sinesteritas” in VARIOS AUTORES – Il concetto di sinistra. Milano, Bompiani, 1982, p. 19

[8] CACCIARI, Massimo – “Introduzione ai saggi estetici di Georg Simmel”. In: SIMMEL, Georg – Saggi di estetica. Trad. Massimo Cacciari e Lucio Perucchi. Padova, Liviana Editrice, 1970, p.XLII-XLIII.

[9] Em “La multitud entra en acción” (Clarín, Cultura y Nación, 19 jan 2001), em plena crise do capitalismo periférico, Ludmer dizia que “Paolo Virno es uno de los filósofos más lúcidos de hoy; piensa el presente desde el pasado y desde el futuro. Escribe sobre la memoria (pública, colectiva) del presente y su relación con la historia. Y también escribe una política futura, potencial, para el presente. Virno, quien en los setenta integró con Toni Negri un grupo de izquierda radical antiestatal, más tarde fundó junto con el historiador (sic) Giorgio Agamben la revista Luogo Comune (Lugar común). Hoy es uno de los referentes de la llamada ‘nueva izquierda’ que busca refundar una utopía sin oponerse a la globalización, sino tratando de ver en ella su potencial creativo. En su libro Il ricordo del presente (El recuerdo del presente), Virno dice: hoy la memoria se manifiesta explícitamente con un desocultamiento radical; cada momento tiene algo percibido y algo recordado. La memoria pública del ‘modernariato’ es como un déjà vu, una experiencia donde prevalece la impresión de que el presente carece de dirección y que el futuro está cerrado. La experiencia es la de una detención de la historia porque el presente toma la forma del recuerdo, la sensación de haberlo vivido, dice Virno. El déjà vu ha cerrado una conciencia histórica y puede ser pensado como el hecho histórico en el que se funda la idea de un ‘fin de la historia’. Este fenómeno contemporáneo del déjà vu es una patología pública que coincide, dice Virno, con la sociedad del espectáculo, porque el presente se duplica en el espectáculo del presente. El recuerdo del presente: una idea, y un estado de ánimo, que arroja luz sobre el tema canónico de la reflexión histórico-filosófica.(…) Esboza entonces una teoría política del futuro, radicalmente anti-hobbesiana, que se funda en el éxodo como acción y en la multitud como sujeto”.

[10] DI SALLE, Robert – “Espaciotiempo” in AUDI, Robert (ed.) – Diccionario Akal de Filosofía. Trad. Huberto Marraud e Enrique Alonso. Madrid, Akal, 2004, p 318.

[11] BONNER, Anthony – The Art and Logic of Ramon Llull: A User’s Guide. Leiden, Brill, 2007

[12] DÉCIMO, Marc – La bibliothèque de Marcel Duchamp, peut-être. Paris, Les Presses du Réel, 2002, p.68-69.

[13] HENDERSON, Linda Dalrymple – The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry in Modern Art 2ª ed. revisada. Cambridge, MIT Press, 2013.

[14] D’ORS, Eugenio – “Glosas”. In: ABC, Madrid, 13 abr. 1928.

[15] IDEM – L´arte di Goya. Milano, Bompiani, 1948, p.27.

[16] IDEM – Las aporías de Zenón de Elea y la noción moderna de espacio-tiempo. Ed. Ricardo Parellada. Madrid, Encuentro, 2009, p.104-5. Existe uma versão abreviada em catalão, “Les apories de Zenon d’Elea”, Quaderns d’Estudi, a. V, vol. I, nº 1, out-nov-dez 1919, p. 43-52. Sobre o tópico, além das clássicas referências a Zenon nos escritos de Roland Barthes, ver GLAZEBROOK, Trish – “Zeno Against Mathematical Physics”. Journal of the History of Ideas, vol. 62, nº 2, abr. 2001, p.193-210 e FEYERABEND, Paul – Contra o método. Esboço de uma teoria anárquica da teoria do conhecimento. 2ª ed. Trad. O. da Mota e L. Hagenberg. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.

[17] D´ORS, Eugenio  – Las aporías de Zenón de Elea y la noción moderna de espacio-tiempo, op. cit., p.112.

[18] EARMAN, John – “Why Space is Not a Substance (at Least Not to First Degree),” Pacific Philosophical Quarterly, nº 67, 1986, p. 225-244; IDEM – “Who’s Afraid of Absolute Space?,” Australasian Journal of Philosophy, nº48, 1970, p. 287-319; IDEM e  NORTON, J. -“What Price Spacetime Substantivalism: The Hole Story”. British Journal for the Philosophy of Science, nº 38, 1987, p. 515-525.

[19] FRIEDMAN, Michael – Foundations of Space-Time Theories: Relativistic Physics and Philosophy of Science. Princeton, Princeton University Press, 1983.

[20] SKLAR, Lawrence – Space, Time and Spacetime, Berkeley, University of California Press, 1974.

[21] STEIN, Howard – “Some Philosophical Prehistory of General Relativity” in Minnesota Studies in the Philosophy of Science 8: Foundations of Space-Time Theories (John Earman et al. eds.), Minneapolis, University of Minnesota Press, 1976.

[22] D´ORS, Eugenio – “Cúpula y monarquía” La Gaceta Literaria, a.2, nº32, Madri, 15 abr. 1928, p.5.

[23] BENJAMIN, Walter – “Che cos´è il aura?” in Charles Baudelaire. Un poeta lirico nell´età del capitalismo avanzato. Ed. Giorgio Agamben, Barbara Chitussi e Clemens-Carl Härle. Vicenza, Neri Pozza, 2013. A tradução é de Agamben.

[24] “Comparative Literature/World Literature: A Discussion with Gayatri Chakravorty Spivak and David Damrosch” in Comparative Literature Studies, Volume 48, Number 4, 2011, p. 456.

[25] Ver DAMROSCH, David – “World literature as alternative discourse”. Neohelicon, nº 38, 2011, p.307–317; GROYS, Boris – “The Logic of Equal Aesthetic Rights” in Art Power. Cambridge, 2008, em especial p. 12-3; ALTIERI, Charles – “Why Modernist Claims for Autonomy Matter”. Journal of Modern Literature, vol. 32, nº 3, spring 2009, p. 1-21.

* Professor titular de literatura da UFSC.