Misere não é miséria – a tradução brasileira do teatro de Kroetz – Werner Heidermann

Misere não é miséria – a tradução brasileira do teatro de Kroetz

Werner Heidermann*

O texto teatral exige considerações específicas quando da tradução. Mary Snell-Hornby entende o texto teatral como uma “partitura” a se realizar na apresentação. Fabienne Hörmannseder define certas exigências para a tradução teatral, as quais eu gostaria de aplicar ao caso de uma peça do autor alemão Franz Xaver Kroetz: Oberösterreich ou “Alta Áustria”. Trata-se neste artigo de uma perspectiva tradutológica, mas não necessariamente de uma crítica de tradução strictu sensu. Entre outros aspectos ocupo-me da questão quanto à discutível necessidade de tradução de certas peças teatrais, cujos originais retratam uma realidade alheia.

 
Oberösterreich, peça teatral para dois atores, escrita por Franz Xaver Kroetz em 1972, leva no palco Anni e Heinz, casal de trabalhadores, vendedora ela, ele motorista. A realidade social dos protagonistas, pessoas simples, corresponde à linguagem como também ao tom do diálogo: simples sem ser simplório, rústico sem ser frívolo. Os temas da conversa não poderiam ser mais genéricos, mais realistas e mais fúteis: um programa de televisão e a idolatria das estrelas televisivas, os desejos de consumo, os concretizados e os utópicos, os sonhos de Anni (uma viagem a Viena) e a obcessão de Heinz por carros. Os diálogos acontecem no apartamento do casal – na sala, na pequena cozinha, no quarto, no quarto (citação do aviso cenográfico) com „Anni e Heinz fazendo amor como de costume“ (AA, 15). O leitor, ou melhor, o espectador se vê confrontado com o clima de um conservadorismo estagnado, o mofo dos anos 60 e 70 na Alemanha e na Áustria: o proprietário do Kadett que sente inveja do vizinho que tem um carro maior; o armário comprado a prestações; o dinheiro curto e o perigo do endividamento. No início do segundo ato Anni surpreende o marido com a novidade da sua gravidez. Com a perspectiva da família pequena, os dois calculam, recalculam o orçamento disponível até chegar a „318 marcos e 75 para três pessoas“ (AA, 51), respectivamente „3 marcos e 54 por pessoa“ (AA, 51). „É pouco, né?“ (AA, 51), é como Heinz comenta o resultado do cálculo. De fato, 3 marcos e 54 por pessoa em 1972 seria pouco. Não surpreende, portanto, que o pai recuse o papel e pense em aborto. É ele quem providencia a consulta médica, é ele quem argumenta, é ele quem pressiona – mas é Anni que, no último instante, decide, laconicamente: “Eu não vou, porque vou ficar.“ (AA, 58) Pouco tempo depois, numa blitz, Heinz, chofer de caminhão, perde sua carteira de motorista. No lastro do inevitável desastre, do fracasso total em meio a desemprego, pobreza e miséria, o teatro realista popular daquela época, porém, oferece saída menos dramática: “Depois dessa, precisamos ficar ainda mais unidos.“ (AA, 61) É o que Anni fala. E Heinz? “Ele deita chorando ao lado de Anni“ (AA, 61). “Cheia de esperança“ (AA, 64) são algumas das últimas palavras da peça, bem no final se insere uma música popular: ao acordeão o marido toca “Viena, unicamente tu, Viena“ (AA, 64).

Simples e banal! Será que esses diálogos merecem comentários e reflexões? Será que resta algum pensamento universal ao se excluir as poucas expressões referentes à cotidiana vida do casal? “Ilusões não faltam para gente“ (AA, 20) é uma dessas expressões que parecem ser alusões ao teatro brechtiano. “O homem precisa de espaço“ (AA, 31), disse Heinz um pouco mais tarde. “A gente tem que se conformar“ (AA, 35), é uma das respostas de Anni aos desafios da vida, ou a outra: “Insatisfação é uma doença, dizem“ (AA, 35). “Só se vive uma vez.“ (AA, 39) é lugar-comum, a que se reage com: “A gente tem que ter fé na vida“ (AA, 41). Máximas de segunda, terceira mão, tentativas de suportar a agonia do cotidiano. Um show de auditório na televisão é motivo de conversa sobre os apresentadores: “Porque os dois têm alguma coisa que impressiona e mexe com a gente. Qualquer um se deixa envolver completamente. É o bonito na coisa, que dá coragem.“ (AA, 5) A admiração pelo inatingível, pelo virtual se reflete na negação da própria personalidade. E a negação não é percebida como perda, destruição, como fim mas como algo prazeroso. A alienação como prazer, a auto-destruição como condição da sobrevivência.

Heinz, nosso anti-herói, tem consciência de como a individualidade é um fator essencial. “Se o Kadett não fosse um carro popular, seria o certo“ (AA, 9), é uma avaliação dele. “Porque a gente quer ser o único, que mais.“ (AA, 20), e essa máxima se repete adiante. “Algo especial“ (AA, 32), “algo fora de série“ (AA, 32) é isso o que ele gostaria de ter – e de ser! Heinz, o motorista, sofre com a própria insignificância: fala do trabalho e do “contato direto com um cliente, que tem que ser pessoal, como dizem, às vezes parece que não sou eu, é como se fosse qualquer outro e sem importância alguma. Eu.“ (AA, 33) E, no mesmo instante: “A gente faz alguma coisa, alguém que por acaso é a gente mesmo, por assim dizer, e milhões já fizeram isto antes, exatamente igual“ (AA, 33).

Alienação e crise existencial são crises universais que tanto atingem o intelectual como o motorista. Talvez a essência da peça de Kroetz consista nisso: a perda da individualidade. O conteúdo da conversa, embora superficial e permeado de reflexões medíocres, é de uma abrangência universal e de uma relevância atemporal. Trata-se de nada menos do que a autodefinição do indivíduo no universo cada vez mais complexo. Essa autodefinição, na maioria das vezes, é dolorosa, poucas vezes harmoniosa, porém nunca definitiva. Sem ser um conflito banal e superficial entre aparência e realidade, a peça aborda as condições da existência, e apresenta a batalha por uma dose de particularidade. Ainda recentemente, o assunto tornou à baila com muita ênfase, na literatura do escritor norte-americano David Foster Wallace de “The Suffering Channel“:

O paradoxo de celebridade era somente uma parte de outra contradição universal, mais profunda, mais trágica: ou seja entre a posição central de cada indivíduo no mundo como ele a percebe subjetivamente e a certeza da própria insignificância objetiva. Mesmo se ninguém o articulou em voz alta, cada um na revista Style, Atwater inclusive, reconheceu nisso o conflito onipresente dentro da alma americana. Era a administração da insignificância (…)

A administração da insignificância, no conto de David Foster Wallace, é a missão dos jornalistas de uma revista do gênero lifestyle, imbuída de missão intelectual e sofisticada em Nova York.

No caso de Kroetz, a admiração por uma vida célebre resulta do confronto com o próprio eu e com os limites do desdobramento pessoal: sala, pequena cozinha, quarto. A “a posição central de cada indivíduo no mundo como ele a percebe subjetivamente”, segundo a reflexão de Wallace sobre essa ilusão, vale tanto para o autor cult em Nova York, bem como para o motorista de caminhão do interior austríaco, cujo universo é o que se chama em alemão hoje em dia “unterkomplex“ (sub-complexo): sala, pequena cozinha, quarto – trabalho, boliche, trabalho – citação: “As folgas entre trabalho são muito curtas.“ (AA, 36) Onde Anni gosta de se envolver completamente e esquecer a própria condição, o marido aspira auto-realização. É 1972: o marido sai para jogar boliche e leva a mulher junto; homem e mulher ainda vivem antagonismos: ele, o sustento da família, ela, que igualmente trabalha mas ganha menos; ela, a costureira de cortinas, ele, o perito automobilístico; ele, o sujeito melancólico e cansado da vida, ela, a moça forte, corajosa, pragmática.

A descoberta da própria insignificância derruba o herói. O que ele está fazendo, „milhões já fizeram (…) antes, exatamente igual“ (AA, 33).

Uma tradução da peça de Kroetz data de 1979, e tem autoria do „Grupo de Tradutores do Instituto Goethe de Curitiba-Paraná/Orientação e adaptação: Heidede Emily Liede“. Qualquer esforço de reproduzir o dialeto de maneira consistente fracassaria, sendo assim a decisão a favor do português mais ou menos urbano e mais ou menos coloquial foi uma decisão coerente e adequada. A tradução de Curitiba é um trabalho muito cuidadoso, não sabemos se a primeira finalidade foi de cunho didático. Não queremos aqui apontar eventuais erros e mal-entendidos, queremos, no entanto, chamar a atenção para certas decisões do grupo. Um exemplo diz respeito ao procedimento do tradutor ao encontrar erro no original – e o que é um erro? O erro aparente ou de fato do original tem que aparecer como erro na tradução? “Ein „Metereologe (habe) gsagt“ (OÖ, 15) é apenas um exemplo. E os tradutores não corrigem o lapso, mas traduzem o „meteorólogo“ como „metereólogo“. Talvez se possa pensar com o tradutor suíço de David Foster Wallace, Ulrich Blumenbach, quando comenta seu trabalho: “Eu tinha que traduzir o errado de maneira errada – mas corretamente“.  Uma série de decisões técnicas não poderiam ter tomadas de modo mais feliz. Nomes próprios, por exemplo, apenas foram mantidos onde se pode esperar o respectivo conhecimento por parte do espectador brasileiro. Simplesmente inimitáveis são construções da voz passiva, aparentemente normais no dialeto bávaro, estranhas para um falante do alemão padrão – um exemplo somente: “Jetz muss gangen sein, sonst kommen mir zu spät.“ (OÖ, 22) A equipe não se arrisca e abre mão de qualquer solução ousada: “Agora temos que ir, senão chegamos atrasados.“ (AA, 26) É claro que o dialeto leva um tom rústico que o padrão não é capaz de produzir. A colocação de Heinz, por exemplo: “uma criança é um fator que não se pode avaliar“ (AA, 57) é fraca em comparação à fala original do pai que não quer ser pai: „ein Kind is ein Faktor, wo kein Mensch überschaut“ (OÖ, 38f). Em alemão, o comentário é cômico devido à quebra estilística da colocação: “Faktor“ do nível quase acadêmico junto com a construção de uma frase relativa com o pronome do dialeto.

Fabienne Hörmannseder da Universidade de Viena trabalhou sobre “tradução que tem efeito no palco“ (bühnenwirksame Übersetzung) e apresentou os resultados da pesquisa na tese intitulada „Text und Publikum“ . Fabienne Hörmannseder cita Josef Weinheber, autor vienense: “A fala, isso é sangue, a escrita é papel“ („Sprach, des is Bluat, und Schrift is Papier“ ). Difícil delinear melhor os desafios do tradutor do texto teatral em poucas palavras! Sobre a peculiaridade da tradução do texto teatral e o respectivo caráter provisório em vista da encenação escreveu Mary Snell-Hornby, também da Universidade de Viena: “Podemos comparar o texto escrito a uma partitura; somente na hora da realização pelos ‚instrumentos‘ previstos a partitura pode ser interpretada e pode desdobrar seu potencial.“
O desdobramento será bem-sucedido desde que o texto da tradução contemple as condições específicas do teatro, às quais se refere Hörmannseder lembrando três aspectos a serem contemplados, visando o tradutor, o público e os atores. O conceito chave de Hörmannseder é o “efeito no palco“ (Bühnenwirksamkeit) que se surte se o público encontra uma „natureza entendível“ da peça (verständliche Beschaffenheit), ou seja, “audibilidade“ (Hörbarkeit), “inteligibilidade“ (Fasslichkeit), “clareza“ (Klarheit). Ademais, é imprescindível que o texto garanta ao ator características altamente típicas do teatro, ou seja, “falabilidade/pronunciabilidade“ (Sprechbarkeit), “respirabilidade“ (Atembarkeit) e “encenabilidade“ (Spielbarkeit). 

O dramaturgo Kroetz coloca no início uma ponderação técnica: “Atores que não dominem bem essa linguagem devem recriá-la como linguagem artificial.“ (AA, 1) Em consonância com o postulado do dramaturgo, os tradutores não produziram formas gramaticalmente incorretas. Renunciando a qualquer tentativa de reprodução dialetal, os tradutores conseguiram compensar os efeitos através de uma dicção simples. Não há hipotaxe, os diálogos fluem sem meandros. Uma sequência como, por exemplo, no segundo ato, terceira cena: “Nós temos que pensar na nossa situação./No que pensa?/Temos que pensar na nossa situação./Você pensa demais./Que nada./Como a pessoa muda./Quem?/Você./Porque não vejo saída./A gente não precisa mudar só porque não vê saída./O homem precisa de espaço, é isto./Por que?“ (AA, 30s) Não existe uma unidade lexical não pertencente ao vocabulário básico do português do Brasil. A complexidade sintática é mínima. A média sintática abrange 5,5 palavras (564 palavras em 102 períodos); mais curtos ainda são os períodos da primeira cena da peça: 5,2 unidades lexicais por frase (207 palavras em 40 períodos). As colocações em “Alta Áustria“ são, sem exceção, faláveis/pronunciáveis, respiráveis e encenáveis. Isso vale para o original bem como para a tradução brasileira.
Sobre um projeto teatral da “Oficina Cultural Oswald de Andrade“ a partir da peça, a web-site informa que “o projeto teve vida curta”. “Cidade Alta” (foi a tradução do título) e “O Ninho” foram apresentados em 2003 no Festival de teatro em São José do Rio Preto (com base em outra tradução, de autoria de Christine Röhrig).

No Brasil, a peça de Kroetz não fez sucesso. Acho que isso independe da tradução. Pois, parece-me ingênuo investir num desafio de tal proporção justificando que “as problemáticas levantadas em terreno alemão têm diversos pontos em comum com nosso meio.”  Kroetz provavelmente só funciona onde diretor e equipe ousem com liberdade e enfrentem a ideia da partitura. No caso de Kroetz, fidelidade e até respeito ao texto original são inoportunos; um texto como Oberösterreich não se presta como documento histórico de teatro, mas requer atualizações radicais, sejam elas temporais sejam elas locais.
A uma abordagem que pode vingar se propõe o programa do Turmtheater na cidade de Regensburg: “Para tirar deste texto conciso e bem escrito (…) o tom antiquado da época pós-68 nós tornamos a peça grotesca: os atores são bem mais velhos e atuam longe de qualquer ‚realismo de cozinha‘.”  Assim pode funcionar: o texto como impulso, impulso que, por sua vez, exige radicalização coerente com a sociedade moderna, que superou muitos dos tabus da sociedade de 40 anos atrás. As condições de vida daquela época tinham valores estáveis e normas inflexíveis que hoje em dia se transformaram. E quanto à adaptação no Brasil? O Brasil não precisa de um Kroetz de 1972, mas de um teatro próprio que combine com as demandas da atualidade e dê conta dos conflitos conhecidos. Enquanto existe a “classe F“ com salário inferior a 200 reais por mês, enquanto 10,4 por cento da população dispõe de 44 por cento da renda nacional  – não é necessário ir tão longe para se criar teatro.

Uma utopia poderia ser um teatro brasileiro socialmente eficiente que incorpore, através de traduções, impulsos do mundo inteiro desenvolvendo aspectos especificamente brasileiros contemporâneos.

Bibliografia
HÖRMANNSEDER, FABIENNE (2008), Text und Publikum. Kriterien für eine bühnenwirksame Übersetzung im Hinblick auf eine Kooperation zwischen Translatologen und Bühnenexperten. Tübingen: Stauffenburg Verlag Brigitte Narr.
KROETZ, FRANZ XAVER (1972), Oberösterreich. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag. (OÖ)
KROETZ, FRANZ XAVER (1979), Alta Áustria. Porto Alegre: Institutos Goethe do Brasil. Übersetzung: Grupo de Tradutores do Instituto Goethe de Curitiba. Titel des Originals: Oberösterreich. (AA)
FRANZ XAVER KROETZ (1979), Linha de Montagem. Porto Alegre: Institutos Goethe do Brasil. Übersetzung: Grupo de Tradutores do Instituto Goethe de Curitiba. Titel des Originals: Mensch Meier.
KROETZ, FRANZ XAVER (1980), O Ninho. Porto Alegre: Institutos Goethe do Brasil. Übersetzung: Heidede Emily Liede. Titel des Originals: Das Nest.
KROETZ, FRANZ XAVER (1982), Nem Peixe, nem Carne. Porto Alegre: Institutos Goethe no Brasil. Übersetzung: Tania M. Bernkopf e Betty M. Kunz. Titel des Originals: Nicht Fisch, nicht Fleisch.
SNELL-HORNBY, MARY (1993), „Der Text als Partitur. Möglichkeiten und Grenzen der multimedialen Übersetzung“, in: Holz-Mänttäri, Justa/Nord, Christiane (Herausgeberinnen), Traducere Navem. Festschrift für Katharina Reiß zum 70. Geburtstag. Tampere: studia translatologica.
WALLACE, DAVID FOSTER (2010), TV der Leiden – The Suffering Channel. In: Vergessenheit – Storys. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt 2010. Übersetzung: Marcus Ingendaay.

* Professor de língua e literatura alemães na Universidade Federal de Santa Catarina em Florianópolis e atua nos cursos de Pós-Graduação de Linguística e Estudos da Tradução. heidermann@gmail.com