Rimbaud, como teatro – Fellipe Cosme de Oliveira

RIMBAUD, COMO TEATRO[1]

 

Fellipe Cosme de Oliveira[2]

Arthur Rimbaud

Arthur Rimbaud

 

Em Barco Bêbado[3], de Rimbaud, os cruéis peles-vermelhas salvam o barco-poeta dos rebocadores. Esses rebocadores são espetados nus em postes multicores. O barco, agora, pode estar livre. O que é essa liberdade para a poesia e para o poema? Comecemos aqui a traçar alguns caminhos. Como pode chegar essa liberdade/autonomia do poema a traçar-se como teatro?

A ação de saída do verso e a saída do conhecimento racional, não são ações propriamente ditas, e sim gestos autorais de uma conservação de si em um estado intermediário. No entanto, isso acontece somente como ficção, pois sair do âmbito artesanal do verso é um gesto de abandono da própria intenção de autonomia da poesia. Ao operar essa passagem, talvez, uma outra pergunta seja mais pertinente do que a de questionar-se pelo que a poesia não é, portanto, deveríamos nos perguntar se a poesia deveria ou não produzir um ato tão radicalmente autônomo?[4]

Para pensar um poema que passe a ter essa “autonomia”, que se pergunta Susana Scramin, devemos, quem sabe, pensá-lo primeiramente como imagem, usando para isso referencial teórico de Didi Huberman, Walter Benjamin, como bem diz Raul Antelo, em sua justaposição acerca da imagem:

Quebradas as pontes entre um poema e os outros poemas, ou entre poemas e as imagens, e até mesmo entre elas mesmas, porque cada imagem pode ser, não só um indício de outra imagem, mas a parceira de um poema, só nos resta remontá-los (e remontá-los) para produzir novas descargas esclarecedoras. É o que tentam herdeiros da linhagem Mallarmé-Benjamin, como Jean-Luc Godard ou Georges Didi-Huberman. De um lado, o poema, conjunto autônomo, fechado em si mesmo, é uma construção heterogênea, mas é também um bloco compacto de recusa ao semelhante e trivial, ao espectador.[5]

Para falar de Godard, Ranciére discute a questão da imagem pensativa, produzida por seu filme História(s) do Cinema:

Significativamente, é a mesma operação que Godard pratica sobre suas imagens do mesmo Hitchcock, uma vez que nas  História(s) do cinema ele subtrai aos encadeamentos dramático funcionais do cineasta os planos de objetos – o copo de leite em Suspeita, as garrafas de vinho do Interlúdio [Notorious, 1946] ou as lunetas do Pacto sinistro [Strangers on a Train, 1951], que ele transforma em naturezas mortas, em ícones auto-suficientes.[6]

As imagens produzidas em Barco Bêbado, como diz Raul Antelo, são indícios de outras imagens, e esse desmonte para servir, por exemplo, a uma possível colocação das imagens produzidas por cada verso, numa projeção de imagens num quadro, como o queria Didi Huberman também, em seu Atlas Mnemosyne warborguiano, numa junção de imagens para entender uma questão, de forma arqueológica. Cito-o para também pensar o poema de Rimbaud e suas imagens, atravessando o poema transversalmente, para enxergá-lo.

El atlas Mnemosyne fue, en manos de Aby Warburg, como un gran poema visual capaz de evocar o de invocar con imágenes, sin por ello empobrecerlas, las grandes hipótesis que proliferan en el resto de su obra: tanto en los artículos publicados, con sus laberínticas notas infrapaginales, como en los innumerables borradores manuscritos y, en general, en todas sus herramientas de trabajo, cajas de fichas, esquemas, fototeca, y hasta en la clasificación de su biblioteca.[7]

Em leitura do Barco Bêbado, Furio Jesi relata duas imagens que se dialogam, como miragens de não-responsabilidade do infantil, diante do super-reino dos sacrifícios adultos.

A poesia está encerrada entre duas miragens, a do sacrifício dos adultos, mortos pelos peles-vermelha, e a da pequeneza e da fragilidade não responsáveis (de uma coisa minúscula e frágil nas mãos de uma criança). Ambas são miragens de não-responsabilidade: na miragem inicial é a criança- -coisa que tem a visão da não-responsabilidade adquirida graças à morte sacrificial dos adultos. Na miragem final, é a coisa-da- -criança que, como uma criança, tem a visão de um reino onde há soberanos crianças e súditos crianças, l’“enfant accroupi” e o “bateau frêle”. De um reino, portanto, onde a responsabilidade seja apequenada à medida das brincadeiras infantis e a fragilidade por excesso seja uma objetiva liberação da responsabilidade, dentro do quadro de uma natureza por trás da qual se escondem a Europa, os “anciens parapets”, os adultos. Se a natureza das “incroyables Florides” é estranha aos adultos (e por isso, justamente, “incroyable”), a da Europa é quase uma expressão dos adultos. Para o “enfant accroupi”, tanto a “lache noire et froide”, quanto o “crepúscule embaumé” são expressões ambivalentes do super-reino que os adultos gerem como moldura de horizonte do seu reino.[8]

É longo o percurso meu para pensar o poema como teatro. Acredito que a busca comece através de pensar como as imagens de cada verso produzem imagens que não se cristalizem, e que também não se evaporem, mas que possam invadir o espaço da mente de quem as escuta, assim como quando a palavra “performa” e tem presença no teatro. Aí, começa a se estabelecer o teatro, na mente.

A palavra “presença” não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa “presente” deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. Assim, uso “produção” no sentido da sua raiz etimológica (do latim producere) , que se refere ao ato de “trazer para diante” um objeto no espaço. Aqui, a palavra “produção” não está associada à fabricação de artefatos ou de material industrial. Por isso,”produção de presença” aponta para todos os tipos de eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos “presentes” sobre corpos humanos. Todos os objetos disponíveis “em presença” serão chamados, neste livro, “as coisas do mundo”. [9]

Essa imagem – ou imagens produzidas como teatro – pode inicialmente ser a dialética, de Benjamin, ou a pensativa, de Ranciére, mesmo dentro do verso, e não somente quando ela é uma proposta para uma imagem fixa, palpável, como a fotografia, ou a imagem de um filme. A pergunta reside em saber o porquê de se pensar o poema como teatro. Será que o teatro já não se pensa por si só? É preciso que o poema pense para, com essa articulação de pensares justapostos ou que dialogam como imagens dialéticas, proponha ao teatro, outra articulação mimética e estética? O poema de Rimbaud como um poema pulsantemente pensante, que interrogue o teatro, para o que ele diria, além de uma simples enunciação das palavras; mas um atravessamento, como propunha Artaud, para múltiplos lados, com múltiplas vozes dissonantes, ambíguas, ou como o poema Galáxias[10], de Haroldo de Campos.

Como chegar a essa resposta, partindo de uma análise de discurso[11], ou de uma análise de conteúdo? É preciso discutir o que está inserido dentro de Barco Bêbado, e como trazer à torna essa análise para o campo da história da crítica literária, citando quem sabe, Mallarmé, da época de Rimbaud, e trazendo e poema do poeta para ser enunciado na contemporaneidade, como algo que sobrevive ao tempo da Poesia, para pensa-lo no agora, através da análise de suas imagens. Adilson Florentino coloca a possibilidade da construção de conhecimento no campo da arte, como vemos a seguir:

As diversas abordagens metodológicas utilizadas no campo teatral, desde a semiologia, a historiografia, a análise documental, a etnografia, a análise do texto dramático etc., devem estar assentadas numa fundamentação epistemológica que dialogue com a filosofia da ciência atual, bem como devem situar a articulação teoria-prática no âmbito da riqueza de recursos e procedimentos empregados pelo campo artístico, como um pressuposto para fazer a crítica à ciência rígida e tradicional.[12]

A dificuldade em situar o objeto dessa pesquisa num campo universalista, é aqui descrito por Florentino, ou seja, será sempre um convite a um certo tipo de leitura dos versos de Rimbaud, quando este é abordado mediante o diálogo contínuo com alguns teóricos da arte. Não me proponho com essa pesquisa catalogar Rimbaud, mas dialogar com ele, para desse diálogo entre versos, imagens, se possa compreender mais lacunas da subjetividade produzida, destruída, para o humano. Vejamos Florentino a seguir:

O ponto de partida dessa reflexão se encontra necessariamente no problema do objeto formal do saber teatral, ou mais precisamente nas propriedades do objeto teatral. O teatro se ocupa de uma realidade inteligível que o pesquisador aspira apreender como sujeito. O problema do sujeito entendido como propriedade do objeto teatral deve ser uma das questões centrais proposta pela epistemologia do saber teatral. É preciso reconhecer com clareza que o objeto formal do teatro é sempre singular e não universal. Isso coloca algumas dificuldades para situar o discurso sobre o teatro no interior dos diversos saberes científicos.[13]

A intersecção de outras áreas de conhecimento – pintura, fotografia, música, poesia, teatro, dança -, num diálogo ciência/arte também, que possibilite construção de conhecimento, não como um unificador de uma forma unívoca de uma verdade entre essas abordagens, mas como linguagens que se intercalem, modulem, entrem e saiam de frequência, como as ondas de rádio, e me guiar, para o que a poesia diga ao teatro e vice-versa. Novamente, retomo a Adilson Florentino:

O teatro pode se constituir num campo próprio de investigação que deverá dialogar com os conhecimentos produzidos por outras ciências na medida em que possui possibilidades teóricas de estabelecer limites epistemológicos e metodológicos que lhe dêem legitimação como um campo específico de investigação no contexto das artes. Para levar a cabo tal empreendimento são necessárias várias premissas, uma delas é a existência de uma comunidade acadêmica que comungue deste objetivo a partir da elaboração de uma estratégia acompanhada de um processo de reflexão e produção de investigações concretas, de modo a estabelecer os requisitos necessários para a constituição de um corpo teórico relativamente estável.[14]

Outros campos da interpretação, encontra-se no que fala Adriano Holanda, em seu artigo “Questões sobre a pesquisa qualitativa e fenomenológica”:

Moustakas (1994) destaca dois modelos que Creswell (1998) não aborda: a hermenêutica e a pesquisa heurística. Principiaremos pela Hermenêutica. O vocábulo “Hermenêutica” advém do grego hermeneutikós, que por sua vez deriva do verbo hermeneuein, que significa “interpretar”. Originalmente é um termo derivado da teologia, designando uma metodologia de interpretação dos textos bíblicos, passando posteriormente a designar um esforço de interpretação de um texto difícil. Contemporaneamente, costuma designar – na filosofia – a reflexão sobre os símbolos, como temos em Paul Ricoeur (Japiassu & Marcondes, 1990). Para Abbagnano (1986), por “Hermenêutica” designa-se qualquer técnica de interpretação.[15]

Interpretar, justapor, dialogar – estratégias do dizer, que são ativas, sendo que toda proposição conduz-me a um caminhar da arte que me traz a um certo posicionamento político diante do homem e do mundo. Augusto de Campos[16], quando traduz Barco Bêbado, pensa esse Rimbaud como um dos grandes inovadores da linguagem poética de seu tempo, porque o faz pela “violência do seu vocabulário”, “corrói os limites entre e prosa e poesia”. Se “a poesia de Mallarmé é implosiva, a de Rimbaud é explosiva”. Essas duas abordagens discutem o que caracteriza a apropriação humana de conhecimento e cultura – a linguagem. Valery dizia, segundo Campos, que “o trabalho de um escritor deveria ser mensurado pelo rigor de suas recusas”. Voltemos a Rimbaud:

[…]

Da Europa a água que eu quero é só o charco

Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,

Um menino tristonho arremesse o seu barco

Trêmulo como a asa de uma borboleta[17].

 

[…]

O poeta, dentro de seu barco, de sua “poesia como pensamento” e, por assim, “construtora e fruidora do pensar”, vai rumo ao desconhecido, longe do Continente histórico, cultural e filosófico que o construíra – a Europa. Dessa Europa, Rimbaud quer apenas o charco, as imundícies, o que é de mais sujo e sórdido, a “crueldade” posteriormente, de Artaud. Artaud queria retomar a crueldade, mostrar novamente os olhos perfurados de Édipo, ao encarar o irrepresentável (Ranciére)[18]. Esse barco vai se estraçalhar, para destruir-se, para findar o poema, em “fim da arte” (Hegel), mas ainda a métrica e rima pulsantes de Rimbaud o assinalam dentro dessa Europa higiênica e Aristotélica. Como sair, buscar essa autonomia, através do poema, como a questão acima da pesquisa? Rimbaud nos responde com o arremessar do barco, da vida e da linguagem a esse crepúsculo violeta – esse barco trêmulo que irá estraçalhar-se e findar como a asa de uma borboleta, sutil, trágica e num instante rápido de vida. Um barco jovem destruindo-se feito borboleta, para renascer, como em “A estrela chorou rosa”. As cores rosa, ruivas mostram a Rimbaud a possibilidade de morte heróica, pulsante, enquanto as outras cores negro e branco conjugam termos mais distantes a ele, como o Infinito e o Homem – e por isso, menos importantes, porque “Il bambino non è soltanto più vicino alla morte di quanto lo sia l’adulto, poiché è piú vicino alla nascita e dunque al limitare della non-esistenza. Egli è, piú dell’adulto, vicino alla morte, poiché la morte puó coipirlo più facilmente.” (JESI, 1996, p. 14)

 

REFERÊNCIAS

 

BIRKENHAUER , Theresia. O tempo do texto no teatro. Colóquio Transformações Dramáticas na Universidade de Rouen publicada em 17 de novembro de 2005. Trad. Stephan Baumgärtel.

CAMPOS. Augusto. RIMBAUD LIVRE, São Paulo, Perspectiva, 1992.

CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo: historia del arte y anacronismo de las imágenes. Traducción de Antonio Oviedo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.

______. Atlas: ¿cómo llevar el mundo a cuestas? Madrid: Museo de Arte Contemporáneo Reina Sofia, 2011.

FLORENTINO, Adilson. Teatro e epistemologia: crônica de ua relação no campo do conhecimento. OuvirOuver, n.3, 2007

HOLANDA, Adriano. Questões sobre pesquisa qualitativa e pesquisa fenomenológica. Análise Psicológia. 2006

JESI, Furio. Lettura del “Bateau Ivre” di Rimbaud. Macerata: Quodlibet,1996. Tradução de Fernando Scheibe e Vinícius Honesko. Outra Travessia. Programa de Pós Graduação em Literatura – UFSC. 2015.

GUMBRECHT. Hans Ulrich. Produção de Presença: O que o sentido não consegue transmitir. Tradução: Ana Isabel Soares. Contraponto. Editora PUC-Rio. 2004

RANCIÈRE, Jacques. La fable cinématographique. Paris: Le Seuil, 2001. Texto original em Francês, tradução para o português de Luiz Felipe G. Soares. Texto original feito para o seminário “La mirada del filosofo. Cine y pensamiento en el cambio de milenio”, organizado por Doménec Font na Residencia de Estudiantes de Madrid, no dia 20 de novembro de 2000.

_________. O destino das imagens. Rio de Janeiro. Contraponto, 2012.

SCRAMIN, Susana. Alteridades na poesia brasileira contemporânea. Entre o outro, o ser e o agir. In: Alteridades na Poesia. Riscos, aberturas e sobrevivências. 1 ed – São Paulo: Iluminuras. 2016.

 

Pesquisa qualitativa: Análise de discurso versus análise de contéudo

 

[1] Texto apresentado para a disciplina de Metodologia da Pesquisa em Teatro, ministrada pela profa. Dra. Tereza Franzoni. Florianópolis, 23 de maio de 2016.

[2] Mestrando em Teatro, pelo Programa de Pós Graduação em Teatro – PPGT CEART/UDESC

[3] CAMPOS. Augusto. RIMBAUD LIVRE, São Paulo, Perspectiva, 1992.

[4] Susana Scramin, 2016, p. 90.

[5] Raul Antelo, 2016, p. 95, In: SCRAMIN, Susana

[6] Jacques Ranciere, 2000, p.15.

[7] Didi-Huberman, 2011, p. 60

[8] Furio Jesi, 2014, p.71

[9]Gumbrecht, 2004, p. 13.

[10] Haroldo de Campos, 1983.

[11] Pesquisa qualitativa: Análise de discurso versus análise de contéudo

[12] Adilson Florentino, 2007, p. 156.

[13] Adilson Florentino, 2007, p. 161.

[14] Idem. 2007, p. 168

[15] Adriano Holanda, 2006, p. 367.

[16] Augusto de Campos, 1992, p. 20 e 21.

[17] Trecho de Barco Bêbado, com Tradução de Augusto de Campos, 1992.

[18] Jacques Ranciére, 2012.