“Mulato? Claro? Pardo? “Branco”?Ser negro ou não ser negro, eis a questão!” – Roberta Lira

“Mulato? Claro? Pardo? “Branco”?Ser negro ou não ser negro, eis a questão!”

 

                    Roberta Lira (Roberta C. Araújo de Lima)*

“Sempre que vejo algo relacionado à cultura negra e mesmo tentando construir minha negritude,

ainda é muito difícil me sentir imersa neste mundo. E me pego novamente pensando como quando

criança e me perguntando: será mesmo que eu tenho o direito de me apossar ao que me é de direito?

Se é mesmo meu direito, o que me impede, que força é essa que  não me deixa ser livre?”

(Inspirado no texto:”Fragmentos de descobrir-se negra” de Gabriela Pires, 2015)

 

Nina Simone

Nina Simone

https://www.youtube.com/watch?v=D5Y11hwjMNs

Nina Simone Feeling Good

Origem negada,

Afro negro de pele clara,

No Brasil generoso, com quem passou bem pela “embranquecigenação”

Ser negro ou não ser negro? Eis a questão!

Pertencimento desconhecido, identidades dilaceradas,

Corpos embranquecidos sendo claros ou não,

Mas eu sou claro? Branco? Será que negro? Não, então talvez pardo!

Quem é branco me vê negro,

Mas me absorve e me aceita de acordo com a ocasião,

Quem é negro, “negro mesmo” e escuro

Mesmo eu sendo claro, tranquilamente  me vê e sabe que sou eu, mais um negro.

E quantas vezes queria eu seguir, ali certo de ser negro, ah…

Como eu queria ser,

Mas quando chego ao “mundo dos branco”…vejo que logo fujo

É mais lógico, bom e seguro,

 

Ser assim, eu “branco”!

Tranquilo, sem dor, maltrato e outras coisas que prefiro nem saber ou lembrar,

Mas há tantas coisas lindas e fortes que me puxam

E eu queria ser simplesmente bem escuro e legal como o tio Geraldo.

E se pudesse até mais escurão, porque na verdade junto da família,

Lá nós, somos nós.

Com eles esqueço todas estas mazelas do mundo e sou negro,

Mas logo volto a realidade ao trabalho, a universidade, a roda de amigos, ao clube,

E tudo isso porque posso, pois sou claro e muitas vezes me acho e me sinto como os brancos,

Como muitas vezes me falam, eu mesmo ser e é isto para mim,motivo de muita confusão,

Mas sempre me pego indo ao encontro de minha africanidade,

Que existe em mim, forte, tão gritante, que sei ser herança viva,

Que flui naturalmente em meu pai e em meus irmãos, talvez pela força  da cor acentuada,

Que talvez seja pecado eu sentir, mas que por vezes até a inveja bate em mim,

Por ver entre eles tanta afeição negra que não sei explicar e que sinto existir,

Mas por ser claro não me sinto tão negro, porque por vezes me sinto tão mesmo… até branco.

E que por minha clara pele e alguns traços na face, iguais aos de minha mãe,

Me podem fazer  passar tranquilo, por um belo branco em acensão!

Mas é preciso cautela, sem que eu deixe quaisquer vestígios da dependência química de meus “duros” cabelos,

Que até gosto, mas alisei para não tem mais incomodações,

Já que nos tempos da escola me chamavam de cabelo de “nêgo” e “bombril quer sabão”

 

E hoje como é moda e mais apresentavél

Os tenho lisos, uma exigência para minha posição.

Então sou eu branco? Pois, me tratam como um deles, quando com os brancos estou em comunhão.

Principalmente quando estou sem pai, tio, avós e irmãos que trazem a África em todas as suas manifestações.

E isto é o que mais me mata por dentro, o “lugar de cada um”, como nitidamente sei haver no “mundo branco”

E conheço tal tratado interno e onde sei ser traçada, tal demarcação.

A separação, a rejeição, a desarmonização, as falsas relações, os iguais com iguais, enfim a discriminação

 

Porém, desejo o sucesso que sei que para isto, os caminhos para o negro não são fáceis não,

Mas…quero também toda a alegria e valores fortes que trago de casa, a cultura e tudo mais,

Que são puro repasse ancestral, fundamental para a vida como diz meu avô João!

Sou claro, branco!? Mulato? Negro ou Pardo? Ser negro ou não ser negro eis a questão!?

Por que para quem é negro e escuro, sabe o que se é

 

E esta tudo certo, não tem dúvida não!

É negro e pronto!

Não se nega a cor da pele explícita, por que é visto, é tido, é negro e ponto!

E com tudo isto no meio desta confusão, num sistema social estranho de viver e ser irmão,

De mim, meus irmãos de cor, negros mais escuros,

Pelo meu limbo ou por meu processo confuso de pertencer

 

E viver com a indecisão que estou,

Meus irmãos podem sofrer de mim discriminação e  ver minha negação do que sou!

E por vias de continuar a negar minha origem, que grita em mim tão fortemente

E se preferir seguir embranquecendo

Ou mudar de vez e me descobrir, me aceitar e florescer eu negro claro sim, como o tio Clóvis,

Enquanto eu vivo no meu limbo, podem eles sim, deste

Confuso ser, “negro-branco” do país do  mito da democracia racial,

 

Que hoje sinto e sei que estou,

Podem eles de mim, e podem sim,

Eles negros também sofrerem discriminação.

Quem é negro claro, “negro branco” como eu,

Pode então não se sentir negro

Pela falsa criação do “ser negro” ou de como este pode “dar aceito” pela branca imposição,

Ou de como “pode e deve ser” este cidadão que nesta estranha lógica,

 

“Tem menos valor” por sua cor,

E cair no engodo atraente e ilusório da miscigenação, da aceitação dela que:

Elege o “branquíssimo” como modelo certo social; com cabelos, pele, traços, corpo,cultura , nível social, origem continental  ideal

Dá lugar ao “branco” misturado, livre de suas heranças corporais, de qualquer geração afro e indígena, ainda que camufladas,

Aceita o encardido como coloca Vainer, que penso ser o “branco negro”, claro, mulato!? Ou oque pode passar por branco,

Mas é ele, o negro de pele clara, acolhido se não fizer “negrisses”, nem ter jeito de “preto”,

Ou estar associado a muitos negros, ser e se comportar  como brancos, ser arrumado, claro, esta dentro do “meio branco”!

E assim “convivem bem” com os “pretos e com outros não brancos”,

E mantém uma falsa harmonia nas relações sociais,

Onde a miscigenação, marco fundante da nação, que só descobri lendo outro livros, que não os da colonial enganação,

Que entregam a falácia brasileira do velado e cruel racismo vilão,

Ele o proibido pelos brancos de se falar, o racismo que separa pela farsa da “raça”

Cada humano e diverso irmão,

Ele que logo, foi denunciado a mais de cinquenta décadas pelo dedicado Florestan

Racismo que escondido, da massa e bem cuidado, atua velado, para não mudar o plano de crescimento da nação.

Tudo isto que mexeu com as identidades e as possibilidades, de ser e de ascender de cada cidadão

Onde uma nova estrutura escravista se fundou pós abolição e com o mito de uma democracia racial,

Passou a determinar quem “poderia estar em determinado lugar”, e “ser o que se impõem”,

 

Nesta nação, pela cor de cada ser irmão.

E tudo isto, em algum momento de cada tempo, de cada povo e de cada pessoa,

É preciso que se coloque em questão!

E divagando sem divagar, você ainda sente uma maior confusão

E me pergunta onde esta a razão e relação de tudo isto,

Com minha grande inicial confusão, que transponho a problemas da nação!?

Mulato? Claro?Branco?Pardo?Ser ou não ser negro? Eis a questão!

 

Tudo isso nos afetou milhões de vida e vejo que a uns vem privilegiando a vida,

Já a outros vem retirando parte dela ou em muitos casos retiram ela em si e ninguém se dá conta como deve.

E estas tantas descobertas mudaram minha vida, mudaram meus rumos,

Minha forma de sentir-me vivo e me ver no mundo.

Ainda que não consiga contemplar o todo, preciso cuidar de mim,

E se puder dos que me cercam

Algo tão complexo, que parecia ser problema só meu,  foi criado por ganância de outros cidadãos brancos

E o dilema aparece, quando o problema de uma terra se transpõe aos corpos e vidas da geral população!

Que segue as vezes, sem notar a complexidade toda mas sente a raiz do problema na veia.

E agora me resta a decisão, que antes sentia como um questionamento pertubador,

Hoje em meu íntimo difere a sensação e sinto ser ele forte impulso libertador,

Ser negro ou não ser negro?

Para mim agora sinto tomar nova dimensão,

Desejo ser negro e enfrentar o problema  proibido, o tal racismo, que vem de muitos brancos,

O problema que me fez ficar no meio do caminho, que alterou e sangrou vidas,

E sem saber quem eu era, me sentindo ora superior e ora inferior, ora podendo ora proibido,

O problema da falsa “raça”, que me ronda sem que eu queira e alimenta o racismo, ele o proibido de ser falado.

Enfrento para sair do dilema de ser ou não ser alguém no mundo, no meu país,

No lugar que me sinto aceito por ser claro quando ele escolhe” quem pode estar onde, e por que”,

Onde meus pais e irmãos “não podem estar e ser”

E eu se transformado, alisado, polido junto a minha mãe, podemos livres ficar,

Tudo fruto do racismo que é produzido por pessoas, comuns, com caras legais…

E que não saem atirando em negros ou queimando índio que dormem em bancos,

São racistas de cabelos lisos, rostos brancos, boas roupas, comportamentos “aprováveis”, tem boa educação muitas vezes,

Possuem cultura, sorriem, se divertem, “às vezes profanam”, mas amam e casam-se com pessoas iguais a elas:

Branquíssimas, brancas ou até com encardidas ou seja “negras brancas” como eu,

 

Negras claras, “se” de almas brancas (transformadas)!

É assim o racismo em ação de todos os dias, ele que me fez ter dúvidas e medalacerou a alma e cortou o coração,

Ele que sai muito mais do branco, que de outros não negros,

E  se mantém em ação e manutenção em prol da brancura das mentalidades,

 

Da sociedade, que camufla o restante da nação junto com  esta cruel, feia e sangrenta ideia,

Que fomenta a opressão

Desumaniza seres humanos e estigmatiza os que vem ou tem origens do africano continente

Que de toda humanidade é seu berço-mãe.

E que seguem vivendo com total proteção de violentarem insanamente suas vítimas negras, quando estas contestam a violência

Não podendo falar de racismo, o problema que mantém o privilégio de “ser branco” então,

Com vantagens econômicas e que possibilitam o poder e sua manutenção na estrutura organizada ancestralmente,

Com raiz a colonial, organizada pela herança européia,

 

Mantida pelos tantos eurodescendente que fomentaram o racismo na nação

Que mantém a farsa da inferioridade do outro, do negro e também do índio e até asiático, árabe, indiano,

Porém em diferentes proporções, principalmente, tal estrutura  se propagou mais no último século,

E sem me perder em digressões e bifurcações, onde revisito fragmentos da história, ou ao menos seus desdobramentos,

Me vejo e sinto,

Na situação que implica o que me dilacera em dúvidas de quem sou

E percebo a mim quando com os meus e me sinto negro,

A proibida contestação direta de tudo isso,

A impossibilidade de se manifestar, ainda que se manifestando arduamente cada negro contra a opressão

Cada negro que sofre opressões

E tem dor e força no coração.

E chego ao ápice de mim mesmo, de meus dilemas, de minhas fugas de meus desejos e de minhas dúvidas,

Surge um um mote, um momento único de despertar, de fazer uma  real reflexão

Que me agarro, pois sinto alivio e desejo de libertação, de algo que desconheço e conheço em mim,

E me permito parar e olhar-me a fundo, por dentro  e ao meu mundo, a minha raiz, a minha história,

Tudo isto que sempre me cercou e atormentou e violentou meu corpo, minha alma, meu coração coração e a razão

E penso: Sou eu negro? Eu? Pardo? Não? Eis a questão!!?

E me vem o desejo de seguir  minha  força de origem, minha fonte de comando

Aquela que faz pulsar meu coração e me traz marcas no corpo  e alma.

Eu negro claro, filho da rica mistura, caindo no maldito plano da negação!

Que depois descobri, ser plano traçado de extermínio de Estado de uma negra população,

Pra mim basta de tanta farsa e fábula,

Tantos sistemas de falsos poderes, normas e inversões sem real humanização!

Chega um momento na vida (saiba que ele sempre chega cidadão)

Que não podemos mais nos enganar, não

Então refleti, chorei, sento, remexi, fui e voltei, li, ouvi, me vi, senti, pedi, sorri,

Chorei muito e me resguardei no silêncio da oração.

Me senti, vi e percebi muito mais sobre mim,

Sobre quem realmente eu sou

E desde a tenra idade, que sempre em conflitos estive

Em ser eu um branco, um pardo, em ser eu negro ou não ser negro,

Eis a questão, que não posso mais sustentar  neste momento forte de transcendência que estou,

Quando acesso a realidade,

Preciso acordar e mudar,

Preciso ser eu mesmo e me deixando fluir, sinto,

E me sinto mais eu

Enfim eu,

Simplesmente eu

E sinto por dentro que negro sou,

E sinto paz e me livro da dor, do conflito do ser ou não ser,

Da aflitiva questão,

Que tanto me atormentou.

E mais livre vou…

Sentindo que esta sensação nova vai ter peso

Se eu seguir tal posição,

De deixar-me seguir a fluidez da imerção

De tornar-me negro então,

Pois já não me importo com o mundo ou com os brancos equivocados e maus,

Hoje me coloco, só por aquele mote, um momento x de reflexões

Que juntou fragmentos de uma vida de pura questão e

Vi que é caminho sem volta

Abertura de portal,

Que me ilumina a alma, a mente, o corpo e o coração

Transformações interiores

Exaltações exteriores,

A minha paz no novo caos!

Vejo novas perspectivas e realmente me sinto eu,

Me sinto bem e me vejo melhor,

Saio do limbo e

Sereno meu coração,

Sinto me belo, em ser negro de pele clara, que há quem diga ser branca ou eu mesmo ser um branco,

Mas já não me importa, nem gera mais questão,

Sou mais livre e consciente,

Pois não há mais enganos dentro de mim no país da embranquecigenação

Sem ser branco, sendo negro

Negro sim, sou!

Sinto em mim agora força da recém conhecida Victória Santa Cruz, que há de me dar novo vigor!

Entendo a cada dia algo novo, estou mais vivo

E renasço, pois me entendo, pertenço realmente a algo vivo, bom e ideal.

Sob minha minha identidade e minha africanidade agora me descubro e vivo

Por este belo processo amigo de libertAção,

Sigo em paz meu caminho, comigo e pelo mundo

Sem mais bradar pelos quatro cantos, em meu mundo íntimo o ser negro ou não ser…

Seguro e feliz de ser negro sim, de descobrir-me negro e tornar-me negro,

Tal qual elucidações que acesso de Neusa Santos e feliz a ela só agradeço,

Por me ajudar a libertar da alucinação que me manteve em cativeiro,

E que agora, me descreve e vê meus sentimentos mais profundos

Sigo livre sim, negro sim!

Por sim força Divina que com sua força me iluminou e

Sou transcendência, beleza e vida em meu corpo negro, diverso e rico

Sou tudo que há de bom e simples,

Um ser humano que segue agora mais lúcido,

Por ser uma vivida

Consciência negra em construção…

 

* Cantora, Musicista, Profª de Expressão Vocal
Acadêmica do Curso de Artes Cênicas da UFSC

Diretora de Projetos, Arte e Cultura do Coletivo Kurima – Estudantes Negros e Negras da UFSC
Diretora do Projeto de Extensão Vozes de Zambi: Expressão Vocal e Consciência Negra na UFSC
(48) 9914.2493