“O corvo” de Alison Silveira Morais – André Luís Leite de Menezes

“O corvo” de Alison Silveira Morais

André Luís Leite de Menezes* [2]

 

O poema The Raven, escrito pelo estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), teve sua primeira publicação no Jornal Evening Mirror, em início de 1845, e desde então ganhou a atenção de nomes como Charles Baudelaire, Machado de Assis e Fernando Pessoa, que se empenharam na árdua tarefa de traduzir as palavras do icônico pássaro e seu eterno e melancólico nevermore.

Se o ofício de qualquer tradução literária já abarca por si só uma série de questões complexas que vai muito além da simples transposição linguística de uma determinada língua para outra, a tradução de poesia acrescenta um desafio ainda maior por exigir do/a tradutor/a manter um equilíbrio harmonioso entre significado e significante, o que vale dizer que manter a forma, a rima e a disposição das palavras é tão imprescindível quanto o que elas dizem, o seu conteúdo.

No caso de The Raven, como manter as diversas aliterações, a musicalidade, a estranheza, toda a beleza das rimas duplas, triplas e o estilo único de Poe? Seria então possível retomar a “unidade de efeito” a que ele próprio alude em seu ensaio A Filosofia da composição e recriar o poema em outro idioma utilizando-se de sua mesma lógica-metódica-analítica? Até que ponto a tradução conseguiria manter tais elos e corresponder-se com a versão em inglês?

A tradução que ora discutiremos certamente tomou um caminho muito mais criativo e intrigante: trata-se de O corvo, realizada pelo escritor, tradutor e ilustrador Alison Silveira Morais, também bacharel em Letras – Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em seu projeto tradutório, o poema de Poe é reconstruído no dialeto manezinho (ou manezês), que é o nome usado para se referir à variante linguística das comunidades interioranas e pesqueiras de Florianópolis. Assim como Franklin Cascaes, autor de O fantástico na Ilha de Santa Catarina, Morais optou por lançar mão de uma escrita fonética, privilegiando uma linguagem menos formal e carregada de referências culturais e regionais, no lugar de manter rimas como as de door e more, ou as aliterações de nodded, nearly, napping, por exemplo, logrando em trazer para um contexto completamente diferente daquele em que foi escrito toda a melancolia e beleza do universo poeano.

Neste aspecto, a tradução de Morais é extremamente rica ao reproduzir diversas características fonéticas, morfossintáticas e lexicossemânticas do falar nativo açoriano, privilegiando uma escrita muito próxima da oralidade, como se fossem palavras ditas por um próprio pescador da ilha (é o caso da palatização de /s/ e /z/ em máx ‘mais’ e vêx ‘vez’, por exemplo). A tradução consegue, assim, fazer uma nova e criativa leitura de Poe, ao valer-se de uma linguagem tipicamente açoriana, conseguindo trazer várias referências regionais, entre elas a transformação da estátua de Palas, um dos nomes de Atena, a deusa da sabedoria na mitologia grega, na padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.

Chama-nos a atenção, todavia, a presença de um corvo na Ilha de Santa Catarina, que possivelmente poderia provocar um desvio de contexto geográfico e cultural, por se tratar de uma espécie endêmica do hemisfério norte. Então, de modo a evitar uma ruptura do público leitor com este contexto específico, a escolha do pássaro poderia ter levado em consideração uma ave comum aos nativos da região, como a gralha-azul, que assim como o corvo é da família dos corvídeos, criando uma imagem ainda mais próxima e em ressonância com todos os outros elementos da tradução.

 

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (PGET/UFSC), Bolsista CAPES.