E.E.Cummings e a poética da catábase: advérbio como imagem narrativa – Leandro Durazzo

E.E.Cummings e a poética da catábase: advérbio como imagem narrativa*

 

Leandro Durazzo**

E. E. Cummings

E. E. Cummings

Introdução

 

CUMMINGS, E. E. (EDWARD ESTLIN, 1894-1962), American poet, essayist, and artist. Known for his dramatic experiments in typography and syntax, Cummings also wrote some charming but fairly conventional fairy tales for his daughter: ‘The Old Man Who Said “Why”‘, ‘The Elephant and the Butterfly’, ‘The House that Ate Mosquito Pie’, and ‘The Little Girl Named I’ (collected in 1965 with illustrations by John Eaton). His 1932 essay ‘A Fairy Tale’ has little to do with fairy tales, but celebrates art as detached from economics and politics and even’ life’. EWH” (ZIPES, 2000, p. 118)

A crítica, mesmo internacional, ainda não abrange a totalidade da obra de E.E.Cummings, conhecido entre nós sobretudo pelas traduções de Augusto de Campos iniciadas na década de 1950 (CUMMINGS, 2012). A maior parte dos estudos sobre o escritor americano, assim, tendem a focar seus poemas, deixando a prosa um tanto quanto esquecida. Mais que isso, o estudo sobre sua literatura infantil – se assim a podemos chamar – é ainda menos central na fortuna crítica a que temos acesso, e apenas dois textos de Norman Friedman (1979; 2006) parecem lidar diretamente com essa dimensão cummingsiana.

Não é de estranhar, portanto, que o verbete em The Oxford Companion to Fairy Tales (ZIPES, 2000) que nos serve de epígrafe fale em histórias “encantadoras mas dificilmente convencionais” e tendo “pouco a ver com contos de fadas”. Fairy Tales, como Cummings intitula seu pequeno livro póstumo[1] com quatro narrativas curtas, costuma ser traduzido para o português como, justamente, “contos de fadas”. “Histórias do Belo Reino”, talvez, se quisermos acompanhar a reflexão teórica que J. R. R. Tolkien (2006) realiza com maestria.

Este texto, pequena incursão inicial no que se pretende uma tese de doutoramento, não terá qualquer intenção de esgotamento teórico ou mesmo analítico. Procuraremos, apenas, apontar pistas mitocríticas e procedimentos estéticos – e, mesmo assim, não todos, nem sequer muitos – que orbitam e nos fazem orbitar a dinâmica poética de Cummings, como a lemos. Não será estranho que nossos tópicos se fechem tão logo estejam abertos, apenas apontando o caminho na floresta da multivocidade, dos símbolos mutantes e sempre recorrentes que a narrativa mobiliza. Dado o escopo limitado deste texto, portanto, sigamos diretamente à problematização de Tolkien para que possamos, após isso, apresentar o conto de nosso autor.

 

Fairy tales, Fairy Tales e o Belo Reino

 

Tolkien está, em Sobre Histórias de Fadas, ocupado com as indicações teóricas que dizem respeito à explicação do gênero fairy tales, nossos tradicionais contos de fadas. Entretanto, britânico que era, não se deteve no que a tradição francófona e germânica – que herdamos –, de Charles Perrault aos irmãos Grimm, definiram para o senso comum do termo. Tolkien, eminente filólogo, inicia seu trabalho com as diferenciações e definições linguísticas que envolvem o tema.

Começa por problematizar a definição do Oxford Engish Dictionary sobre fairy (fada): “seres sobrenaturais de tamanho diminuto, que a crença popular supõe possuírem poderes mágicos e terem grande influência sobre os afazeres dos homens, para o bem ou para o mal” (TOLKIEN, 2006, p. 10). Definição problemática porque, segundo ele, o adjetivo sobrenatural – tônica no prefixo sobre- – diz muito pouco sobre as fadas. Diz, ao contrário, mais sobre o humano, já que as fadas, os seres do reino de Faërie[2], são parte da natureza – e aqui a distinção das tradições, indicando o substrato imaginário britânico-albiônico dos fairies como diferente da Mamãe Gansa de Perrault, por exemplo, é essencial.

Histórias de fadas, para Tolkien, teriam relação muito mais estreita com o imaginário tradicional da terra em que surgem, com os contos populares e as lendas locais, sendo seus desdobramentos literários uma espécie de abstração posterior. Suspeitava ele que essa noção de seres diminutos, “essa miudeza de flores-e-borboletas também tenha sido produto da ‘racionalização’ que transformou o deslumbramento da Terra dos Elfos numa mera sutileza” (TOLKIEN, 2006, p. 11). Histórias de fadas, nesses termos, estariam mais próximas de uma mitologia fundadora, quase de uma cosmologia, do que de um gênero propriamente literário no sentido acadêmico e erudito.

A problematização de gêneros, sobre a qual não nos deteremos, ainda apresenta maiores detalhes em nosso caso. Porque os quatro Fairy Tales de Cummnings, como indicamos, têm sua experimentação temática e estilística ora nos “contos de fadas”, ora no que seriam fábulas (segundo e terceiro contos) e, no último texto, na dimensão estética, dialógica e oralizante que o autor utiliza como centralidade da narrativa.

The Man Who Said ‘Why?’”’, conto que aqui estudamos, pode ser considerado um conto de fadas por ter, nele, um faerie oriundo do Belo Reino. Mais ainda, nosso faerie vivia na estrela mais distante e, sendo respeitado por todos os moradores “do ar e de todo lugar e das estrelas todas”, era aquele a quem todos procuravam quando precisavam ter problemas resolvidos.

Mas nosso faerie também guarda proximidade com os seres diminutos da racionalização abstrata, com suas asas douradas, olhos azuis e cabelos loiros (e sua característica de não envelhecer jamais, “porque ele era um fada e fadas não envelhecem jamais nem um tiquinho”). Do ponto de vista do imaginário literário e cultural que mobiliza, podemos dizer que temos aqui um conto de fadas e uma história do Belo Reino, embora nem um nem outro sejam – por ora – perfeitamente classificáveis. Seja como for, não estenderemos essa tentativa de classificação e, para todos os efeitos, de acordo com o título de nosso livreto, passemos à análise do fairy tale do velho homem que só dizia “why?”.

 

Procedimentos expressivos: advérbio como imagem narrativa

 

Como mencionado, o faerie respeitado e que não envelhecia sequer um tico é procurado por todos os moradores “do ar e de todo lugar e das estrelas todas” porque, sendo um faerie, era capaz de resolver todos os problemas com extrema facilidade. Note-se que os moradores das estrelas “não são, eles próprios, faeries”, o que potencialmente desloca nossa narrativa para fora do Belo Reino.

A história, portanto, começa quando o faerie acorda e vê em torno de sua estrela uma multidão de pessoas com problemas para que ele resolva. Olhando atentamente – depois de um espanto inicial e belíssimas imagens poéticas, que simplesmente ignoraremos nesta análise -, percebe que todos carregam o mesmo problema. “É o homem que só fala ‘por quê?’”, eis o problema.

Sabendo onde se encontra tal personagem – e depois de, sem sucesso, procurar verbetes em grandes livros que o ajudassem com o problema – o faerie abre as asas e parte para a lua, caminho que demora toda a noite a percorrer. Lá, por fim, no alto do campanário de uma igreja, avista o homem. Chama por ele e não obtém resposta. Voa até perto do velho e então, chamando novamente, finalmente obtém um sorriso em retorno. “O que, afinal, você está fazendo aqui?”, pergunta o faerie, e com o sorriso vem a resposta “Por quê?”.

Apresentamos, agora, algumas linhas do diálogo que se estabelece entre faerie e homem velho, em tradução nossa. Lembremos que o objetivo desse encontro é resolver o problema do homem que incomoda os demais moradores do céu, com sua resposta sempre a mesma.

 

E o homem muito muito muito muito muito muito muito velho sorriu,e olhando para o fada disse assim: “Por quê?”

 

“Porque vim até aqui desde a estrela mais distante só para vê-lo”

 

“Por quê?” perguntou o pequeno homem muito muito muito muito muito muito velho.

 

“Te conto em um segundo o porquê”, falou o fada. “Ouvi uma porção de reclamações sobre você-”

 

“Por quê?” disse o homem muito muito muito muito muito velho.

 

“Porque eu tenho ouvidos, imagino […]” (CUMMINGS, 1975, p. 12-14)

 

Não apresentaremos todo o diálogo, mas indicamos a expressividade do advérbio muito, utilizado por Cummings. A cada frase respondida, como observamos, o homem perde um de seus potencializadores de velhice – se assim podemos dizer. De um homem com sete muitos ele passa a ter apenas seis, depois cinco, até que o faerie, em uma das últimas linhas do diálogo, o ameaça:

 

“Agora, olha aqui, esta é a última vez que eu perdoo você. Ouve o que estou te dizendo: se você não parar de dizer ‘por quê’, vai se arrepender”

 

E o pequeno homem muito velho sorriu;e olhando para o fada ele falou “por quê?” e então caiu por milhões e milhões e milhões de graciosos e frescos e vastos quilômetros […] (CUMMINGS, 1975, p. 14)

 

É sabido, pelo menos desde Bachelard, que a adjetivação é dinâmica de deformação e qualificação da imagem, de seu imaginário. “Quando se encontrou a raiz substancial da qualidade poética, quando se encontrou realmente a matéria do adjetivo, a matéria sobre a qual trabalha a imaginação material, todas as metáforas bem enraizadas desenvolvem-se por si mesmas.” (BACHELARD, 2002, p. 34).

Mas E.E.Cummings, com seus experimentos tipográficos e preocupação visual, não apenas utiliza adjetivos para qualificar as imagens mas, além disso, os potencializa em uma dinâmica narrativa própria, formalmente própria. O homem não é apenas velho, mas é muito velho. E, como sabemos ao ler a poesia do autor, ele ser sete-velhos, depois seis e assim por diante, representa uma dinâmica específica que pode ser apresentada mesmo visualmente.

muito muito muito muito muito muito muito

muito muito muito muito muito muito

muito muito muito muito muito

muito muito muito muito

muito muito muito

muito muito

muito

 

A linguagem do imaginário, como nossa antropologia o considera, é também chamada de sermo mythicus, infinitamente menos classificável que o mito literário por ser, ela também, uma estrutura discursiva sempre viva e dinâmica.

 

No sermo mythicus, o substantivo deixa de ser o determinante, o “sujeito” da ação e, a fortiori, o “nome próprio”, para dar lugar a muitos atributos – os “adjetivos” -, sobretudo à “ação” expressa pelo verbo […] É o nível verbal que desenha a verdadeira matriz arquetípica. (DURAND, 1998, p. 88-89)

            Mas o nosso sermo aqui, o sermo cummingsianus, desenha seu nível verbal através do advérbio expressivo. Este, por sua vez, delinea os limites e a potência do adjetivo velho, que qualifica o pequeno homem (pequeno homem alternando-se com homem na descrição que o texto faz, retenhamos tal informação).

Pois aqui, em nosso caso, é o desenho – literalmente – do advérbio que estabelece o verbo em questão: cair. A importância do movimento verbal é apontada também por Octavio Paz, quando diz que, nos poemas de Cummings, “as árvores se abraçam, a chuva se despe, a moça reverdece, o amor é um raio a cama é uma barca. O poema é um emblema da linguagem da natureza e dos corpos. O coração do emblema é o verbo; a palavra em movimento, o motor e o espírito da frase.” (PAZ, 1976, p. 233)

O verbo, o fazer e, aqui, o movimento do advérbio evidenciam a preocupação formal e estilística do autor. Porque fazer é justamente o que ocupa sua atenção, como o próprio diz:

 

If a poet is anybody, he is somebody to whom things made matter very little–somebody who is obsessed by Making. Like all obsessions, the Making obsession has disadvantages; for instance, my only interest in making money would be to make it. Fortunately, however, I should prefer to make almost anything else, including locomotives and roses. (CUMMINGS, 1985, prefácio)

 

Tendo apresentado a importância do muito para a classificação imaginária do velho, voltemos nossa atenção ao original para prosseguir com hipóteses. O homem muito muito velho é, na verdade – em inglês -, um homem very very velho. E colocaremos novamente a disposição gráfica abaixo para desenhar o movimento narrativo que vemos possível.

 

very very very very very very very

very very very very very very

very very very very very

very very very very

very very very

very very

very

 

Se a composição gráfica e visual é importante, também o é sua ressonância acústica. Very, como potencializador expressivo do imaginário estabelecido, serve como um medidor de distância ontológica. A cada very que o homem perde ele se encontra, gradualmente, mais distante do faerie – e, talvez, de Faërie. Conforme diminui sua proximidade com o representante do Belo Reino, com o próprio reino das fadas, “do ar e de todo lugar e das estrelas todas”, o homem, o pequeno homem, se aproxima da queda. A narrativa se apresenta, nestes moldes, como uma narrativa de catábase.

Descensus ad inferos, catábase, imaginário de ida e volta

 

O que aqui consideraremos como catábase, menos que um procedimento literário com estrutura narrativa específica, é o procedimento mítico de descida a um reino inferior. Nas narrativas tradicionais – Orfeu e Cristo, por exemplo – o personagem desce aos infernos para resgatar de lá uma alma – Eurídice, no primeiro, toda a humanidade, no segundo. O posterior retorno à superfície, ao plano superior mas não excelso, configura a descida como catábase. Não havendo retorno, podemos considerar a ida apenas como morte, sem a dimensão de fechamento que a volta representa.

O homem velho que diz “por quê?”, afastado do Belo Reino e precipitado “por milhões e milhões e milhões de graciosos e frescos e vastos quilômetros”, sofre uma queda catabática. O resto dela, não apresentado na primeira citação, diz-nos assim:

 

E o pequeno homem muito velho sorriu;e olhando para o fada ele falou “por quê?” e então caiu por milhões e milhões e milhões de graciosos e frescos e vastos quilômetros(e a cada pedacinho de quilômetro ele ficava um pouco mais jovem;primeiro virou um homem não muito velho e em seguida um de meia-idade e então um homem jovem e um menino e finalmente uma criança)até que,no instante em que levemente tocou o chão,estava prestes a vir à luz. (CUMMINGS, 1975, p. 14)

 

A condição do tempo neste processo é bastante evidente, quando temos em mãos toda a narrativa. A queda do homem é seu rejuvenescimento, sua volta à terra depois de ter estado lá, na lua, por não sabemos quanto tempo. Se lá no alto podíamos vislumbrar uma infantilidade nos “por quês” do velho, pela ressonância que isso estabelece com uma fase própria das crianças, esse fim de história nos faz compreender melhor sua natureza.

A distinção ontológica e temporal se aprofunda ainda mais quando consideramos, novamente, o distanciamento entre faerie e very, pois o primeiro tem milhões de anos e nunca envelheceu nada. O outro, muito muito muito envelhecido, mantém-se próximo do Belo Reino enquanto não retorna ao mundo para nascer. Em um plano gráfico teríamos

 

Faërie

very very very very very very very

very very very very very very

very very very very very

very very very very

very very very

very very

very

Mundo humano

 

A variação entre homem e pequeno homem, que apontamos acima quando do diálogo entre os personagens, já antecipava esse renascimento, esse redimensionamento. No original, essa acepção juvelinizante – ou diminutiva, ao menos – é também evidente: old man e little old man.

O que faz com que caracterizemos a precipitação do velho homem como catábase, aqui, é sua relação implícita com a temporalidade cíclica que a narrativa apresenta. Afinal, antes de estar prestes a nascer, o bebê era um velho – na lua – e sua temporalidade presumida o levará novamente a envelhecer. Envelhecido, imaginamos que novamente será alçado às alturas – ou, considerando que sua estada na lua tenha sido um deslize, um erro cósmico de percurso (já que o faerie parece nunca ter visto nada disso antes), talvez seu envelhecimento não o leve novamente à lua, mas a algum outro lugar.

O que devemos reter é a relação que o retorno a um mundo inferior – a vida – estabelece com a dimensão mythopoiética da ligação entre instâncias ontológicas. Não pertencente a Faërie, mas bem próximo a ela, o homem desempenhava um papel questionador, um efeito analisador (PAULA CARVALHO, 1990, p. 125). Era, como sua configuração enquanto problema deixa entrever, uma personalidade anômica por excelência.

 

A anomia provoca a emergência individual do “recalcado” e do “não-dito”, sendo, pois, elisão da barra na cadeia de significação; trata-se, entretanto, do “recalcado fundamental”, ou seja, de questões que, formuladas, para elas não temos respostas e que, aos poucos, são submetidas ao trabalho da denegação ideológica. Mas o “não-dito” liberado como “palavra instituinte” (trata-se, em Guattari, da referida comutação dos “fantasmas de base” em “fantasmas transicionais” e da situação dominada dos grupos) na “marginalidade semiótica” é uma disrupção, “fenômeno imprevisível, ilógico, rebelde à tática, à política e à perspectivação histórica”. (PAULA CARVALHO, 1990, p. 123-124)

 

Avançando ainda mais, temos o velho como personalidade anômica e liminóide, já que sua inserção no céu entre as estrelas não está nem mesmo no mesmo nível dos outros personagens. Lembremos que apenas o fairie é designado assim, sendo todos os outros personagens, os “reclamadores dos problemas”, não-faeries. Não sabemos o que eles são, mas sabemos que não são da mesma natureza do homem velho que acaba encontrando a queda. Este, assim, é um

 

Ser de fronteiras, passageiro (VAN GENNEP; DUVIGNAUD) e liminoide (TURNER), personalidade anômica, consciência dissimultânea de tipo simbólico-onírica (TACUSSEL) [… que] testemunha o mistério [o “por quê?”] porque se move numa zona intermediária, estado crepuscular (SCHÄRER 86 apud PAULA CARVALHO, 2002, p. 113), de modo que seus universos simbólicos são dramáticos, confundentes. (DURAZZO, 2011, p. 84-85)

 

O homem muito velho, no trajeto lua-nascimento, vive um claro ritual de passagem, vinculando antropologicamente sua reformulação enquanto personagem a uma promoção ontológica – ainda que transicional – com o próprio leitor da história. Nancy, a filha de Cummings, mas também toda e qualquer criança, todo e qualquer leitor.

A precipitação do homem para baixo, sua catábase forçada, chega a nos preocupar por um instante, meio parágrafo, até que entendamos o procedimento estilístico e narrativo de Cummings. Então, nesse momento, e sobretudo ao final, compreendemos a totalidade do trajeto cíclico que foi percorrido pelo personagem – totalidade fechada e prestes a se abrir de novo. Um final feliz, poderíamos dizer, por mais que o embate com o faerie tenha sido violento.

 

É verdade […] que o conto [de fadas] sempre se conclui com um happy end. Mas seu conteúdo propriamente dito refere-se a uma realidade terrivelmente séria: a iniciação, ou seja, a passagem, através de uma morte e ressurreição simbólicas, da ignorância e da imaturidade para a idade espiritual do adulto (ELIADE, 1994, p. 174)

 

“The Old Man Who Said ‘Why’” é uma produção literária, não um domínio da tradição. Em nosso caso, é possível apontar as inversões – ou subversões – de valores entre os pontos narrativos: morte e ressurreição não são simbólicas, mas pragmáticas, e a ignorância e imaturidade – os infinitos “por quês” – se davam justamente numa maturidade do adulto, embora não espiritual. Por essa razão, elevando a ontologia da infância a um potencial transicional, aponta-se o alcance de tal maturidade do espírito talvez no ciclo de vida que leva do humano ao faerie – e que depois se precipita, ciclo sempre metabólico porque repetitivo e diferencial.

Ou, mais propriamente, que leva também do faerie ao very very very very very very very humano. Humano, demasiado humano, diria alguém. E o tempo cíclico do eterno retorno permanece sendo a dinâmica criadora e criativa que estabelece, em e entre suas pontas, todas as possibilidades criativas e criadoras.

 

*Tradutor, foi doutorando em História e Cultura das Religiões na Universidade de Lisboa; membro do Centro Interdisciplinar de Pesquisas Sobre o Imaginário – UNESP/Araraquara. E-mail: leandrodurazzo@gmail.com

 

Bibliografia

 

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

CUMMINGS, E.E. Fairy Tales. San Diego: Harcourt Brace, 1975.

_____. is 5. New York: Liveright, 1985.

_____. Poem(a)s de E. E. Cummings. Tradução de Augusto de Campos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 1998.

DURAZZO, Leandro. Gestação de Orfeu: apontamentos mitocríticos sobre profecia etranscendência na poesia de Jorge de Lima.Recife: O autor, 2011.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1994.

FRIEDMAN, Norman. Cummings Posthumous. In: Journal of Modern Literature, Vol. 7, No. 2, E. E. Cummings Special Number. 1979, pp. 295-322

_____. Cummings, Oedipus, and Childhood:Problems of Anxiety and Intimacy. In: Spring. The Journal of E.E. Cummings Society (14-15), 2006, p. 46-68. Disponível em: http://faculty.gvsu.edu/websterm/cummings/Friedman14b.pdf. Acesso: 27/07/2013.

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.

TOLKIEN, J. R. R. Sobre Histórias de Fadas. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006.

ZIPES, Jack (org.). The Oxford Companion to Fairy Tales. Oxford: Oxford University Press, 2000.

 

[1]    Por ser póstumo, vale a ressalva quanto à intitulação da obra. Terá querido Cummings, em vida, chamar essas histórias de histórias de fadas? De Fairy Tales? Certo é que a primeira linha do primeiro conto – o que aqui nos interessa – diz “Once there was a faerie who lived on a farthest star”, mas os três seguintes não têm faeries, “fadas” de forma tão evidente. De forma alguma, diga-se. O conjunto ser intitulado Fairy Tales, portanto, pode ser problematizado de modo bastante fértil no que concerne às definições de gênero, estruturas narrativas e mesmo cenário. Procederemos a esse estudo, quando do desenvolvimento de nosso trabalho, mas por ora apenas mantenhamos esta ressalva em mente.

[2]    A tradução de para o português, muito apropriadamente, verteu esta palavra por Belo Reino: “No original Faërie, cuja sonoridade remete a ‘fair’ (‘belo’,em inglês). Por isso a opção por ‘Belo Reino’. (N. T.)” (TOLKIEN, 2006, p. 7)

 

*    Texto apresentado no Colóquio Internacional Educação, Imaginário, Mitanálise e Utopia – UFF 2013, depois publicado nos anais do SILEL 2013, da Universidade Federal de Uberlândia.