O BRANCO NO BRANCO: A EPIFANIA DE EUGÊNIO DE ANDRADE – Claudio Daniel
O BRANCO NO BRANCO: A EPIFANIA DE EUGÊNIO DE ANDRADE
Claudio Daniel*
A poesia de Eugênio de Andrade (1923-2005), eclética e universalista, recusou filiação a Presença, ao Surrealismo ou ao Neorrealismo. Ao enumerar as leituras que marcaram a formação literária do poeta português, Arnaldo Saraiva cita os gregos — “os elementos, o paganismo, o heraclitismo, a ‘melancolia estoica’ referida por Jorge de Sena”, os orientais — “o haiku, o budismo zen” e os “espanhóis da geração de 27, em especial Garcia Lorca[1]”, além das referências evidentes ao cânone da poesia portuguesa, sobretudo Fernando Pessoa. No presente artigo, vamos abordar as afinidades sincrônicas entre a escrita poética de Eugênio de Andrade e a poesia tradicional japonesa, e em especial o tanka e o haiku[2], gêneros literários que valorizam a concisão, a brevidade, a visualidade e a dimensão do sagrado, expressa na epifania. Desde os seus primeiros textos publicados, entre 1942 e 1945, Eugênio de Andrade praticou o poema breve, em especial a quadra, mas também composições com cinco, seis ou sete versos, como esta, intitulada Adágio:
O outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido[3].
Nesta notável composição não faltam a referência à estação do ano, ou kigo (elemento essencial na poesia japonesa, que “expressa em geral uma circunstância eterna, absoluta, cósmica, não-humana”, segundo Paulo Leminski[4]), a montagem cinematográfica, o mistério, a indeterminação e o paradoxo. O poema, escrito em meados da década de 1940, é provavelmente anterior à leitura de haikus japoneses por Eugênio de Andrade, o que nos faz pensar no caso de Alberto Caeiro, em que houve extraordinária afinidade temática e estética com a poesia japonesa, sem que houvesse uma relação intertextual consciente (tema estudado por Leyla Perrone-Moisés no livro Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro). Eugênio de Andrade não foi um estudioso do haiku, como Wenceslau de Moraes, Herberto Helder ou Casimiro de Brito, mas encontramos poemas breves, inclusive na forma do terceto, em muitos de seus livros, como Ostinato rigore (1964), Obscuro domínio (1971), Matéria solar (1980), O outro nome da terra (1988), Rente ao dizer (1992) e Pequeno formato (1997). As afinidades entre essa poesia, de sabor clássico e às vezes estoico, e a lírica tradicional japonesa constitui, portanto, uma situação de sincronia.
Segundo Roman Jakobson, é possível fazermos aproximações textuais de autores de diferentes períodos históricos e repertórios culturais que o olhar do presente de criação reconhece como símiles, embora sem comércio direto de ideias e formas entre eles. Dialogando com o pensamento do autor soviético, Haroldo de Campos afirma: “a literatura é o domínio do simultâneo, um simultâneo que se reconfigura a cada nova intervenção criadora[5]”. Sob este paradigma, “cada época nos dá o seu ‘quadro sincrônico’, graças ao qual podemos ler todo o espaço literário – um espaço literário onde Homero é contemporâneo de Pound e Joyce” (idem). Concluindo, escreve o autor brasileiro: “Entre o ‘presente de criação’ e o ‘presente de cultura’ há uma correlação dialética: se o primeiro é alimentado pelo segundo, o segundo é redimensionado pelo primeiro” (idem, 22). O demônio da simultaneidade, com a sua lógica de conexões que transcendem fronteiras espaço-temporais, autoriza, portanto, a analogia[6]. A referência direta a Bashô aparece num curioso poema de Eugênio de Andrade publicado, inicialmente, na antologia Uma rã que salta – Homenagem a Bashô (Porto: Limiar, 1995), organizada por Casimiro de Brito, que transcrevemos aqui:
HOMENAGEM A BASHÔ
As cigarras ardem
nos ramos do verão
como lenha verde.
Um rumor pueril
e doce de abelhas
enganava a sede.
No cimo da torre
da praça mais branca
é que o sol se despe,
e dança dança dança[7].
Podemos ler a composição como um pequeno conjunto de haikus, ou ainda como a montagem de três “planos”, à maneira da técnica cinematográfica – que tanta afinidade possui com a escrita ideográfica, tema abordado pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein no livro O principio cinematográfico e o ideograma (1929). O primeiro terceto apresenta uma imagem simples e direta, com referência sazonal e uma ação que acontece no momento presente. O olhar do poeta está voltado às pequenas coisas da natureza, como cigarras e ramos de árvore, mostrados de maneira metafórica, que atribui um brilho virtuosístico à cena observada – “As cigarras ardem / (…) / como lenha verde”. O segundo terceto, mais intelectualizado, mantém o foco nos seres de menor dimensão do reino animal, no caso, as abelhas, mas a objetividade do haiku é perdida com a adjetivação retórica (pueril, doce) e a abstração metafórica da imagem (“enganava a sede”), figura pouco frequente na arte concentrada de Bashô e seus discípulos. O terceiro e último terceto, fortemente imagético, apresenta maior precisão de imagens, nos dois versos iniciais, e conclui com uma inesperada prosopopéia, em que o sol se despe e corre para os flancos do mar (imagem que recorda a desmesura de uma composição de Bashô: “o dia em chamas / joga no mar / o rio mogâmi”, na tradução de Paulo Leminski[8], e também os conhecidos versos de Rimbaud: “Elle est retrouvée. / Quoi? — L’ Éternité. / C’est la mar allée / Avec le soleil[9]”, aproximação textual reforçada pela última linha do poema – “dança dança dança”, citação de um poema em prosa do livro Une saison en enfer[10], traduzido no Brasil por Ledo Ivo). A intertextualidade, aliás, é um recurso verificável também na poesia de Bashô, como por exemplo no poema “Baía Kisa / Seishi dorme na chuva, / mimosas úmidas[11]”, que faz referência ao poeta chinês Su Tung-Po (1036-1101), que, nas palavras de Octavio Paz, “comparava a paisagem do lago Si Hu com a beleza de uma mulher da época, Hsi-Tzé (Seishi). Bashô, ao contemplar a baía de Kisagata, imagina a paisagem do lago Si Hu e recorda o poema chinês e Seishi”[12].
A cena criada por Eugênio de Andrade neste poema foge das convenções do haiku, mas, pela arquitetura métrica, índice sazonal, presença da natureza e pelos jogos lúdicos, próximos ao imaginário das crianças, não destoa da tradição de Bashô, a quem o poema é dedicado. O apreço do poeta português por esse pequeno conjunto de quase-haikus pode ser avaliado por sua inclusão no livro Pequeno formato (1997), publicado por Eugênio de Andrade dois anos após o lançamento da antologia Uma rã que salta. A sensibilidade poética do autor, no entanto, submeteu os tercetos a uma rigorosa revisão estilística[13], a começar pelo título, que muda para Rumores de verão, excluindo a óbvia referência intertextual do título anterior. O primeiro terceto, talvez o mais virtuosístico, foi reelaborado, perdendo um pouco do brilho original, porém ganhando maior proximidade com o espírito do haiku: “As cigarras cantam, / como no inverno / arde a lenha verde”, imagem simples e eficaz, com economia de recursos e alta definição de contornos. Já o segundo terceto sofreu a alteração de uma única palavra, que mudou completamente o seu sentido: em lugar de “Um rumor pueril / e doce de abelhas / enganava a sede”, o poeta escreve agora: “Um rumor pueril / e doce de abelhas / acrescenta a sede”, mudança imprevista que adiciona uma discreta ironia ao verso. A terceira estrofe muda completamente: em vez de “No cimo da torre / da praça mais branca / é que o sol se despe”, o poeta escreve agora: “Quando o sol avista /os flancos do mar / despe-se a correr, / e dança dança dança[14]”, substituindo a paisagem quase estática da versão anterior por uma imagem em movimento, quase cinematográfica.
Rumores de verão é a peça de abertura de Pequeno formato, conjunto de 30 poemas breves, em que predominam os dísticos, tercetos e quartetos; de todos os livros de Eugênio de Andrade, este é o que apresenta maior economia verbal. A simplicidade, a presença da natureza, dos animais e das quatro estações, a observação rara e as ações imprevistas, elementos característicos do haiku, predominam neste volume, embora poucas peças possam ser chamadas, a rigor, de haikus; talvez apenas o Jardim de Lou Lim Leoc, que diz: “Deste jardim o que levo comigo / é um ramo de bambu para servir / de espelho ao resto dos meus dias[15]”, terceto antecedido pelo dístico intitulado Templo da barra: “O verde dos bambus mais altos é azul / ou então é o céu que pousa nos seus ramos[16]”. A imagética dessas composições é japonesa, sendo o bambu uma imagem recorrente na pintura sumiê e em diversos haikus, como neste poema de Buson, traduzido por Paulo Franchetti: “Com a luz do relâmpago / Barulho de pingos – / Orvalho nos bambus[17]”. A proximidade na página entre os dois poemas, um de três versos, o outro de dois versos, sem uma relação sintática ou referencial entre eles – com exceção da palavra bambu – remete ainda à forma do tanka, gênero poético japonês formado por duas estrofes, um terceto de 5-7-5 sílabas e um dístico de 7-7 sílabas, que conservam certa autonomia e se relacionam por analogia. A justaposição de sentenças sem um nexo lógico entre elas, à maneira de uma montagem cinematográfica, é um recurso estrutural da poesia japonesa, presente no tanka e também no haiku, como neste poema de Bashô, também traduzido por Paulo Franchetti: “Um corvo pousado / Num ramo seco – / Entardecer de outono”[18]. Podemos encontrar vários exemplos dessa técnica nos poemas de Pequeno formato, como neste poema de cinco linhas, intitulado Cantam na madrugada: “À beira / d’água a luz / é em mim que tem morada: / tão longe / ainda a última barca[19]”, em que há um claro corte entre os três primeiros versos e os dois seguintes, que se relacionam de maneira metafórica, assim como as estrofes de um tanka tradicional. A justaposição de cenas e ações simultâneas é ainda mais expressiva nessa quadra, intitulada Verão, escrita em versos de dez sílabas: “Era verão, pela varanda entrava / a madura ondulação do trigo, / o grito lancinante dos pavões, / o cavalo na sombra ardendo em cio[20]”, em que não faltam o signo da estação do ano, os animais e vegetais integrados numa ordenação cósmica. A observação rara, frequente na poesia de Bashô, está presente em várias peças de Pequeno formato, especialmente na última composição do volume, intitulada À sombra de Victor Hugo, que estabelece um contraste de claro-escuro próximo ao oxímoro: “A sombra é sempre escura até mesmo / a dos cisnes[21]”.
Além do “gosto das estruturas breves e simples, do poema, do verso, da frase[22]”, encontramos na poesia de Eugênio de Andrade “as sonoridades cuidadas, os ritmos fluidos, a frase pontuada; o equilíbrio entre a simplicidade e o requinte da expressão (…); o apuramento dos sentidos; a revelação, a plenitude poética, o sentimento do tempo, o sentido do precário[23]”, elementos que estão em consonância com a arte poética japonesa, que valoriza especialmente a expressão sazonal, o vínculo entre o homem e a natureza, a imperfeição e a assimetria. Um outro aspecto da poesia de Eugênio de Andrade apontado por Arnaldo Saraiva e que merece especial atenção é a representação da epifania, palavra de origem grega (epi, sobre, phaino, brilhar) que o crítico português define como “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial[24]”. O conceito, de origem teológica, designava inicialmente “a manifestação ou o aparecimento divino no mundo ou a festa e o período que o celebra[25]”, como o nascimento de Cristo (caso em que o termo mais usado é teofania), aparições de santos ou outras entidades espirituais. Mircea Eliade, em seu Tratado de história das religiões, define a epifania como “manifestação que lembra ou se parece com uma manifestação divina, uma experiência exaltante e inesperada, o súbito acesso a um conhecimento ou prazer essencial, a percepção nítida de uma verdade imprevista, um momento de inteligência global do real[26]”, como por exemplo as revelações obtidas em sonhos, transes xamânicos, experiências com alucinógenos místicos ou a iluminação zen-budista. Conforme observa Arnaldo Saraiva, o conceito de epifania passou a ser empregado, na modernidade, por autores como James Joyce, num contexto laico e profano, para designar experiências estéticas de revelação e deslumbramento “perceptíveis pelos ou por alguns dos sentidos; não é uma experiência duradoura – é uma experiência intervalar e efêmera, salva na memória[27]”. A poesia de Eugênio de Andrade revela “diversas modalidades epifânicas ou diversos tipos de narrativa epifânica[28]”, escreve Arnaldo Saraiva. No poema Sul, que integra o volume O outro nome da terra, por exemplo, o poeta diz:
Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente,
o silêncio sacudia as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
Assim: explodir no ar[29].
Nesta composição de oito versos, sem medida métrica nem divisão estrófica, o poeta “documenta bem a passagem de um tempo e modo comum e concreto (verão, muro, praça, pombos, cal) para um tempo e modo epifânicos, que sem abolir a visão ou ‘evidência’ objetiva (…) implica, sobretudo, uma evidência, uma clarividência relativa ao sentimento ou ao pensamento escatológico[30]”, o que acontece nas linhas finais do poema (“Pensei: devíamos morrer assim. / Assim: explodir no ar”). Em outro poema breve de Eugênio de Andrade, incluído em Pequeno formato, o registro epifânico é menos dramático que lírico:
COMO NO INÍCIO
É a noite por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho[31].
A paisagem metafórica do poema, em que não falta o recurso da sinestesia (“É a noite por fim, podes tocá-la”), prescinde de um sujeito identificável; há um enunciador que descreve a sucessão de imagens e um interlocutor a quem esse discurso visual é transmitido, mas ambos permanecem quase invisíveis no poema, sem nada que os identifique além da própria enunciação. A epifania acontece no próprio discurso, em que elementos simples como a noite, a mão e a música se transfiguram para iluminar o caminho, que é trajeto, revelação e descoberta (podemos recordar aqui o ideograma chinês que representa o Tao, que significa, ao mesmo tempo, o caminhante, o caminho e o ato de caminhar). Conforme observa Arnaldo Saraiva:
o fenômeno epifânico é sempre relacionável com o sujeito enunciador do poema, que interessadamente o assinala e acusa os seus efeitos, às vezes dentro do seu próprio corpo (‘subitamente como fonte ou ave / rompe dentro de mim); mas ele também pode implicar e afetar outros seres, árvores, bichos, a terra, o ar e até os nomes[32].
Nesta acepção, podemos relacionar o conceito de epifania com a experiência espiritual indissociável da prática do haiku, tal como compreendida por Bashô. Comentando o poema da rã, Alberto Marsicano escreve em sua introdução a Trilha estreita ao confim, que reúne os quatro principais diários de viagem do mestre japonês:
Bashô contemplou num harmonioso entardecer uma tranquila lagoa quando uma rã saltando sobre a água rompeu subitamente a lisa superfície. Não com um forte ruído mas com um som claro e distinto. Ao ouvir este som cristalino o poema fluiu quase que involuntariamente leve e simples, sem artifício algum. O haicai é o olho do furacão, o profundo toque de um gongo de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da noite. o haicai é o satori, o despertar zen que repentinamente surge no caminho.
ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante[33].
A experiência do satori (悟り), referida por Alberto Marsicano, é o objetivo central da prática zen-budista: a tomada de consciência do vazio original da mente (sunyata, em sânscrito) e a superação da percepção dualista que nos aprisiona ao mundo fenomênico. Como toda vivência espiritual profunda (os êxtases místicos de São João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila, na tradição cristã, ou a vivência do sagrado em Rumi e Attar, na tradição sufi), o satori não pode ser descrito em palavras; segundo Paulo Leminski, é algo “pessoal e intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la)[34]”. Apesar da impossibilidade de se registrar na forma escrita as sensações e percepções da jornada espiritual, existe vasta literatura sobre o assunto, desde interpretações filosóficas ou teológicas da vivência mística até poemas, cartas ou relatos em prosa que de certa forma “transmitem” algo dessa experiência. Segundo relatos dos antigos historiadores chineses, técnicas indianas de meditação (dhyana, em sânscrito; ch’an, em chinês; zen, em japonês) foram introduzidas na China desde o século II a. C. por Bodhidarma, o primeiro patriarca do zen-budismo, e de lá foram levadas para a Coreia, o Tibete e o Japão, mesclando-se a tradições locais como o taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, cultos devocionais e práticas mágicas ou esotéricas. O mestre mais reverenciado da tradição zen-budista é Hui-Neng, que teria ensinado no século VI no Mosteiro da Ameixa Amarela. A respeito deste sábio chinês escreve Paulo Leminski:
A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidarma foi transmitida por muitas gerações a Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto, ideias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste de Pequim, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando a mãe como apanhador e vendedor de lenha.
Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus traduzidas para o chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do mosteiro Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.
Esta transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto pessoal e da tigela de pedir esmolas.
Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen da época, incluindo os quarenta e três “herdeiros da lei”, que disseminaram seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coreia e o Japão.
Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro Tan-fan.
De Hui-Neng descendem, espiritualmente, Bashô e seu haicai, bem como as artes zen,das quais o haicai se alimentou[35].
Mestres budistas comparavam a mente humana a um espelho, cuja essência é pura e perfeita. Ao entrar em contato com o mundo material, a superfície cristalina acumula poeira, que recobre a sua pureza original. Shen-hsiu escreveu o seguinte poema, para apresentar o conceito: “Este corpo é a árvore Bodhi / a mente é como um espelho iluminado; / Empenhai-vos em mantê-la sempre limpa / Sem deixar que nela se junte o pó[36]”. Para “limpar a mente” dos resíduos mundanos e fazer com que ela recupere a sua natureza de puro cristal, Shen-hsiu propunha o “método gradual” para a iluminação, que incluía o estudo dos Preceitos morais (sila), Meditação (dhyana) e Sabedoria Transcendental (prajna)[37], tópicos que integravam a vida monástica na maioria das escolas budistas, tanto as do sul quanto as do norte da China. Rebelando-se contra o formalismo das práticas meditativas, o quietismo e sobretudo contra a ideia de uma evolução espiritual gradual, Hui-Neng apresentou o seguinte poema, em resposta ao de Shen-hsiu: “Não há árvore Bodhi, / nem o cessar do brilho do espelho. Sendo tudo vazio, onde / poderia assentar-se o pó?”. A natureza búdica da mente, para Hui-Neng, “não persiste nem é aniquilada; não chega nem parte; não está no meio nem nas extremidades; ela não morre nem nasce. Permanece a mesma o tempo todo, imutável em todas as mudanças. Assim como nunca nasceu, nunca morrerá[38]”. O “método abrupto” de Hui-Neng não era a “arte de tranquilizar a mente para que sua essência interior, pura e imaculada, pudesse extravasar os seus invólucros[39]”, uma vez que ela já é “pura, simples e iluminadora como o sol por trás das nuvens[40]”. O reconhecimento desse princípio, para o sábio chinês, era a iluminação súbita, que dispensava erudição, práticas de austeridades ou rigor nas normas cerimoniais e de conduta. A busca do satori tornou-se o centro da vivência zen-budista, e os meios para esse súbito despertar eram os mais inusitados, podendo incluir desde tarefas domésticas, como varrer o templo, até golpes de bambu aplicados pelo mestre no discípulo ou histórias absurdas ou enigmáticas (koans), como esta, relatada por Paulo Leminski:
Hui-Ko procurou Bodhidarma, primeiro patriarca do zen chinês, e lhe disse:
— Não tenho paz na minha mente. Pacifica a minha mente.
— Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico, responde Bodhidarma.
— Mas quando busco a minha própria mente, não consigo encontrá-la, diz Hui-Ko.
E Bodhidarma:
— Pronto! Pacifiquei tua mente[41].
A vivência profunda da espiritualidade zen-budista está presente na poesia de Bashô, e ainda na maneira como ele ensinava os seus discípulos, como podemos verificar nestes aforismos do poeta japonês, que abandonou o caminho do samurai após a morte de seu mestre para tornar-se monge andarilho:
Repita seu verso mil vezes nos lábios.
Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam.
Respeite as regras. Então, jogue todas fora. Pela primeira vez, você atinge a liberdade[42].
Aprende do pinheiro diretamente do pinheiro; do bambu, diretamente do bambu[43].
Eugênio de Andrade, em outro momento histórico, outra dimensão geográfica e com outro repertório cultural, aproxima-se, pelo conceito laico (e mesmo pagão) da epifania — “uma luminosa manifestação, uma revelação clara e rara, uma clarividência essencial[44]” da experiência zen-budista. No prefácio à sua Antologia breve (Lisboa: Moraes Editores, 1980), o poeta português define o ato poético como “o empenho total do ser para a sua revelação”, que ele define como a “descida ao coração da alma, essa coragem de mostrar o que achou no caminho”, que caracterizaria “a dignidade do poeta e, com ela, a do homem[45]”. A tarefa do poeta seria resistir à “desfiguração” imposta pela cultura moderna e resgatar o rosto original do homem, “belo e tenebroso, à luz limpa do dia[46]”. Enumerando poetas e místicos de diferentes épocas, culturas e países que considera seus companheiros de jornada, Eugênio de Andrade escreve: “De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafys, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efêmero rosto[47]”. A rebelião do poeta seria feita “em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma[48]”. A tonalidade desta breve nota é a de um manifesto, em que não são poucas as referências românticas, como a oposição entre cultura e natureza, a busca de uma verdade essencial, a valorização da sinceridade e da expressão subjetiva, e mesmo o emprego de palavras como rebelião, raízes, terra, sangue, alma. O poeta é visto de modo messiânico, como aquele que possui as chaves mágicas para decifrar a realidade e mostrar ao homem o seu próprio rosto.
O pensamento filosófico de Eugênio de Andrade possui diversos matizes que contrastam com as percepções de Matsuo Bashô – único oriental citado entre os seus poetas de devoção, ao lado do chinês Li T’ai Po – mas podemos estabelecer uma relação elucidativa entre a perspectiva idealista do autor português e a visão sincrética do poeta samurai, que recebeu a educação militar e cultural adequada a um guerreiro (que incluía aulas de pintura, poesia, caligrafia e filosofia, além do treinamento no manejo de armas), absorveu as normas de conduta confucianas e depois abraçou a mística budista, sem nunca perder um vínculo espiritual com a natureza, herança da cosmovisão xintoísta, presente em todas as manifestações da arte japonesa. Eugênio de Andrade, assim como o poeta-samurai, também recebeu treinamento militar, expressou o sentimento de vínculo com a aldeia natal e manteve sempre a referência à natureza em seus poemas, numa perspectiva espiritual humanista e próxima ao panteísmo. O diálogo consciente que Eugênio de Andrade estabeleceu com o haiku, no entanto, foi acima de tudo estético, e ele não renunciou a sua própria linguagem poética, pouco afeita ao humor e ao coloquialismo, para glosar a irreverência de Bashô (“Pulgas piolhos / um cavalo mija / do lado do meu travesseiro”, na tradução de Paulo Leminski[49]; “Sem nada, ainda piolhos / da minha viagem passeiam / no estival quimono”, na versão de Jorge de Sena[50]). A afinidade espiritual entre os dois poetas, podemos formular esta hipótese, aconteceu sobretudo na relação com a terra, os animais, as aves e os peixes; a mística do Eugênio de Andrade, assim como a de Bashô, não se situa num plano transcendental, numa zona etérea além das dimensões do espaço e do tempo, mas, ao contrário, ela acontece aqui e agora, em nossa relação com as estações, paisagens, pessoas e objetos. Conforme observou Arnaldo Saraiva, o poeta português “soube ainda revitalizar o veio do chamado lirismo tradicional, inventando um ruralismo e um bucolismo[51]”. Sua maneira de olhar para as coisas era quase fotográfica, extraindo o lirismo possível dos objetos tangíveis. Eugênio de Andrade recorre por vezes à alegoria e à metáfora, “mas nem por isso elas deixam de revelar um fulgor concreto e objetivo que só lhes podia conferir a experiência concreta do mundo (empírico), feita em lugares (concretos) que quase nunca são diretamente nomeados[52]”, embora saibamos, pela biografia do poeta e algumas referências históricas e geográficas, a quais cidades ele em geral se refira, como Povoa, Lisboa, Tavira, Porto ou Coimbra – assim como Bashô mapeou o seu percurso como poeta-andarilho em seus diários de viagem, especialmente Sendas de Oku, redigido quatro séculos antes do nascimento do autor português. A rã de Bashô ressoa na lírica de Eugênio de Andrade, viajando no espaço e no tempo, transformada em outros batráquios, como vemos neste Noturno: “Coaxar de rãs é toda a melodia / que a noite tem no seio / – versos dos charcos / e dos juncos podres / casualmente, com luar no meio[53]”.
Referências
ANDRADE, Eugênio de. Antologia breve. Lisboa: Moraes Editores, 1980.
________. Poesia. Lisboa: Fundação Eugênio de Andrade, 2000.
BASHÔ, Mstsuo. Trilha estreita ao confim. Trad.: Alberto Marsicano. São Paulo: Iluminuras, 1997.
CAMPOS, Haroldo de. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FRANCHETTI, Paulo, DOI, Elza Taeko e DANTAS, Luiz. Haikai. Antologia e história. 1ª. edição: Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1990. 4ª. edição: Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2012.
LEMINSKI, Paulo. Bashô, A lágrima do peixe. São Paulo: ed. Brasiliense, 1983.
RIMBAUD, Artur. Uma temporada no inferno & Iluminações. Tradução: Ledo Ivo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
________. Poésies / Une saison en enfer / Illuminations. Paris: Gallimard, 1984.
SARAIVA, Arnaldo. Introdução à poesia de Eugênio de Andrade. Lisboa: Fundação Eugênio de Andrade, 1995.
SUZUKI, D. Teitaro. A doutrina zen da não-mente. São Paulo: Pensamento, 1989.
[1] SARAIVA, 2005, p. 22.
[2] No Brasil, é utilizada com mais frequência a expressão haicai, embora no Japão e em muitos países ocidentais a forma usual seja haiku, derivada de hokku (o terceto que fazia parte do poema coletivo encadeado, ou renga-no-haikai).
[3] ANDRADE, 2000, p. 14.
[4] LEMINSKI, 1983, p. 44.
[5] CAMPOS, 1976, p. 21
[6] O ensaio Uma arquitextura do barroco, publicado no livro A operação do texto, de Haroldo de Campos, inclui uma miniantologia sincrônica com poemas de autores tão distanciados no espaço-tempo como Góngora, Mallarmé, Sousândrade, Lezama Lima e Li Shang Yin.
[7] BRITO, 1995, p. 22.
[8] LEMINSKI: 1983, 51.
[9] RIMBAUD: 1984, 108.
[10] RIMBAUD: 1982, 52.
[11] BASHÔ: 1983, 84.
[12] Idem, 106.
[13] Podemos recordar aqui da observação de Arnaldo Saraiva: “Eugênio de Andrade é, continua a ser, um poeta exigente e inconformado com os seus próprios poemas, que pode submeter a sucessivas e despudoradas emendas, e que publica com evidente parcimônia.” (SARAIVA, 1995, p. 7) “Eugênio de Andrade não corrige apenas versões inéditas dos seus textos, pois transforma frequentemente em palimpsestos os seus textos éditos.” (idem, 15)
[14] ANDRADE, 2000, p. 545.
[15] ANDRADE, 2000, p. 551.
[16] ANDRADE, 2000, p. 551.
[17] FRANCHETTI, 2012, p. 100.
[18] FRANCHETTI, 2012, p. 128.
[19] ANDRADE, 2000, p. 553.
[20] ANDRADE, 2000, p. 547.
[21] ANDRADE, 2000, p. 554.
[22] SARAIVA, 1995, p. 38.
[23] SARAIVA, 1995, p. 38.
[24] SARAIVA, 1995, p. 54.
[25] SARAIVA, 1995, p. 54.
[26] In SARAIVA, 1995, p. 53.
[27] SARAIVA, 1995, p. 54.
[28] SARAIVA, 1995, p. 55.
[29] ANDRADE, 2000, p. 451-452.
[30] SARAIVA, 2005, p. 56.
[31] ANDRADE, 2000, p. 550.
[32] SARAIVA, 2000, p. 57-58.
[33] In: Bashô: 1997, p. 11.
[34] LEMINSKI, 1983, p. 68.
[35] LEMINSKI, 1983, p. 78-79.
[36] In SUZUKI, 1993, p. 15.
[37] “A moralidade consiste em observar todos os preceitos estabelecidos por Buda, tendo em vista o progresso espiritual de seus discípulos; a meditação é o exercício destinado ao treinamento pessoal na tranquilização, pois se a mente não for controlada pela meditação, de nada adiantará observar mecanicamente as regras de conduta; na realidade, estas se destinam a tranqüilizar o espírito. Sabedoria ou prajna é o poder de penetrar a natureza do próprio ser (…). Não é preciso dizer que todas essas três disciplinas são necessárias a um budista sincero. Mas, com o passar do tempo, depois de Buda, a Tríplice Disciplina cindiu-se em três ramos distintos de estudo: os seguidores das regras de moralidade estabelecidas pelo Buda tornaram-se professores do Vinaya; os yogues da meditação incorporaram-se a várias espécies de Samadhi e até mesmo adquiriram algumas faculdades extraordinárias (…). E finalmente, os que buscavam Prajna tornaram-se filósofos dialéticos ou líderes intelectuais. Esse estudo unilateral da Tríplice Disciplina fez com que os budistas se desviassem do reto caminho da vida budista, especialmente quanto a Dhyana (meditação) e a Prajna (sabedoria ou conhecimento intuitivo).” (SUZUKI, 1993: 30)
[38] SUZUKI, 1993, p. 33.
[39] SUZUKI, 1993, p. 33.
[40] SUZUKI, 1993, p. 22.
[41] LEMINSKI, 1983, p. 73.
[42] LEMINSKI, 1983, p. 41-42.
[43] BASHÔ, 1997, p.10.
[44] SARAIVA, 1995, p. 54.
[45] ANDRADE, 1980, p. 7-8.
[46] ANDRADE, 1980, p. 7-8
[47] ANDRADE, 1980, p. 8-9.
[48] ANDRADE, 1980, p. 9,
[49] BASHÔ, 1983: 52.
[50] In SENA, 1972: 13.
[51] SARAIVA, 1995, p. 22.
[52] SARAIVA, 1995, p. 37.
[53] ANDRADE, 2000, p. 98.
*Poeta, ensaísta e editor.