Ingeborg Bachmann: decisão pela palavra – Claudia Cavalcanti
INGEBORG BACHMANN: DECISÃO PELA PALAVRA
Claudia Cavalcanti*
Preciso de liberdade. De muita liberdade.
(IB em 1965, in STOPLL, 2013, p. 19)
Imagine-se a cena na Piazza de la Quercia, 1, em Roma, 1954. A estrangeira levanta-se para atender os carabinieri à sua porta. Ela não entende bem o que dizem – um pouco pelo sono, outro tanto pelo italiano ligeiro. Mas concorda que é grande o barulho na movimentada praça onde mora, tanto que nem com as janelas fechadas consegue trabalhar durante o dia. Mas, não, diz a polícia. Eles estão ali por conta de outro barulho, causado por ela mesma, nas madrugadas romanas, quando tamborila freneticamente a máquina de escrever. A vizinha da frente havia formalizado uma reclamação. Ela argumenta que as ideias só lhe vêm àquela hora. “Mas em que diabos a signorina trabalha à noite?” Ela traz uma folha de papel datilografada na língua nativa, ao que os policiais concluem: “Ah, é poeta!”. Ela ainda não havia fechado a porta quando os ouve comentarem: “Poemas tão curtos e tanto barulho!”
O relato do escritor Uwe Johnson, amigo de Ingeborg Bachmann, está reproduzido na última biografia da escritora austríaca. Der dunkle Glanz der Freiheit [O brilho escuro da liberdade] foi publicada em 2013, quando dos 40 anos de morte de IB. A historinha poderia passar como mais uma dentre várias que a envolveram, mas ela diz mais do que se imagina a respeito daquela que é considerada uma das grandes poetas de língua alemã do século passado, nascida em 1926. Feitas as contas, sabemos que ela tinha 28 anos à época do episódio. Era uma mulher na flor da idade (considerando que morreu aos 47 anos, em 1973), bonita, elegante, inteligente. Devia provocar furor nos assanhados italianos. Mas ela preferia virar a noite escrevendo, provando (de imediato, apenas para si mesma e para a vizinha incomodada) que, de fato, vivia para a literatura.
Aos 19 anos, IB já escrevera: “Atormento-me apenas com meu trabalho, meus pensamentos. Sempre esse medo de que eu possa me perder no caminho e, mais ainda, de que não haja um” (Kriegstagebuch, in STOLL, 2013, p. 71). A soma dos anos nos indica 1945. A guerra chegava ao fim, mas não os tempos sombrios. Com o pai simpatizante nazista, a família passou a sofrer represálias e dificuldades financeiras. O vento não soprava a favor, mas naquele mesmo ano ela foi estudar Filosofia em Innsbruck, Graz e por fim Viena, onde se tornou doutora com tese sobre Heidegger, já em 1950.
“Às vezes me perguntam como eu, criança numa cidadezinha, teria encontrado a literatura. – Não sei dizer ao certo; só sei que comecei a escrever numa idade em que se leem os Irmãos Grimm, de modo que não queria trabalhar e gostava de me deitar na linha do trem, mandando meus pensamentos viajarem para cidades e países estrangeiros e para o desconhecido mar, que em algum lugar no globo se encontrava com o céu. Sempre foram mares, areia e navios as matérias de meus sonhos, mas então veio a guerra e empurrou aquele mundo dos sonhos, fantástico, para longe do real, no qual não há como sonhar, mas como decidir.” (Biographisches, in STOLL, 2013, p. 49).
Tanto quanto lhe foi dado decidir, Ingeborg Bachmann assim fez. Estamos falando de uma jovem nos anos 1940/50, nascida em Klagenfurt, interior da Áustria. Àquela altura, ela deixara passar uma primeira proposta de casamento, para não abdicar dos estudos. Em 1948, conhecera Paul Celan, com quem manteve uma relação de idas e vindas e complexa classificação. Ao comentar sua morte, em 1970, Bachmann afirmara: “Eu o amei mais que à minha vida” – mas mesmo que assim tenha sido, ela não foi capaz de deixar para trás suas aspirações literárias e viver em Paris à sombra do grande poeta, como ele supõs que pudesse acontecer.
O poeta de Czernowitz, na Romênia, cuja família fora extinta em campos de concentração, manterá com Bachmann um diálogo sobretudo amoroso, ao longo de duas décadas. O primeiro registro do livro Herzzeit, correspondência dos dois só publicada em 2008 (em cujo time de organizadores está a germanista Andrea Stoll, biógrafa de IB), é um poema-dedicatória de Celan em livro de Matisse, datado de 23/5/1948:
No Egito
Para Ingeborg
Deves dizer ao olho da estrangeira: sê a água.
Deves, que a sabes na água, buscar no olho da estrangeira.
Deves chamá-las para sair da água: Ruth! Noemi! Miriam!
Deves orná-las quando estás com a estrangeira.
Deves orná-las com o cabelo de nuvem da estrangeira.
Deves dizer a Ruth e Miriam e Noemi:
Vejam, durmo com ela!
Deves ornar belamente a estrangeira ao teu lado.
Deves orná-la com a dor por Ruth, por Miriam e Noemi.
Deves dizer à estrangeira:
Vê, dormi com elas![2]
A estrangeira não judia de Viena (IB) devendo herdar, no Egito dos exilados, o legado das ruths, noemis, mirians e tantas outras mulheres, de cuja expressão o poeta (PC) espera que a austríaca se torne o meio, quando não a própria expressão – uma das muitas decisões com que ela se vê confrontada e até tentada a assumir, mas são experiências (origens, destinos, lugares, tempos) muito diversas, como se já não bastassem duas fortes personalidades, para que a expressão dela não fosse, afinal, unicamente dela. Já em 1949 Celan constata os diferentes silêncios de ambos: “Talvez eu esteja enganado, talvez seja fato que nos evitamos justo ali, onde tanto gostaríamos de nos encontrar, e talvez a culpa seja de ambos. Só que às vezes digo para mim mesmo que meu silêncio talvez seja mais compreensível que o seu, porque o escuro a que estou submetido é mais antigo.”[3].
Não há como não conceder lugar especial à relação de Bachmann e Celan nas biografias de uma e de outro. Assim faz Stoll – mas destaca também os relacionamentos com Hans Werner Henze e Max Frisch. Com o primeiro (ou, da perspectiva de Celan, segundo), pela absoluta lealdade entre os dois e pela impossibilidade de futuro amoroso, dado o homossexualismo dele. Foi com o compositor Henze, seu amigo até o fim, que IB, que considerava a música uma arte superior a qualquer outra, criou libretos para as suas peças musicais. E com Frisch, pela deslealdade. Ela precisou ver estampados nos livros do escritor detalhes da relação dos dois. A vida em comum com um suíço burguês era quase inimaginável para uma mulher discreta e, ao mesmo tempo, do mundo, como Ingeborg Bachmann. Nunca esteve nos planos dela ser a sombra de um homem, portanto não seria uma sombra de Frisch, já famoso àquela época por seus livros e ciúme patológico. O título da biografia de Stoll inspira-se em citação dele, que escreveu: “Sou um louco e sei disso. A liberdade dela faz parte de seu brilho” (Montauk, in STOLL, p. 215).
“O brilho escuro da liberdade”. Tanto a expressão quanto a biografia ela mesma nos fazem pensar que Bachmann, embora inexoravelmente amarrada ao seu tempo pela História e pela obra que criou (ao reinventar a lírica do pós-guerra e dar-lhe um lugar de destaque na literatura de língua alemã e europeia), estava à frente daquele seu tempo e das aspirações feministas. Mas eis a primeira das muitas contradições quando o assunto é IB: mesmo abrindo mão do papel de esposa e agindo como uma mulher livre, Bachmann tem sua biografia diretamente ligada a alguns nomes masculinos importantes no cenário cultural germanofônico. Os últimos versos de um poema da amiga Marie Louise Kaschnitz resumem essa dualidade: “Os sapatos masculinos incomodavam no armário / Mas você não sabia respirar sem amor.” Foi a mesma Ingeborg Bachmann que largou Celan, mas lhe escreveu, em 24/6/1949:
“Às vezes não desejo outra coisa senão ir embora e chegar em Paris, sentir como você toca a minha mão, como me toca toda com flores, para depois de novo não saber de onde vem e para onde vai. Para mim você veio da Índia ou de um país distante, escuro, marrom, para mim você é deserto e mar e tudo o que é mistério. […] eu deveria ter um castelo para nós e ir buscar você para mim, para que você, meu enfeitiçado senhor, possa ficar dentro dele; lá dentro teremos muitos tapetes e música, e inventaremos o amor.”.[4]
Impressões ao olhar fotografias na biografia de IB: A mulher do judeu amava o pai nazista. A mulher que ia à feira jogava xadrez. A mulher aparentemente organizava encontros internacionais do famoso Gruppe 47. A mulher sorridente vivia à base de remédios para dormir e para acordar. A mulher sem frescura gostava de luxo. A mulher bonita às vezes não era.
A mulher de tantas variantes e sobreposições veio ao mundo para ser ela mesma, coerente do início ao fim com o propósito de viver não apenas para a literatura, mas da literatura – e pagou caro por isso. A grande poeta escrevia prosa. A ficcionista, instigantes ensaios. Na sua escrita – poesia, prosa, teatro ou não-ficção – revela-se (e também se subentende) toda a luta pela escrita ela mesma; expressa-se ali o valor de cada palavra no seu tempo (e que tempo!), ou os valores de uma mesma palavra no seu texto. “O significado de uma palavra é seu uso na língua”, escreveu Wittgenstein, filósofo que não por acaso lhe era muito familiar. Expressa-se também o valor da não-palavra – como bem soube Celan, quando dos silêncios dela. E expressa-se sobretudo sua missão na literatura, dita no discurso de agradecimento a um prêmio, intitulado “Exige-se do homem o confronto com a verdade”:
“[…] Não deve ser a tarefa do escritor negar a dor, apagar seu rastro, excluí-la. Pelo contrário, ele deve se dar conta dela e, para que possamos vê-la, dar vida a ela. Pois todos nós queremos ver. E só aquela dor secreta nos torna sensíveis para a experiência, especialmente para a da verdade. Dizemos muito simples e corretamente quando chegamos a esse estado claro, no qual a dor é frutífera: meus olhos se abriram. Não dizemos isso porque percebemos uma coisa ou um acontecimento, mas porque entendemos o que não podemos mesmo ver. E isso a arte deveria proporcionar: que, nesse sentido, nossos olhos se abram” (Kleine Schriften, in STOLL, p. 213).
Se aos 33 anos Bachmann teve coragem e maturidade para definir seu papel como escritora, indo no sentido oposto ao do seu então companheiro Max Frisch, aos 27, com a publicação de seu primeiro livro, Die gestundete Zeit, ela chegou para mostrar que a literatura engajada do pós-guerra podia fundir-se à beleza e musicalidade, e conferir utopia à linguagem da arte, para ser capaz de ultrapassar os limites da própria língua.
O poema que dá nome ao livro e que em português pode ser traduzido por “O tempo adiado”[5] (dentre outras possibilidades que a ambiguidade da palavra bachmanniana sugere – lembre-se de Wittgenstein) pode ser degustado se pensado não por que é belo, mas de que maneira alcança a beleza; não naquilo que ele quer dizer, mas em como é dito o que se propõe que seja dito. A humilde, mas corajosa tradutora pede atenção para a dramaticidade do cenário e adianta que não deve ser o caso desvendar enredos, mas propriamente a beleza no uso da língua. E pergunta se o leitor vê alguma diferença entre o primeiro e o último versos, embora absolutamente iguais. Pois há. Esta é Ingeborg Bachmann.
O tempo adiado
Vêm aí dias piores.
O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves atar os sapatos
e espantar os cães para os prados.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
Débil arde a luz do lupinus.
Teu olhar abre trilhas na névoa:
o tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Do outro lado afunda tua amante, na areia,
ela sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ela corta-lhe a palavra,
ela ordena-lhe silêncio,
ela acha-a mortal
e entregue à despedida
depois de cada abraço.
Não olha para trás.
Ata teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Extingue o lupinus!
Vêm aí dias piores.
[2] In: BACHMANN, Ingeborg; CELAN, Paul, Herzzeit, Frankfurt: Suhrkamp, 2008, p. 7. Tradução do poema: CC.
[3] Idem. ib., p. 13.
[4] Idem ib., p. 11.
[5] BACHMANN, Ingeborg. Werke 1 – Gedichte, Hörspiele, Libretti, Übersetzungen. Piper Verlag: Munique, 2010, p. 37. Tradução de CC.
* é germanista pela Universidade de Leipzig (Alemanha) e tradutora e editora em São Paulo (Brasil). E-mail: claudiacavalcanti10@globo.com