Do Grotesco ao Sublime em Anjo Negro (1946), uma peça expressionista – Renata Da Silva Dias Pereira de Vargas

Do Grotesco ao Sublime em Anjo Negro (1946), uma peça expressionista

Renata Da Silva Dias Pereira de Vargas*

O empreendimento teatral é feito de contradições. Ele custa cada vez mais caro, está submetido às áleas econômicas e depende estreitamente das subversões estatais. Deve assumir sua função de espetáculo atingindo o maior público possível e, no entanto, manter sua função primeira de arte que denuncia e incomoda. (RYNGAERT, 1998, p. 39-40)

 

Anjo Negro, Nelson Rodrigues-1948-Orlando Guy-Nicette Bruno. FUNARTE: Brasil , Memória das Artes.

Chocante certamente é uma palavra que define bem a peça Anjo Negro (1946) de Nelson Rodrigues (1912-1980). Ao levantar temas como racismo e filicídio, o autor apresenta uma radiografia de uma sociedade que censura e vitimiza aqueles que não se encaixam ou não seguem suas regras.

A peça causa repulsa devido às ações bárbaras e delituosas dos personagens, mas, de algum modo, atrai espectadores impressionados que buscam entender a razão de tais acontecimentos. Diante disso, a questão que vem à tona é: até que ponto a sociedade em que esses personagens estão inseridos contribui para a manutenção de situações impiedosas e desumanas como essas descritas na peça, até por que, segundo Hannah ARENDT (1994): “É inegável que tais atos, nos quais os homens tomam a lei em suas próprias mãos para o bem da justiça, estejam em conflito com as constituições das comunidades civilizadas” (p. 48).

Esse panorama de condutas desordenadas, psicóticas e violentas, coloca a peça diante de uma concepção expressionista da literatura, pois há a procura de uma nova forma de captar a realidade, a evolução social e cultural, em que o indivíduo manifesta a sua insegurança e desesperação e impotência diante de poderes desconhecidos (sociedade) que regem o seu destino.

 

Nelson Rodrigues expressionista

Uma das características do expressionismo no teatro é a defesa das transformações sociais. Em Anjo Negro a essência da natureza do homem é desvendada com o objetivo de influenciar e questionar as convenções, não como apologia à violência, mas pelo contrário, a partir de tensões e conflitos, trazer à tona questões que muitas vezes permanecem adormecidas na memória coletiva. Assim, a própria discussão de problemas sociais fomenta as transformações necessárias para uma sociedade mais aberta e tolerante. Neste ínterim, Sábato Magaldi (2003, p. 297), cita Eudinyr FRAGA (1998) por seu levantamento minucioso a respeito das obras rodrigueanas:

Não que Nelson fosse um expressionista na acepção estrita do termo, mas sua visão do mundo fundamenta-se nessa concepção existencial, na recusa violenta da realidade (embora nela alicerçada), na distorção exagerada da sociedade que nos cerca, no privilegiar o grotesco do comportamento humano. (MAGALDI, 2003, p. 297)

O comportamento de Virgínia e Ismael é intolerável, mas explicado. Ismael é um segregado, primeiro pela figura do pai que nunca conheceu e segundo porque depois de se tornar médico e enriquecer, o fato de ser negro ainda o persegue, a ponto de não aceitar sua própria condição étnica.

Por muito tempo, no Brasil, pregou-se a ideia de branqueamento do povo, por meio da imigração europeia, ideia aceita pela sociedade, mas quando Ismael gera descendência em uma barriga branca (Virgínia), essa mesma sociedade o condena, assim, quando seus filhos nascem negros, ele os nega, permitindo que Virgínia os mate.  O segregado não se pronuncia, numa clara evidência de baixa autoestima, já que permite que sua mulher destrua seus descendentes.

A lei patriarcal estipula que seus ditames de cerceamento e manutenção de poder devem ser mantidos a todo custo. São obras como a de Nelson Rodrigues que nos arrebatam ao interior desses constructos formados por ideias tão solidamente construídas e, ao mesmo tempo, tão frágeis ao serem analisadas pelos estudiosos. (BRANDÃO, 2003, p. 6)

Da mesma forma, Virgínia segue os ditames da sociedade, ela é cerceada por seus desejos por Ismael, pois o sexo entre um negro e uma branca é visto como uma violação. Um homem branco poderia gerar descendência em um ventre negro, mas um filho de um homem negro, mesmo com uma mulher branca, era intolerável, uma clara prova de hipocrisia.

Assim, Virgínia deve manter sua espécie e suprimir seus desejos:

VIRGÍNIA – Menti muito, menti outras vezes, mas desta vez não.  Espia nos meus olhos. Bem nos meus olhos. Eu não sabia que te amava, mas minha carne pedia por ti. Mas agora sei!  Tu me expulsaste, e eu não quero ser livre não quero partir nunca. Ficarei aqui, até morrer, Ismael…

ISMAEL – Vai!

VIRGÍNIA (fora do tempo) – Quando me tapaste a boca – na primeira noite –  sabes de que é que me lembrei? Apesar de todo o meu terror? (deslumbrada) Me lembrei de  quatro  pretos,  que  eu vi,  no Norte quando tinha cinco anos  carregando piano,  no  meio  da  rua…  Eles carregavam o piano e cantavam. Até hoje, ainda os vejo e ouço, como se estivessem na minha frente. Eu não sabia por que esta imagem surgira tão viva em mim! Mas agora sei.  (baixa a voz, na confidência  absoluta)  Hoje  creio que  foi  esse  o meu primeiro desejo, o primeiro. (RODRIGUES, 1946, p. 91-92)

Virgínia se vê diante de um impasse: entre seu desejo por Ismael e o desprezo pela cor de sua pele. Assim, quando os filhos negros nascem, ela os mata para purificar-se diante de uma sociedade que desaprova seu relacionamento.

Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso. (FOUCAULT, 1988, p.17)

É por causa dessa relação macabra de ódio e lascívia que a peça se encontra em uma atmosfera de pesadelo, que grita por uma sociedade mais justa e tolerante, que não aceite o grotesco, mas que respeite as escolhas individuais. Desse modo:

Os grandes criadores deste tempo da vanguarda expressionista, têm sido justamente aqueles que, marcados embora pela circunstância, de longe a ultrapassaram, e que anunciando o fim do sujeito através de vários saltos das espécies, da deformação à máscara, da desumanização ao seu excesso, da transformação à metamorfose, devolveram a uma sociedade descrente, a força da criatividade individual. (OLIVEIRA, 2006, p. 32)

Dois personagens fogem a essa desumanização: Elias e Ana Maria. Elias pode ser visto como um mensageiro da esperança e da renovação. Ele tenta redimir Ismael, mas sucumbe às artimanhas de Virgínia e morre sem completar sua missão, deixando sua filha, fruto da infidelidade de Virgínia, como última tentativa de resgatar a humanidade do casal protagonista.

Ana Maria com sua inocência e bondade está cega física e psicologicamente, não percebe a afeição doentia e, de certo modo, incestuosa do padrasto, nem tampouco a aversão desencadeada na mãe, por ver na filha o fruto de sua traição e do esforço de se adequar às normas sociais, ao se deitar com um homem branco.

Se o expressionismo é uma vanguarda que privilegia o grotesco, a deformação, a morbidez, no intuito de produzir um choque emocional no público incauto, se aquilo que exprime é a deficiência do ser, a falência da racionalidade e da ética, a reflexão trágica do universo, a inquietação interior sobre um fundo apocalíptico, a luta do indivíduo contra a sociedade opressiva, inevitavelmente burguesa, ou nas palavras sempre sábias de Nietzsche, a cólera existencialista selvagem. (OLIVEIRA, 2006, p. 30)

Não há luta do indivíduo contra a sociedade opressiva, Virgínia suprime seus desejos por Ismael e o trai com seu irmão branco. A sociedade não pode aceitar que uma mulher branca deseje um homem negro, da mesma forma não tolera a traição, mesmo que seja com um homem branco. Resultado disso: Virgínia sacrifica as provas de seu desajuste social, sem lutar contra sua condição de submissão.

Do mesmo modo, Ismael é resultado de anos de dominação e repressão, assim não poderia multiplicar sentimentos que não aqueles recebidos por ele durante toda a vida. Ana Maria quase transforma esse homem empedernido, mas a relação entre os dois é mentirosa e ilusória, pois Ismael se constrói para a enteada como branco e bom, num esforço desesperado de ser admitido por ela como gostaria de o ser também na sociedade que o cerca.

Essa sociedade é representada pela tia e primas:

PRIMA – Esta casa é maldita. (RODRIGUES, 1946, p. 37)

PRIMA – Eu não queria um marido preto! (RODRIGUES, 1946, p. 43)

TIA – Por que dissimulas?  Por que escondes sempre a verdade? – desde menina… (RODRIGUES, 1946, p. 44)

TIA – Foi  desejo,  só  desejo!  Desde pequena que você é assim! (RODRIGUES, 1946, p. 45)

TIA – Ismael, sim.  Vai saber que tens um amante… (RODRIGUES, 1946, p. 46)

TIA – (recaindo na  evocacão)  Eu  continuei esperando. Cedo ou tarde, me vingaria… (RODRIGUES, 1946, p. 47)

PRIMAS (em conjunto) –Virgínia tem um amante!

PRIMA – Eu disse primeiro!

PRIMA – Fui eu! (RODRIGUES, 1946, p. 48)

PRIMA – Eu.

PRIMA – Não fui eu, mamãe?

TIA – Tenham modos!

PRIMA – (desequilibrada) Eu me lembro da noite. Como Virgínia gritou!

PRIMA – Mamãe vai dizer, não vai, mamãe?

TIA – Vou.

PRIMA – (numa alegria de débil  mental)  Que bom!

TIA – Só sairei daqui depois de ter dito. (RODRIGUES, 1946, p. 49)

 

 

Que a violência frequentemente advenha do ódio é lugar-comum, e o ódio pode realmente ser irracional ou patológico, mas o mesmo vale para qualquer outro sentimento humano. […] O ódio aparece apenas onde há razão para supor que as condições poderiam ser mudadas, mas não são. (ARENDT, 1994, P. 47)

Nenhum sentimento bom pode vir de uma situação tão horrenda, de uma relação que se inicia com um estupro, o que vem depois disso são apenas consequências anunciadas.

 

O grotesco em Anjo Negro

Segundo Vitor Hugo, o grotesco é uma nova forma que se desenvolve na arte, como uma imitação do feio.

Não mais podia o teatro continuar a ser o que era, inclusive para os adeptos do classicismo. Os princípios de mistura de gêneros, de rejeição das regras, de recusa da imitação dos modelos, de liberdade da arte, estimularam e estimulariam, no futuro, a imaginação de dramaturgos, abrindo novos caminhos aos jovens talentos. (HUGO, 2007, p. 8)

Em Anjo Negro o grotesco faz parte do cotidiano dos personagens. Virgínia seduz Elias para ter um filho branco e depois de atingir seu objetivo, o enreda em uma armadilha em que ele é morto com um tiro pelo próprio irmão adotivo. Ismael cega o irmão de criação por inveja de sua cor branca, e quando Elias o visita e dorme com Virgínia, Ismael o mata de forma pérfida.

A tia e as primas de Virgínia invejam sua beleza, e ao mesmo tempo que maquinam a situação de estupro contra Virgínia (fato que a obriga casar com Ismael), criticam de modo hipócrita seu casamento com um homem negro. Invejam tanto o fato de Virgínia ter um marido rico, quanto o de ter um amante branco, a ponto de a denunciarem ao marido. Esses comportamentos são exemplos do que afirma Vitor HUGO (2007): “É no grotesco que caberão as paixões, os vícios, os crimes; é ele que será luxurioso, rastejante, guloso, avaro, pérfido, enredador, hipócrita” (p. 36).

Ismael estupra Virgínia para que possa se casar com uma mulher branca, de forma luxuriosa comete um crime sem sentir qualquer culpa. Sente desejo pela enteada e por isso também a cega, e para que ela o ame, subverte seus pensamentos convencendo-a de que é branco.

E como uma cobra venenosa e rastejante, Virgínia mata os filhos um a um tornando seu ventre negro pela cor e pela morte. Sua figura como mãe é disforme e horrível, e quando tem a chance de exercer um papel diferente, Ismael toma para si Ana Maria.

VIRGÍNIA – Eu sei que você não esqueceu, nem esquecerá!  (rosto a rosto com Ismael). Quando Ana Maria nasceu, o que é que você fez? Se debruçava sobre a caminha. Durante meses e meses vocês dois e mais ninguém no quarto; você olhando para ela e ela olhando para você. Assim horas e horas. Você queria que ela fixasse a sua cor e a cor de seu terno:  queria que a menina guardasse bem (riso soluçante) o preto de branco.  (erguendo a voz) Você não falava, Ismael, para que ela mais tarde não identificasse sua voz.  Um dia, você a levou.  Ana Maria tinha um ano, dois anos, seis meses, não sei, não sei … Você a levou e eu pensei que fosse para afogá-la no poço; e até para enterrá-la viva no jardim.  (com espanto maior) Só não pensei que você fosse  fazer  o  que fez  – uma  criança, uma  inocente – e você pingou ácido nos olhos dela, ácido!  (quase histérica)  Você  fez  isso,  fez, Ismael? Ou eu é que sou doida, que fiquei doida, e tenho falsas lembranças? (suplicante) Fez isso, fez, com a minha Filha, a de Elias?

ISMAEL – Fiz? (RODRIGUES, 1946, p. 68-69)

 

Ismael nutre por Ana Maria uma paixão viciosa, principalmente pelo fato de ela ser branca. Nesse sentido, esse contraste entre personagens tão díspares se apoia na tese de Vitor HUGO (2007): “Na poesia nova, enquanto o sublime representará a alma tal qual ela é, purificada pela moral cristã, o grotesco representará o papel da besta humana” (p. 35).

O sublime neste caso é representado pela alma virgem e pura de Ana Maria, que sucumbe às paixões doentias da mãe e do padrasto, sendo encerrada em um caixão de vidro. E também por Elias que não consegue resgatar o irmão e, enganado por Virgínia, morre tragicamente.

ISMAEL – Deixe a minha casa!

ELIAS – Vou, mas cedo ou tarde prestarás contas a Deus!

(Caminha penosamente, para a porta.)

ISMAEL (depois que o outro chega à porta) – Elias!

ELIAS (com o rosto exprimindo esperança) – Me chamou?

(Volta, numa espécie de deslumbramento.)

ISMAEL (ainda assim, duro) – Em intenção do meu filho que morreu, te deixarei ficar aqui, mas só até amanhã, nem mais um dia.  Nos fundos tem um quarto; fique lá e não saia!

ELIAS – Não sairei, Ismael.

ISMAEL – Água, comida, tudo levarão para você. Outra coisa:  eu tenho uma mulher. Nem sonhe em falar com ela.  É como se ela fosse do céu e você da terra, da terra, não, da lama.

ELIAS – Queres que eu jure? (RODRIGUES, 1946, p. 15)

 

São dois pares opostos: o grotesco – representado por Virgínia e Ismael, que se aproximam por suas ações criminosas e personalidades contraditórias e abomináveis. E o sublime – representado por Ana Maria e Elias que morrem vítimas cruéis e amaldiçoadas, sem conseguirem redimir a humanidade ao casal protagonista. Assim, “da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão complexo, tão variado nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações, e nisto bem oposto à uniforme simplicidade do gênio antigo” (HUGO, 2007, p. 28).

A partir desses pressupostos, pode-se dizer que Anjo Negro é uma representação grotesca de uma sociedade doente e intolerante, que torna seus personagens ao mesmo tempo vítimas e criminosos, frutos da hipocrisia e da maldade. A peça é um retrato expressionista, pois exibe a substância intrínseca do homem, mesmo que assustadora, e problematiza de forma extrema e exagerada a necessidade de transformações sociais e de aceitação das diferenças.

 

Bibliografia

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*Doutoranda UFSC