Encontro com Piglia – Aurora Bernardini

Encontro com Piglia

Aurora Bernardini*

 

Ricardo Piglia

Ricardo Piglia

Meu encontro com Piglia ocorreu numa das salas atrás do palco as Livraria Cultura, em São Paulo, no Conjunto Nacional, onde ele estivera conversando com a plateia num mês do ano de 2011, por ocasião do lançamento de seu último romance.

A conversa versava sobre curiosidades e valores da tradução, uma vez que se tratava do romance (Alvo noturno era, justamente, o romance que estava sendo lançado em São Paulo, naquela noite), e o romance – dizia Piglia – nasce ligado à tradução.

– Quem é o herói do romance? – Silêncio.

– Ora, o herói do romance é o leitor. Por isso o tradutor tem que ser de primeira qualidade, para não provocar maus efeitos no leitor. Vejam Dom Quixote. Vocês acreditam que Borges o leu primeiramente em inglês? O efeito foi surpreendente. “Quando li em espanhol” – comentou –“ é que pude julgar a tradução: fora para mim a leitura de uma construção filosófica.”

Aí é que está: o tradutor luta contra o equívoco. Esta é sua primeira tarefa, pois sempre há algum equívoco. Sabem como foi traduzido Dom Quixote para o chinês? Como “História do cavaleiro louco.”

E Faulkner?: “Las palmeiras selvagens.” Ora, a Borges não agradam os tradutores barrocos. Ele sente isso logo no começo. Sente que há um embate entre o estilo do tradutor e o estilo do autor. Uma luta, mais do que um embate. Por isso o tradutor não pode traduzir qualquer coisa. É preciso que os estilos combinem: é o primeiro passo.

Como o que ocorre na tradução de poesia, que só pode ser feita por poetas (Haroldo de Campos, Octavio Paz, Emílio Pacheco (do México)), os quais a convertem em um trabalho original, próprio. O que aconteceu quando Italo Svevo preparou, para o italiano, a tradução de  Anna Livia Plurabelle, junto com Joyce. Nela os dialetos permanecem, como no original. Foi um evento linguístico na Itália!

Há casos de escritores que traduzem a si mesmos, mudando de língua. É o caso de Joyce, traduzindo-se para o italiano. É o caso de Beckett, traduzindo-se para o francês. Por que mudar de língua? perguntaram a Beckett. Porque aí posso escrever mal!

É o que sucedeu com Witold Gombrowicz. Um polonês que viveu na Argentina e que aprendeu um espanhol sui generis e escreveu uma grande novela Ferdydurke. Quando regressou à Europa, depois da guerra, recebeu um reconhecimento internacional. Vivia em pensões, em Buenos Aires,  desde 1939. Sobrevivia jogando xadrez e recebendo alguma coisa dos adeptos que ia criando. Uma experiência notável: ler Ferdydurke no original e depois na tradução.

Em Transatlântico ele exalta   a zona do porto, a zona Sul, as formas baixas da vida, a contra-educação. Em 1947, já famoso, deu uma conferência na Calle Sarmiento – no centro: Ortega y Gasset também dera uma conferência lá, às sete da tarde, a hora do crepúsculo. Lá também deram conferências em francês Victoria Ocampo e Roger   Callois.  Gombrowicz  falou naquele argentino lá dele, para que a língua não lhe soasse vazia. Começou perguntando: “Quando teremos uma língua para a nossa ignorância? O escândalo é que não temos uma língua para a nossa ignorância!”

Do que era feita a língua dele? Por incrível que pareça: de traduções. Traduções que ele ia fazendo, na cabeça dele, das expressões polonesas, naquele espanhol improvisado, como língua perdida da cultura.

Em 1958 eu vivia em Mar del Plata e, numa livraria, encontrei  In old times, de Hemingway. Parece mentira, mas há livros que caem em suas mãos como que por força do destino. Fiquei tão empolgado que comecei a traduzir Out of season com meu inglês de então ( tinha dezoito anos) e descobri o princípio: “pode-se omitir qualquer coisa, quando se sabe o que omitir”. O importante é ler uma obra como se você fosse outro leitor.

É assim que li Borges (A forma da espada), como se eu fosse outro leitor. Quando contei a Borges que eu havia traduzido Hemingway ele me disse: “Ah, então você também é escritor?!” Só que Borges não está na linha de Hemingway. A forma dos dois é clássica, mas o final, em Borges, é explicativo. Nós líamos Hemingway para escapar de Borges: era o conto que escapava das regras da poética de Poe.

 

*Professora da USP