Minha Primeira Publicação Científica – Ivan Conte

Minha Primeira Publicação Científica

 Ivan Conte *

 

Eram tempos em que um ensaísta, ainda hoje completamente desconhecido, procurava a sua primeira publicação. Enviara múltiplos artigos para diferentes requisitados periódicos. Num escavar arqueológico, tudo que sabemos hoje sobre a existência do ensaísta se dá através de uma única e salvadora publicação por ele conquistada – como vocês sabem leitores, os manuscritos são queimados após o veredicto editorial, e infelizmente não teremos como julgar se tratar ou não de uma grande perda a nossa querida literatura. Em seu pequeno recorte de vida, após a boa-nova da primeira publicação, misteriosamente nunca mais dera sinais, como se nunca dantes houvesse existido, ou, como se sua existência fosse um eterno ensaio, onde a conquista do palco significaria sua desaparição. Se não sobraram os originais dos primeiros ensaios de nosso herói, restaram os pareceres dos editores, que aqui compartilhamos por sua curiosidade exótica:

I parecer. Há qualidades, tece a narrativa de maneira curiosa e criativa. Contudo consegue ser superficial em todos os assuntos abordados, aparenta querer abranger o mundo em algumas páginas, e além é fragmentário e fantasioso.  Encerra capítulos de modo vago não deixando esconder que aquele assunto o levaria a ter de realizar uma pesquisa mais profunda – não possuí a aura que Walter Benjamin um dia falara. Carece de profundidade, denota leituras incompletas sobre os assuntos tema, quem sabe focar em uma das temáticas apenas, e deliberadamente mergulhar.

II parecer. Um texto verdadeiramente profundo, hábil e de uma leitura agradável. No entanto específico em demasia, sabe-se que especificidade em balde faz perder a noção do todo, e esta noção nos é fundamental.  Demonstrara extrema maestria em narrar o que é microscópico, mas esquecera no entanto a importância do conjunto. Já dizia um dos duplos de Pessoa[1], “o especialista é um homem que sabe qualquer coisa de uma coisa e nada de todas as coisas”.

Nisto nosso herói se orientalizou, buscou o equilíbrio:

III parecer. Prezado, encantados estamos. Não se trata de um texto que peca em buscar uma profundidade sem esquecer uma noção mais abrangente do Cosmo. Uma critica diríamos relativa, que mostra múltiplos enfoques, mas nesta suavidade quase zen, não atinge nem a profundidade extremista e nem o erro da abrangência total, o que é deveras por nós apreciado. Faltara transparecer um posicionamento menos vago em teu discurso. Já dizia Shakespeare, iniciada a guerra havemos de ser feras[2].

Foi quando o herói passou a adotar aleatórios pseudônimos:

IV parecer. Saboreamos a sua subjetividade, teu texto cativara nossos avaliadores, mas de algum modo termina recusado por alguns detalhes – quase insignificantes, mas suficientes para decretarmos uma sentença custosa para nós, considerando sua compreensão, há de julgar justo. Demasiado subjetivo, necessita mais fontes, de embasamento teórico, não basta ideias ricas, precisamos descobrir de onde elas florem, quais os paralelos, os possíveis diálogos, talvez se enviastes a uma revista de ficção onde pudesse justificar com a epifania ou sexto sentido de que fala, mas somos aqui científicos, e uma linguagem impessoal nos é mais agradável – se riscasses o eu de teu discurso, e simplesmente mudasse a conjugação, quem sabe?

Em sua adorável quinta tentativa, desta feita escolhera um nome artístico:

V parecer. Cara escritora, desde Florbela Espanca não deslumbramos um nome tão poético, e por nós é extremamente prazerosa sua linguagem impessoal, uma sensibilidade feminina só possível as divas, seu equilíbrio quase poético de equilibrar especificidade com uma noção crítica em amplitude, demonstrando como nunca dantes vimos em outros escritores uma invejável erudição. E é com grande tristeza, por talvez, um excesso de citações, pois nós gostaríamos de um texto sim, nestes moldes e rico em problematizações como bem nos trazes, mas  que quebre também algumas tradições no estilo cientifico engessado, o seu caso parece um tanto dentro das normas e da tradição, principalmente no quesito citar, em como citar. Precisa uma pitada mais de ousadia, na contemporaneidade o que é fragmentário nos apetece…

Nisto foi para o deserto e de lá voltara mais sábio:

VI parecer. Simplesmente irretocável, uma obra de arte, corajosa e audaz, um texto de um estilo inigualável e corajoso em sua abordagem. Fragmentário sem premeditar, completo sem prever, zen sem em cima do muro posar, como uma leoa protegendo seus filhotes se comporta nos momentos chaves – pessoalmente eu adorei e no mel de teus versos profanos naveguei! Também utiliza verbos de modo incomum, não comete aquele exagero de abolir a primeira pessoa do singular, tão comum em periódicos científicos clichês, ou, utilizando a primeira pessoa pluralizada como se uma instituição fosse, também não possuí a frieza de um discurso impessoal, sem vida – mas uma verdadeira alquimia da conjugação enlaçada a um equilíbrio dos pronomes pessoais sem igual. Porém é justamente por sua coragem, por ser um texto demasiado polêmico, e dentro do contexto político que estamos envolvidos em nossa linha editorial, e entenda que temos alguns saudosos patrocinadores, descontextualiza e radicaliza, destona com relação aos demais. Sentimos muito, outras portas estarão abertas e se publicares teu manuscrito, por favor envie-me uma cópia, ficarei ansioso com teu sucesso, deixo-te meu endereço para que possamos conversar coisas de vanguarda. Com alguma tristeza acendo esta vela e derramo gotas de fogo em tua obra, sinto muito! Espero apenas que eu não esteja a queimar o original, suponho que não foste estúpido de não guardar consigo uma cópia?

Não pense que o final deste literal ensaísta será triste, realizara uma misericordiosa e perseverante última tentativa…

 

(VII. ???)

 

Justamente recortara e colara os pareceres de todos os editores, esculpira aqui e ali, e em poucos segundos, nomeara como Minha Primeira Publicação Científica, e nestes moldes enviara. Coincidência mística ou não, neste exato momento, não me surpreenderia, que estivesses lendo aquela publicação sobrevivente que vos falo.

 

outubro de 2015,

(dedicado aos originais barrados nos bailes editoriais

e também aos ocultos pareceres editoriais, também eles à margem do palco)

 

* Ivan R. Conte atualmente escreve “Inacabada Obra, Inacabada Vida”, dissertação sob orientação do prof. Sérgio Medeiros. No passado escrevera “História com K.” para o curso de História.

 

[1] Álvaro de Campos.

[2] Escrito de memória, podendo variar ou nem pertencer a Shakespeare, cabe ao leitor garimpar pela raiz-mãe desta frase. Já que o autor encontra-se ocupado, acabei de enviar um telégrafo ao editor da revista portuguesa Borboleta Babilônica, mas temo que a resposta poderá demorar, enfim…