VERSOS INÉDITOS DE AFFONSO ÁVILA – Kaio Carmona

VERSOS INÉDITOS DE AFFONSO ÁVILA

Kaio Carmona[1]

Affonso Ávila

Na cena literária brasileira, Affonso Ávila é uma dessas raras vozes que apresentam um recorte singular da poesia brasileira merecedora de maior atenção por parte da crítica e dos estudos acadêmicos na contemporaneidade. Sua poesia permite observar um trabalho intenso e transformador como um fazer crítico, em meticulosa inteligência e engenho linguístico, à medida que exibe um projeto único e complexo, em que a sensibilidade lírica dialoga abertamente com a redescoberta da tradição e a novidade do presente. Como bem disse Júlio Castañon Guimarães na orelha do livro Poeta poente, publicado em 2010: “Uma das obras mais consistentes e importantes da poesia contemporânea brasileira. Esse conjunto de rara amplitude crítica e criativa apresenta um desenvolvimento que quase se poderia dizer sistemático”.

Os versos inéditos deixados por Ávila mantêm a excelência de todo seu percurso e nos dão mais um exemplo de uma “poesia da coragem”, para lembrar as palavras de Antônio Sérgio Bueno. Nos últimos poemas, o impacto lírico dos versos revela um trabalho consciente com as pausas, as incompletudes, próprias de seu objeto, convidando o leitor, como num diálogo, a participar da formação de sentidos. A sonoridade dos versos imprime certo ritmo, cadência, que, semanticamente, pedem sequência, novo fôlego, e Affonso Ávila responde certeiramente sobrepondo ao ritmo imagens ativadas pela leitura de uma tradição que agora entra como processo de estruturação de sua poesia, como corrente símbolo. Em uma atmosfera sedutora, o leitor encontra a potência de uma imaginação que percorre todos os instantes da confecção literária. Affonso Ávila ainda tem muito o que dizer e o diz numa linguagem conquistada com engenho e arte, atualizando não só uma linguagem eminentemente experimental, mas, também, a constante busca de uma comunhão da tradição com a lucidez do presente.

[1]                    Doutor em Estudos Literários pela UFMG, realiza pesquisa de Pós-Doutorado sobre a poesia de Affonso Ávila.

 

estigmas

Affonso Ávila

 

vede o corpo tatuado

lede o corpo apalavrado

de lado a lado palavras

soltas símbolos de que

insígnias de peito braços

acasos de rosas traços

sós estilhaços de membros

mãos atadas como nadas

figuras de cães e pássaros

abstracionismos de manchas

de saqueados navios

navios de velas acesas

por simulado desenho

caracteres cicatrizes

de ontem dias repassados

a tinta igual do presente

acréscimos de matizes

a cada hora matizados

bocas abertas de dentes

e o que de trás visto à frente

retratados capitosos lábios

que misturaram fel mel

do sabor nenhum ressaibo

tudo claro-escuro tudo

tatuagem