O essencial é completamente visível aos olhos – Rosario Lázaro Igoa – Tradução: Giordana Antônia Sfredo

O essencial é completamente visível aos olhos

 

Rosario Lázaro Igoa

Tradução: Giordana Antônia Sfredo

 

Rosario Igoa, escritora uruguaia

A agulha perfurou a coxa com precisão, afundou na carne por uns instantes e saiu com a mesma diligência. O corpo que, alguns segundos antes, se debatia sobre a mesa de metal, alta e fria, no meio do consultório, sentiu a intromissão da agulha e deteve-se por um instante, para em seguida retomar o movimento com um espasmo violento. “Efeito tardio”, pensou o veterinário.

De um lado, escutavam-se os latidos de vários cachorros enclausurados em jaulas muito juntas, esperando que os seus donos voltassem para buscá-los, perfumados e escovados. Alguns tinham até coleiras no pescoço e enfeites nas orelhas. Os latidos ocupavam o ar do consultório, enchiam-no de sons aflitivos, saindo de focinhos ansiosos e jaulas apertadas. Do outro lado da sala, vinha o ruído constante de uma máquina de escrever, ou do teclado de um computador simplesmente, furando a parede divisória, tomada pela umidade. Um pôster de cavalos, um calendário antigo e o diploma de veterinário adornavam a parede contrária ao escritório da máquina de escrever, ou do computador, impondo-se sobre as bolhas de umidade e vários pregos que já não eram utilizados. Com esforço, talvez, o cachorro veria alguma imagem significativa nas manchas dessa parede, mas já tinham passado os minutos e a anestesia pouco a pouco diminuía o seu campo de visão. O sono não estava muito longe.

Tentou fixar os olhos em um pôster, mas o seu olhar escorregou como se estivesse equilibrando-se sobre uma gelatina. “Olhos de boi”, pensou o dono, que tentava adivinhar em que pensaria o seu cachorro, a ponto de perder os testículos. Já tinham se passado vários meses de perseguições constantes na vizinhança, nas quais o seu cachorro ia atrás de qualquer cachorra no cio. Também tinham ocorrido brigas, muitas brigas, às quais o seu cachorro invariavelmente perdia e voltava para casa com buracos de caninos no pescoço, ou com as orelhas rasgadas. Uma vez, voltou com o rabo em dois pedaços. “Se fosse assim briguento, mas ganhasse, deixaria que continuasse sendo tão macho quanto até agora”, pensou o dono e coçou a cabeça. O veterinário esperava com paciência que o cachorro adormecesse de uma vez e que fosse a esse fundo do mar ao qual a anestesia parecia arrastá-lo.

— Os gatos demoram o mesmo que os cachorros para dormir — disse com seriedade e certo ar científico, arrumando a sua bata suja, algum dia, branca. Como um contraponto, mencionou algo sobre o clima, depois acrescentou um comentário irrelevante sobre um carro novo, e também sobre a moçinha do mercadinho e os shorts cada vez mais curtos. Para arrematar, e como se quisesse desculpar-se pela cor da bata, e pelas gotas de sangue em ambas as mangas, disse: — Hoje me trouxeram um cusco atropelado, a polícia passou por cima dele. A recém terminei de colocar as tripas dentro do corpo. Guinchava sem parar, como os porcos a caminho do abate, mas ninguém pagava a anestesia, por isso, teve que ser a seco. Fiquei três horas embutindo e costurando. E se salvou… Como são fortes esses cachorros de rua.

O dono assentiu com a cabeça, tentando não pensar nas tripas soltas de um cachorro, ou no corpo como um saco de batatas. Ou inclusive em um intestino como uma longa víbora cheia de merda. Enquanto isso, através da porta entreaberta, o olhar do cachorro prendia-se nos carros que passavam, cada vez mais borrados. Já não levantava a cabeça; a única coisa que se movia no seu corpo eram os olhos, num lento vai e vem. Uma mancha cinza, outra azul, outra branca, e, pouco a pouco, não via mais nada, caía.

Em um momento, o corpo de pelo marrom com manchas de várias cores deixou de mover-se.

— Já está pronto, não? — perguntou o dono, agarrando a pata peluda e deixando-a cair, fraca e entregue. Viu que as unhas não eram todas da mesma cor, e sim uma branca e outra preta, e outra branca de novo, mas foi por um instante somente que se demorou nesse detalhe, justamente antes de deter-se nos pelos da barba do seu cachorro, tão longos e tão característicos.

O veterinário já cortava a pele rosada ao lado do escroto. A carne abria-se, um sulco discreto do qual brotava um pouco de sangue. O dono conteve a respiração e tentou não olhar, mas a precisão do corte o atraia de uma maneira brutal; quis ele mesmo ter a coragem de poder arrancar os testículos do seu próprio cachorro e não delegar essa tarefa a um veterinário de bata imunda. Quis colocar a mão dentro da carne quente e tirar como um troféu os dois pedaços de carne, reduzidos em tamanho, mas “tão essenciais na conexão com o resto das coisas”, pensou. O pesar invadiu-lhe o peito: nunca seria capaz de fazê-lo. Suspirou com angústia e tentou concentrar-se na incisão do veterinário, que já estava chegando ao seu fim.

— Agora tiramos as bolas em um piscar de olhos, dou dois ou três pontos, e missão cumprida — disse o veterinário, enquanto o dono do cachorro odiava-se uma vez mais. Perder os ovos, perder a conexão com a terra, perder o poder de dar vida, de saciar-se, pensou consigo, ao mesmo tempo em que seus olhos voltavam para a incisão, ao bisturi que agora recortava os testículos da carne que ainda os sustentava. Ocorreu-lhe que poderia negar-se, que ainda tinha tempo para evitar a desgraça, mas tampouco se moveu. O cheiro do sangue estava revolvendo o seu estômago, e apoiou-se na maca de metal para não cair.

De repente, ouviu-se um latido. O dono do cachorro olhou para o seu amigo deitado e viu que não tinha sido ele. Virou para trás e então pode constatar de onde vinha. Um homem gordo tinha entrado pela porta da sala. Trazia um dálmata atado por uma guia. Parecia conhecer o veterinário, que o cumprimentou com o bisturi cheio de sangue erguido:

— Vim ver se você corta as cordas vocais dele — disse o dono do dálmata, com impertinência. Tinha na voz um rastro de sotaque italiano, ou de trambiqueiro. — Não para de latir, vai nos deixar loucos.

O cachorro efetivamente não parava de latir, mas dentro da focinheira que tinham posto nele. O som saia grotesco, e um pouco tétrico. Era como se apertassem o seu focinho, fechando-lhe a boca, e logo o costurassem com fio de náilon para que não latisse. Essas interrupções não eram algo apropriado para aquele momento, para a operação à qual o outro cachorro estava sendo submetido. O dono achou injusto, triste, atroz. O gordo do dálmata sequer tinha se dado conta de que havia outro cachorro sobre a maca de operações, e continuava gesticulando e falando alto, contando o martírio de ter um cachorro que não parava de latir.

— Eu não faço essas operações — disse finalmente o veterinário, enquanto tirava um dos testículos e o jogava em uma bacia de metal ao lado da maca. O dono do cachorro suspirou com resignação. O gordo, por sua vez, esboçou uma careta estranha, parecia ofendido. — Se você conseguir alguém que as faça, parabéns, mas eu não.

— Mas é o meu cachorro, e você só faz o que eu peço — respondeu o outro, com prepotência.

O pedaço de carne vermelha, antes repositório de espermatozoides, fonte dos requisitos mais essenciais da vida, contrastava com o frio do metal onde havia sido abandonado, observou o dono. O gordo já atravessava a porta da sala, de volta à rua.

— Não sei quem pensam que são — disse o veterinário. Estava tirando o segundo testículo, que atirou como carne morta na mesma bandeja onde estava o outro. — Decidem ter um cachorro e depois enchem o saco porque late. Vontade de cortar as cordas vocais deles… Que gente de merda.

O dono do cachorro pensou na identificação dos veterinários com os cachorros, com os gatos, talvez com as vacas. Não achou possível a identificação com uma tartaruga, e tampouco com um canário. Lembrou-se dos canários na sua casa, aqueles seres andrógenos, dos quais era impossível determinar o sexo. Os canários sempre morriam por umas verrugas pequeninas, até terminarem de patas pra cima, posição na qual tampouco se sabia de que sexo eram. Agora seu cachorro seria um deles. O corpo com pelo de várias cores permanecia alheio a todos aqueles pensamentos, num estupor induzido. Restavam alguns minutos de anestesia, que o dono gostaria que durassem mais que sessenta segundos cada um, para que não chegasse o momento no qual teria que contar ao seu amigo o que tinha acontecido durante esse sono.

In: Peces mudos. Montevidéu: Criatura, 2016.