Como o mundo foi salvo – Stanisław Lem – Tradução – Piotr Kilanowski

Como o mundo foi salvo[1]

Stanisław Lem

Tradução Piotr Kilanowski*

   

Stanisław Lem

Stanisław Lem

Uma vez, o construtor Trurl fabricou uma máquina que sabia fazer tudo o que começasse com a letra n. Quando ficou pronta, para testá-la, mandou-lhe que fizesse novelos de náilon e os pusesse em ninhos, que ela também tinha feito, depois os nacarasse para em seguida jogar tudo num nicho feito de nogueira e níquel e rodeado de ninharias, nacos de nardo e narcóticos. A máquina executou as suas instruções à risca, mas como Trurl ainda não tinha certeza se ela funcionava bem, ordenou-lhe que fizesse na seqüência nimbos, naftalina, nêutrons, narizes, nenúfares, ninfas e natrium. Ela não soube fazer a última coisa e Trurl, bastante preocupado, exigiu que lhe desse explicações.

– Não sei o que é – justificou-se a máquina – Nunca ouvi falar disso.

– Como assim? É apenas o sódio. O metal, o elemento…

– Se se chama sódio, começa com s e eu só sei fazer coisas com n.

– Mas em latim chama natrium.

– Meu querido – disse a máquina – se eu pudesse fazer tudo o começa com n em todas as línguas possíveis, seria uma Máquina que Pode Fazer Tudo o que Começa com Qualquer Letra do Alfabeto, pois alguma coisa em alguma língua estrangeira certamente começa com n. Não tem disso, não. Não posso fazer mais do que aquilo que você inventou. E nada de sódio.

– Está bem – concordou Trurl e mandou a máquina fazer a noite. Esta obedeceu de imediato. Fez uma noite, nada nítida, cheia de negrume. Então Trurl convidou o construtor Clapáucius, apresentou-o à máquina e tanto elogiou suas capacidades extraordinárias, que este, sem deixar transparecer, ficou irritado e pediu para que também pudesse ordenar algo à máquina.

– Sem problemas – disse Trurl – mas tem que começar com n.

– Com n? – disse Clapáucius – Muito bem. Que faça neociência.

A máquina rugiu, e depois de um instante a praça em frente à casa de Trurl ficou cheia de neocientistas.

Eles armavam confusão uns com os outros, escreviam em livros grossos, outros roubavam os livros e os rasgavam em pedaços. Ao longe podiam-se ver fogueiras nas quais assavam os mártires da neociência. Aqui e acolá algo estourava e erguiam-se estranhas colunas de fumaça em forma de cogumelo. Todos na turba matraquevam ao mesmo tempo, de modo que não dava para entender uma palavra. De quando em vez compunham memorandos, petições e outros documentos. Aos pés dos que berravam estavam sentados alguns anciãos solitários, que escreviam com letra miudinha nos pedaços de papel rasgado.

– E aí? Nada mal, hein? – exclamou Trurl com orgulho – É a cara da neociência, você há de convir!

Mas o Clapáucius não estava de acordo.

– O quê? É essa turba que você chama de neociência? A neociência é algo completamente diferente!

– Então, por favor, diga o que quer, e a máquina logo vai fazer – disse Trurl sentido. Mas o Clapáucius não sabia o que dizer e anunciou que daria mais duas tarefas à máquina, e que se ela conseguisse realizá-las, admitiria que ela estava funcionando apropriadamente. Trurl concordou e Clapáucius ordenou à máquina que ela fizesse o negativo.

– O negativo?! – vociferou Trurl – Mas que raio é o negativo? – É o outro lado de tudo, o oposto do positivo, como é óbvio – respondeu Clapáucius tranquilamente – Por exemplo, como se você estivesse virando as coisas do lado do avesso, o negativo de uma imagem, nunca ouviu falar? Pare de fingir que não compreende. Muito bem, máquina, mãos à obra!

A máquina, no entanto, já estava trabalhndo fazia um tempinho. Primeiro fez antiprótons, depois antielétrons, antinêutrons, antineutrinos, e continuou a trabalhar por um bom tempo até que criou um montão de antimatéria da qual devagarinho começou a se formar um antimundo, parecido com uma nuvem de brilho estranho.

– Hmmm… – murmurou Clapáucius muito descontente – Isso é que é o negativo? Bom, digamos que sim…que seja, para ficarmos na santa paz…Mas eis a minha terceira ordem: máquina, faça o Nada!

A máquina ficou parada por um bom tempo. Clapáucius, contente, começou a esfregar as mãos, mas Trurl disse:

– Você esperava o quê? Você mandou ela fazer nada e ela nada está fazendo!

– Nada disso, eu lhe mandei fazer o Nada, o que é bem diferente.

– Pffff! Fazer o Nada e nada fazer é a mesma coisa.

– De jeito nenhum! Era para fazer o Nada, mas nada fez, então ganhei. Pois o Nada, meu caro colega sabichão, nada tem a ver com o teu banal nada, produto da preguiça e da inatividade, mas, sim, com o Nada ativo e dinâmico, isto é, com a Não-existência, perfeita, única, onipresente e suprema na sua própria não pessoal pessoa.

– Você está chateando a máquina! – exclamou Trurl, quando de repente a voz de bronze ressoou:

– Parem os dois de discutir numa hora dessas! Eu sei o que é a Nulidade, a Não-existência ou o Nada, assim como o Nenhum, a Negação e o Não-ser, pois todas estas coisas começam por n, n de Neca de pitibiriba. Melhor contemplarem o seu mundo pela última vez, pois logo deixará de existir…

As palavras gelaram nas bocas dos construtores irados. A máquina realmente estava fazendo o Nada, removendo do mundo,ordenadamente, uma por uma, várias coisas, que desapareciam como se nunca tivessem existido. Já tinha eliminado as neguas, os nargalhos, os nibungos, as nasbeixas, as nalcarças, os nhademas, as nuderagas e outras ninharias. Em alguns momentos parecia, que em vez de reduzir, diminuir, eliminar, retirar, excluir e subtrair, a máquina aumentava e adicionava, pois liquidou sucessivamente com as normas, as noções, os narcóticos, o narcisismo, o nojo, a náusea, a necessidade, a negligência, os negócios, a nescidade, o nepotismo e o noticiário. Mas logo depois novamente a realidade parecia mais rarefeita ao redor deles.

– Uiuiui! – disse Trurl – Espero que não dê nada errado…

– Pfff, nem esquente! – disse Clapáucius – Dá para ver que ela não está fazendo o Nada Universal, só está produzindo a ausência de todas as coisas que começam com n. Nada vai acontecer, pois também essa sua máquina não vale nada!

– Engano seu – respondeu a máquina – De fato, iniciei com tudo o que começa com n, pois era mais familiar para mim, no entanto, uma coisa é criar algo e outra é apagá-lo. Posso apagar tudo, pela simples razão de ser capaz de fazer tudo, absolutamente tudinho que comece com n, então o Nada para mim não passa de uma brincadeira. Daqui a pouquinho vocês não vão existir e nem nada mais. Por isso, Clapáucius, me diga agora, por favor, que sou uma máquina universal e executo as ordens perfeitamente. Diga isso depressa, pois daqui a pouco vai ser tarde demais.

– Mas isto… – começou assustado Clapáucius e neste instante notou que estavam desaparecendo várias coisas, e não eram apenas aquelas que começavam com n. Já não os rodeavam mais as cambuzelas, os sapertalhos, os bacositórios, as larrazões, as rimundas, os sirliriços e os petifuns.

– Pare! Pare! Retiro tudo o que disse! Desista! Não faça o Nada! – berrava Clapáucius, mas antes de a máquina parar completamente, desapareceram ainda as riguiçarras, os bruguis, as prancaxeiras e as tarsangas. Só então a máquina parou. O mundo era uma visão aterradora. O céu ficou particularmente afetado: mal se via nele uns pontos isolados de estrelas, nenhum sinal das deslumbrantes tarsangas e guadolizes, que até então adornavam o firmamento!

– Ó céus, ó azar! – exclamou Clapáucius. – E onde estão as cambuzelas? E os meus queridos sirliriços? Onde pararam as suaves murfias?

– Já não existem mais e nunca voltarão a existir – disse calmamente a máquina – Executei, ou melhor só comecei a executar sua ordem…

– Eu lhe mandei fazer o Nada e você…você…

– Clapáucius, ou você é um idiota ou você finge ser um – disse a máquina -. Se eu fizesse o Nada subitamente, de um só golpe, deixaria de existir tudo, não apenas Trurl, o céu, o Universo, mas também você e até eu mesma. Quem poderia então dizer e a quem, que a ordem foi executada e que eu sou uma máquina eficiente? E caso ninguém dissesse isso a alguém, como poderia eu, que também não existiria, receber as devidas satisfações?

– Está bem, está bem, não vamos mais falar disso – disse Clapáucius. – Já não quero mais nada de você, mas por favor, minha linda máquina, por favor faça as murfias, pois sem elas a vida perde todo o seu encanto para mim…

– Não sei fazer isso, pois começa com m – falou a máquina. – É claro que posso criar de novo a necessidade, a nescidade, a nojeira, a negligência, a nocividade, a neurose, a nicotina e a normalidade, mas não espere de mim nada que se refira às outras letras.

– Mas eu quero que haja murfias! – bradou Clapáucius.

– Não haverá murfias – disse a máquina. – Olhe bem para este mundo, veja como está todo cheio de enormes buracos negros, cheio de Nada que preenche os abismos sem fundo entre as estrelas, veja como tudo ao redor ficou revestido com ele, como ele espreita por trás de cada migalha da existência! Eis a sua obra, seu invejoso! Não acho que as futuras gerações vão te bendizer pelo que fez…

– Talvez não descubram…talvez nem vão notar… – gaguejou empalidecido Clapáucius, olhando descrente para o vazio do céu negro, sem se atrever a olhar nos olhos de seu colega. Deixando Trurl ao lado da máquina que sabia fazer tudo que começasse com n, Clapáucius furtivamente voltou para casa. O mundo, no entanto, até hoje permanece esburacado com o Nada, assim como ficou no momento em que Clapáucius deteve o andamento da liquidação que ordenou. E já que nunca se conseguiu construir uma máquina que fizesse as coisas que começassem com qualquer outra letra, é de se temer que nunca mais haverá fenômenos tão maravilhosos como os sirliriços e murfias – pelos séculos dos séculos.

 

*Professor de literatura polonesa na UFPR, doutorando em literatura na UFSC.

 

[1]O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico  e Tecnológico – Brasil.

O tradutor agradeçe o inestimável revisão e sugestões de Eneida Favre