Conheça alguns semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013
Conheça alguns semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013 e suas obras
POESIA: Annita Costa Malufe, Luci Collin, Paulo Henriques Britto,
Sérgio Alcides, Sérgio Medeiros.
CONTO/CRÔNICA: Manoel Ricardo de Lima
******
“Quando Não Estou Por Perto” (Ed. 7 Letras), de Annita Costa Malufe
este seria o som constante quando
não estou por perto o som embaralhando
as letras este seria o contorno da
mobília a menina não teria mais do que
sete ou oito anos os cabelos enroscados
na escova quando não estou à altura de
dizer fugir este ou outro som ela não
teria mais do que sete ou oito anos
contornando a mobília de meias no chão
seria o som constante o embaralhamento das
letras a miopia grudada nas paredes não estou
à altura de dizer não alcanço a prateleira
em cima da pia os cabelos enroscados
na escova os rituais repetidos entre
os cômodos não estou à vista não estou
por perto quando não estou sinto
que posso tocar o chão fugir desviar das
mobílias me enroscar nas fibras da escova letras
embaralhadas a miopia espraiada na
paisagem quando não estou este seria o
som conhecido a imagem que se
acotovela não sei por que escurece tão cedo
antes mesmo do sono chegar antes mesmo
que as ruas se esvaziem por completo
======================================================
“Trato De Silêncios” (Ed. 7 Letras), de Luci Collin
AFÉLIO
O tempo deixou viver as miniaturas e as árvores assentem
como em todas as infâncias
e assim se identifica a docidão
Será mentira uma caneta que desliza
como se não fosse passos em falso:
qualquer movimento um da capo
Será mentira um fadário de todo dia colher as contas
e resignar-se depois das seis as margaridas dormem
Mentira que a voz perdura e que as pinceladas não borram:
nunca se poderá segurar um carmim
Entre todas as pétalas aquela que sobre o tapete
numa escuridão particular suspirará
a bailarina de lápis lazuli
Todas as verdades eram tão críveis quanto o fogo
menos uma
e sempre podemos confiar em uma porque:
era mentira
No baile serviçais banguelas e saltos inexecráveis
eram falsia
mas do passado não se requisita cabimentos
Tudo destramente ali ao lado das luvas e das chaves
tudo menos isto:
seus olhos numa escultura
sua gravidade cujo segredo instaurou libélulas
sua pele cheia de pontos perigosos
seu discurso onde incidiram traças
Galos e riachos insubjugáveis.
*****
CENA-MUDA
eu que era único
e indivisível
agora criei tentáculos
ávidos
que não controlo
roubam vermelhos vivos
que nem sei para que servem
desejam tanto, usurpam
violam cantos sagrados
espalham cinzas
riem
esbofeteiam
cinicamente esfarelam
pedaços lícitos de pão
distribuem as fichas
embaralham cartas
trapaceiam noites adentro
alheios ao meu desconforto
trazem ouro profano para casa
abarrotam mesas
e eu, mudo e multifacetado,
olho a insana riqueza
que meus próprios braços acumulam
e tentando escutar meu vão discurso
não consigo
porque as frenéticas mãos que não controlo
aplaudem ruidosamente
******
ONTIVO
Nos encontraremos e eu estarei atarefada
e você estará imerecível
e eu estarei cansada para o cafezinho
e você estará exausto para um cinema
e eu estarei amorfa
e você palimpsesto
e eu estarei rendida às evidências mais ocultas
e você descompassado às vivências absolutas
e eu estarei com pressa
e você naquela hora imprevisível
e eu estarei naquela hora portentosa
e você estará naquele momento incrível
e eu estarei naquela manhã chuvosa
e você estará naquela noite audível
e eu retrocederei até auroras
e você avançará aos ocidentes
e eu compreenderei infinitudes
e você desvestirá os contratempos
e eu deslizo pela superfície e vou embora
e você mergulha mar adentro e refloresce
*****
ESPÉCIE
vestido e tempo na caixa
só o relógio compreendeu o rigor dos pactos
as plantas do vaso não
o pó sobre os móveis não
as botas num canto não
e tudo fora de moda
vincos e adamascados
falar em silêncio
esperar pela conjuntura
regar imutáveis
acreditar naquele telefonema
é quase servir conhaque a fantasmas
até as escadas mentem
até o gelo no copo
a lâmina de rematado aço
deixa vazar árido murmúrio
rostos quedarão desconhecidos
depois de um tempo o entrevisto se firma
na lixeira a presença dura dos papéis rasgados
e por dentro um infinito de exclamações
======================================================
“Formas Do Nada” (Ed. Companhia Das Letras), de Paulo Henriques Britto
ECCE HOMO
Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa
de quem, achando pouco simplesmente ser,
requer o luxo adicional de parecer.
As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,
e nada como a negação da negação
pra efetuar tão delicada operação.
E pronto: está completo. O homem mais o androide,
imune a suave mari magno e Schadenfreude,
ser e não-ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.
**********
PEQUENO MANUAL DE RETÓRICA
1. Contei a mesma história
no mínimo mil vezes.
A lua semioculta atrás da nuvem:
um olho semicerrado.
2. Reclamei, esbravejei,
esperneei, ameacei.
O vento atravessava a noite
como uma faca repartindo uma romã.
3. Sem outra opção, recorri à justiça.
A qual, além de cega, escuta mal.
A chuva desabou na avenida deserta,
gargarejando nos bueiros entupidos.
4. Agora só confio
nas minhas próprias mãos.
A manhã
nasceu morta.
======================================================
“Píer” (Ed. 34), de Sérgio Alcides
Globo
Ida ao coração da treva.
Acha-se o mesmo sanduíche,
aura flácida de shopping,
enjôo de intransitivos:
convir, consumir, sumir.
Domingo da humanidade.
É o grande domo doméstico,
o velho parque temático –
a vida, visita-guiada
sem Virgílio entre tapumes
interativos balindo
sua música ambiente,
seu estímulo eletrônico.
Fique à vontade no horror,
senhor. Clique até salvar
a azia customizada,
senhor. Tecle até a morte
que está inicializando
seu game, senhor. Delete,
reset a senha, formate,
reconfigure o cadastro
do seu desastre, senhor.
De uma montanha-delivery,
nasce um ridículo Mickey
a pilha, e, made in Taiwan,
tomba tocando tambor.
***
Pasto
Esta paisagem é mais ou
menos um locus amoenus.
O campo, o rebanho, o céu.
Tirando a faia. Sem Títiro.
Com sacrifício do sátiro.
Em vez de avena, tevê.
Retoques de photoshop
no curral, na cor das águas.
O patrão não leu Virgílio,
mas paga o salário da ninfa
crente. O lobo amansou. Plena
é a vastidão das planilhas.
Onde pasta o gado idiota
que não dá leite, só arrobas.
Além da bosta, que exala
perfume de bodyshop.
***
A onça
A barba flui desespetando-se do rosto e da figura.
Cada vez mais esbranquiçada, como o peito batido de pedra.
Leão descansa junto dele, sabendo que é só um cachorro.
Que também já perdeu dente e envelhece com ele nesta margem.
Que foi mordido de cobra e agora manca de uma pata.
Anônimo, jerônimo, o assentado baixa os olhos para o rio.
Então a criatura se dispõe a ser pintura.
A luz declina, uns assobios de ferrugem vêm do paredão da rocha.
– É o birro.
Ao pé de um toco, o escorpião denota a pinça de uma expiação.
E a leve turvação da mosca pousa na caveira de um boi muito remoto.
Olhando o rio, o homem fala consigo.
– Você só acha nela garra e presa.
Mas não se mostra a onça que ainda ronda sua lembrança.
======================================================
“Totens” (Ed. Iluminuras), de Sérgio Medeiros
A)
A TROMBA ALBINA/A PREGUICA ALBINA
a tempestade rompe o toldo branco
agora torcido e pendente sobre as mesas úmidas
como uma imensa tromba albina
pinga gotas pesadas
* * *
o saco de plástico sobe
vagaroso da grama
ultrapassa a serpentina do muro
faz sombra na calçada
gruda-se como uma preguiça
albina num alto galho seco
respira ali levemente
B)
os morros estão avermelhados
e diante deles uma vela rubra
segue na direção do sol
minuciosamente
a água fervilha
A)
a sombra do cavalo trotando na praia
não é esfiapada nem saltitante
encolhe na areia úmida
B)
UM
HAIKU DE KYOSHI (1874-1959)
kyoshi lança um inseto na escuridão – ela é profunda
======================================================
Conto/ Crônica:
“Jogo De Varetas” (Ed. 7 Letras), de Manoel Ricardo De Lima
Fiá-zaia
É sempre muito estranho voltar a esta casa. Mas não como agora, desta vez, em que as venezianas da janela mais próxima e da parede que dão pro quintal se romperam, estão puídas, muito cupim. Madeira velha, tempo, desmazelo, abandono e mais uma série de descuidos. E aí, vem esses bichinhos, sentam e comem tudo, uma merda. É um aviso de que não se pode deixar de prestar atenção às coisas. Gosto de sentar sem roupa no chão do quarto, é claro demais, tem uma luz violenta socando o olho, é calor e me dou conta que há arbustos e muito vento lá fora. A areia fina da praia e o barulho do mar têm força e rasgam a casa. Uma canção sai do vizinho e junto, desafinada, entra a casa com a areia, o barulho do mar. A voz do vizinho é horrível, a canção é desagradável.
Meto a mão na bolsa que trouxe a tiracolo, procuro um pacote antigo feito com papel marrom, enrolado com barbante, frouxo: um maço de fotografias coloridas. Tenho medo de perder a mão dentro da bolsa. Espalho as fotografias sobre a cama. Nas fotografias algumas pessoas aparecem rindo, outras pessoas aparecem correndo e todas aparecem com suas sombras enviesadas para o mesmo lado. Menos uma.
Meu corpo é rude, tenho feridas nele, espalhadas. Estão roxas, inflamadas, têm casca. Retiro as cascas e como sempre que tenho fome, faço isso desde muito pequeno. Há mais fotografias dessa mesma pessoa em que a sombra difere e pende sempre para um mesmo lado contrário a todas as outras, torta. Tento separar estas fotografias rapidamente das outras, numa pilha, a meu lado. É esta imagem impressa em preto e branco, alguém com uma sombra torta, guenza, que se repete continuamente para a mesma direção, que me faz arrastar o corpo no chão, torcer o corpo no chão, completamente nu, até o soalho velho e afiado desta casa cortar com as felpas primeiro o meu braço direito, depois minhas costas e a lateral da perna direita que se comprime nas dobras dos joelhos, formando um V para trás. Reparo um fio grosso de vômito que lava o soalho e mistura areia, o barulho do mar, poeira, favor, sangue, pedaços de pulmão e algo do conchiglione recheado com abóbora de antes de ontem à noite.
Uma dor nos ombros
Foi embora muitas vezes. Isto é muito cansativo. Ir embora uma vez, vá lá, já cansa, mudança, as caixas, coisas, casa, a memória, a vida, a gente que não vai, um buraco sem tamanho, o tanto que vai junto e o tanto que não vai, mas ir embora mais de uma vez – não sei não – parece impor vagarosamente alguma exata medida do excesso. Um cão olha fixo para uma couve, um cão e uma couve não se movem dentro de um carrinho de compras de supermercado; uma mulher os arrasta pela rua: carrinho de compras, compras, cão e couve. Tudo a mesma ladainha equivocada ou, ao menos, evidente: quando fazer a vida existir tem a ver com outro lugar, outras pessoas, outra paisagem, uma nova janela, um novo endereço, um balneário mais pretensioso. Talvez tenha, mas ninguém pode garantir. Nem ao menos o fato de permanecer, ninguém pode garantir. Permanecer indica descompasso, a mesma exata medida do excesso.
Como a imagem dessa senhora que passa sob a marquise e arrasta o carrinho de compras, é a volta do supermercado. Dentro do carrinho – entre as compras – um cão com o pêlo colado numa couve, o cão não cheira nem toca a couve, não come a couve, não gosta da couve. A couve que se dane. A mulher também. O cão se volta de uma vez, tem os olhos esbugalhados, duas bolas redondas demais que vão saltar de seu rosto. Num instante não se move, noutro é inquieto. Pode ser um inseto ao redor das orelhas, pode não ser nada. Dizem que os cães veem coisas, há quem duvide, disso, de tudo. Não se mover é estranho, se mover é estranho, a diabrura do corpo entalado entre mover e não mover não dá outra: é estranho. Provável antes de chegar escreveu aquele bilhete contando que voltou, ufa, voltou, quase de vez. O que significa num p.s. invisível, esta palavrinha dissoluta, quase, que pode ir embora a qualquer momento, novamente mudança, o que pressupõe as caixas, as coisas, a casa, a memória, a vida, a gente que fica, um buraco sem tamanho, o tanto que vai e o tanto que não vai junto etc.
E cansaço, muito cansaço. O cão late para a couve, lambe a couve, parece fazer as pazes com a couve. O cão morde a couve. Se foi embora muitas vezes não reluta em dizer que também voltou muitas vezes. O que é bem verdade. Claro, isto é uma indicação de rota, ir e voltar seguindo um mapa que não pode ser seguido, um mapa sem marcas ponderadas, pleno e auto-referente, furioso. Agora sabe que ir embora ou voltar é mais simples, mais fácil, sem peso. A couve rola sobre si mesma dentro do aperto do carrinho de compras, a couve rola sobre o cão, a couve empurra o cão para fora. O cão, caído no asfalto quente, ri para a couve. Uma decisão involuntária começa a desfazer o conjunto de acasos e a descaber a viagem: não coleciona mais nada nem ninguém.