Conheça alguns semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013

Conheça alguns semifinalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013 e suas obras

POESIA: Annita Costa Malufe, Luci Collin, Paulo Henriques Britto,

Sérgio Alcides, Sérgio Medeiros.

CONTO/CRÔNICA: Manoel Ricardo de Lima

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“Quando Não Estou Por Perto” (Ed. 7 Letras), de Annita Costa Malufe

este seria o som constante quando

não estou por perto o som embaralhando

as letras este seria o contorno da

mobília a menina não teria mais do que

sete ou oito anos os cabelos enroscados

na escova quando não estou à altura de

dizer fugir este ou outro som ela não

teria mais do que sete ou oito anos

contornando a mobília de meias no chão

seria o som constante o embaralhamento das

letras a miopia grudada nas paredes não estou

à altura de dizer não alcanço a prateleira

em cima da pia os cabelos enroscados

na escova os rituais repetidos entre

os cômodos não estou à vista não estou

por perto quando não estou sinto

que posso tocar o chão fugir desviar das

mobílias me enroscar nas fibras da escova letras

embaralhadas a miopia espraiada na

paisagem quando não estou este seria o

som conhecido a imagem que se

acotovela não sei por que escurece tão cedo

antes mesmo do sono chegar antes mesmo

que as ruas se esvaziem por completo

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 “Trato De Silêncios” (Ed. 7 Letras), de Luci Collin

AFÉLIO

O tempo deixou viver as miniaturas e as árvores assentem

como em todas as infâncias

e assim se identifica a docidão

 

Será mentira uma caneta que desliza

como se não fosse passos em falso:

qualquer movimento um da capo

 

Será mentira um fadário de todo dia colher as contas

e resignar-se depois das seis as margaridas dormem

 

Mentira que a voz perdura e que as pinceladas não borram:

nunca se poderá segurar um carmim

 

Entre todas as pétalas aquela que sobre o tapete

numa escuridão particular suspirará

a bailarina de lápis lazuli

 

Todas as verdades eram tão críveis quanto o fogo

menos uma

e sempre podemos confiar em uma porque:

era mentira

 

No baile serviçais banguelas e saltos inexecráveis

eram falsia

mas do passado não se requisita cabimentos

 

Tudo destramente ali ao lado das luvas e das chaves

tudo menos isto:

 

seus olhos numa escultura

sua gravidade cujo segredo instaurou libélulas

sua pele cheia de pontos perigosos

seu discurso onde incidiram traças

 

Galos e riachos insubjugáveis.

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CENA-MUDA

eu que era único

e indivisível

agora criei tentáculos

ávidos

que não controlo

 

roubam vermelhos vivos

que nem sei para que servem

desejam tanto, usurpam

violam cantos sagrados

espalham cinzas

riem

esbofeteiam

 

 

cinicamente esfarelam

pedaços lícitos de pão

distribuem as fichas

embaralham cartas

trapaceiam noites adentro

alheios ao meu desconforto

trazem ouro profano para casa

abarrotam mesas

 

e eu, mudo e multifacetado,

olho a insana riqueza

que meus próprios braços acumulam

 

e tentando escutar meu vão discurso

não consigo

porque as frenéticas mãos que não controlo

                                          aplaudem ruidosamente

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ONTIVO

Nos encontraremos e eu estarei atarefada

e você estará imerecível

e eu estarei cansada para o cafezinho

e você estará exausto para um cinema

e eu estarei amorfa

e você palimpsesto

e eu estarei rendida às evidências mais ocultas

e você descompassado às vivências absolutas

e eu estarei com pressa

e você naquela hora imprevisível

e eu estarei naquela hora portentosa

e você estará naquele momento incrível

e eu estarei naquela manhã chuvosa

e você estará naquela noite audível

e eu retrocederei até auroras

e você avançará aos ocidentes

e eu compreenderei infinitudes

e você desvestirá os contratempos

e eu deslizo pela superfície e vou embora

e você mergulha mar adentro e refloresce 

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ESPÉCIE

 

vestido e tempo na caixa

só o relógio compreendeu o rigor dos pactos

as plantas do vaso não

o pó sobre os móveis não

as botas num canto não

 

e tudo fora de moda

vincos e adamascados

falar em silêncio

esperar pela conjuntura

regar imutáveis

 

acreditar naquele telefonema

é quase servir conhaque a fantasmas

 

até as escadas mentem

até o gelo no copo

a lâmina de rematado aço

deixa vazar árido murmúrio

 

rostos quedarão desconhecidos

depois de um tempo o entrevisto se firma

 

na lixeira a presença dura dos papéis rasgados

e por dentro um infinito de exclamações

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“Formas Do Nada” (Ed. Companhia Das Letras), de Paulo Henriques Britto

ECCE HOMO 

Não ser quem não se é é coisa trabalhosa.

Exige a disciplina austera e rigorosa

 

de quem, achando pouco simplesmente ser,

requer o luxo adicional de parecer.

 

As essências enganam, e o eu é tão escasso

que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,

 

e nada como a negação da negação

pra efetuar tão delicada operação.

 

E pronto: está completo. O homem mais o androide,

imune a suave mari magno e Schadenfreude,

 

ser e não-ser na mais perfeita sintonia.

Use e abuse. A coisa vem com garantia.

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PEQUENO MANUAL DE RETÓRICA

 

1. Contei a mesma história

no mínimo mil vezes.

A lua semioculta atrás da nuvem:

um olho semicerrado.

 

2. Reclamei, esbravejei,

esperneei, ameacei.

O vento atravessava a noite

como uma faca repartindo uma romã.

 

3. Sem outra opção, recorri à justiça.

A qual, além de cega, escuta mal.

A chuva desabou na avenida deserta,

gargarejando nos bueiros entupidos.

 

4. Agora só confio

nas minhas próprias mãos.

A manhã

nasceu morta.

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“Píer” (Ed. 34), de Sérgio Alcides

Globo

Ida ao coração da treva.

Acha-se o mesmo sanduíche,

aura flácida de shopping,

enjôo de intransitivos:

convir, consumir, sumir.

Domingo da humanidade.

É o grande domo doméstico,

o velho parque temático –

a vida, visita-guiada

sem Virgílio entre tapumes

interativos balindo

sua música ambiente,

seu estímulo eletrônico.

Fique à vontade no horror,

senhor. Clique até salvar

a azia customizada,

senhor. Tecle até a morte

que está inicializando

seu game, senhor. Delete,

reset a senha, formate,

reconfigure o cadastro

do seu desastre, senhor.

De uma montanha-delivery,

nasce um ridículo Mickey

a pilha, e, made in Taiwan,

tomba tocando tambor.

 ***

Pasto 

Esta paisagem é mais ou

menos um locus amoenus.

 

O campo, o rebanho, o céu.

 

Tirando a faia. Sem Títiro.

Com sacrifício do sátiro.

 

Em vez de avena, tevê.

 

Retoques de photoshop

no curral, na cor das águas.

 

O patrão não leu Virgílio,

mas paga o salário da ninfa

 

crente. O lobo amansou. Plena

é a vastidão das planilhas.

 

Onde pasta o gado idiota

que não dá leite, só arrobas.

 

Além da bosta, que exala

perfume de bodyshop.

 *** 

A onça

A barba flui desespetando-se do rosto e da figura.

 

Cada vez mais esbranquiçada, como o peito batido de pedra.

 

Leão descansa junto dele, sabendo que é só um cachorro.

 

Que também já perdeu dente e envelhece com ele nesta margem.

 

Que foi mordido de cobra e agora manca de uma pata.

 

Anônimo, jerônimo, o assentado baixa os olhos para o rio.

 

Então a criatura se dispõe a ser pintura.

 

A luz declina, uns assobios de ferrugem vêm do paredão da rocha.

 

– É o birro.

 

Ao pé de um toco, o escorpião denota a pinça de uma expiação.

 

E a leve turvação da mosca pousa na caveira de um boi muito remoto.

 

Olhando o rio, o homem fala consigo.

 

– Você só acha nela garra e presa.

 

Mas não se mostra a onça que ainda ronda sua lembrança.

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“Totens” (Ed. Iluminuras), de Sérgio Medeiros

A)

A TROMBA ALBINA/A PREGUICA ALBINA

a tempestade rompe o toldo branco

agora torcido e pendente sobre as mesas úmidas

como uma imensa tromba albina

pinga gotas pesadas

* * *

o saco de plástico sobe

vagaroso da grama

ultrapassa a serpentina do muro

faz sombra na calçada

gruda-se como uma preguiça

albina num alto galho seco

respira ali levemente

B)

os morros estão avermelhados

e diante deles uma vela rubra

segue na direção do sol

minuciosamente

a água fervilha

 

A)

a sombra do cavalo trotando na praia

não é esfiapada nem saltitante

encolhe na areia úmida

B)

UM

HAIKU DE KYOSHI (1874-1959)

kyoshi lança um inseto na escuridão – ela é profunda 

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Conto/ Crônica:

“Jogo De Varetas” (Ed. 7 Letras), de Manoel Ricardo De Lima

Fiá-zaia

            É sempre muito estranho voltar a esta casa. Mas não como agora, desta vez, em que as venezianas da janela mais próxima e da parede que dão pro quintal se romperam, estão puídas, muito cupim. Madeira velha, tempo, desmazelo, abandono e mais uma série de descuidos. E aí, vem esses bichinhos, sentam e comem tudo, uma merda. É um aviso de que não se pode deixar de prestar atenção às coisas. Gosto de sentar sem roupa no chão do quarto, é claro demais, tem uma luz violenta socando o olho, é calor e me dou conta que há arbustos e muito vento lá fora. A areia fina da praia e o barulho do mar têm força e rasgam a casa. Uma canção sai do vizinho e junto, desafinada, entra a casa com a areia, o barulho do mar. A voz do vizinho é horrível, a canção é desagradável. 

Meto a mão na bolsa que trouxe a tiracolo, procuro um pacote antigo feito com papel marrom, enrolado com barbante, frouxo: um maço de fotografias coloridas. Tenho medo de perder a mão dentro da bolsa. Espalho as fotografias sobre a cama. Nas fotografias algumas pessoas aparecem rindo, outras pessoas aparecem correndo e todas aparecem com suas sombras enviesadas para o mesmo lado. Menos uma.

Meu corpo é rude, tenho feridas nele, espalhadas. Estão roxas, inflamadas, têm casca. Retiro as cascas e como sempre que tenho fome, faço isso desde muito pequeno. Há mais fotografias dessa mesma pessoa em que a sombra difere e pende sempre para um mesmo lado contrário a todas as outras, torta. Tento separar estas fotografias rapidamente das outras, numa pilha, a meu lado. É esta imagem impressa em preto e branco, alguém com uma sombra torta, guenza, que se repete continuamente para a mesma direção, que me faz arrastar o corpo no chão, torcer o corpo no chão, completamente nu, até o soalho velho e afiado desta casa cortar com as felpas primeiro o meu braço direito, depois minhas costas e a lateral da perna direita que se comprime nas dobras dos joelhos, formando um V para trás. Reparo um fio grosso de vômito que lava o soalho e mistura areia, o barulho do mar, poeira, favor, sangue, pedaços de pulmão e algo do conchiglione recheado com abóbora de antes de ontem à noite.

 

Uma dor nos ombros 

            Foi embora muitas vezes. Isto é muito cansativo. Ir embora uma vez, vá lá, já cansa, mudança, as caixas, coisas, casa, a memória, a vida, a gente que não vai, um buraco sem tamanho, o tanto que vai junto e o tanto que não vai, mas ir embora mais de uma vez – não sei não – parece impor vagarosamente alguma exata medida do excesso. Um cão olha fixo para uma couve, um cão e uma couve não se movem dentro de um carrinho de compras de supermercado; uma mulher os arrasta pela rua: carrinho de compras, compras, cão e couve. Tudo a mesma ladainha equivocada ou, ao menos, evidente: quando fazer a vida existir tem a ver com outro lugar, outras pessoas, outra paisagem, uma nova janela, um novo endereço, um balneário mais pretensioso. Talvez tenha, mas ninguém pode garantir. Nem ao menos o fato de permanecer, ninguém pode garantir. Permanecer indica descompasso, a mesma exata medida do excesso.

Como a imagem dessa senhora que passa sob a marquise  e arrasta o carrinho de compras, é a volta do supermercado. Dentro do carrinho – entre as compras – um cão com o pêlo colado numa couve, o cão não cheira nem toca a couve, não come a couve, não gosta da couve. A couve que se dane. A mulher também. O cão se volta de uma vez, tem os olhos esbugalhados, duas bolas redondas demais que vão saltar de seu rosto. Num instante não se move, noutro é inquieto. Pode ser um inseto ao redor das orelhas, pode não ser nada. Dizem que os cães veem coisas, há quem duvide, disso, de tudo. Não se mover é estranho, se mover é estranho, a diabrura do corpo entalado entre mover e não mover não dá outra: é estranho. Provável antes de chegar escreveu aquele bilhete contando que voltou, ufa, voltou, quase de vez. O que significa num p.s. invisível, esta palavrinha dissoluta, quase, que pode ir embora a qualquer momento, novamente mudança, o que pressupõe as caixas, as coisas, a casa, a memória, a vida, a gente que fica, um buraco sem tamanho, o tanto que vai e o tanto que não vai junto etc.

E cansaço, muito cansaço. O cão late para a couve, lambe a couve, parece fazer as pazes com a couve. O cão morde a couve. Se foi embora muitas vezes não reluta em dizer que também voltou muitas vezes. O que é bem verdade. Claro, isto é uma indicação de rota, ir e voltar seguindo um mapa que não pode ser seguido, um mapa sem marcas ponderadas, pleno e auto-referente, furioso. Agora sabe que ir embora ou voltar é mais simples, mais fácil, sem peso. A couve rola sobre si mesma dentro do aperto do carrinho de compras, a couve rola sobre o cão, a couve empurra o cão para fora. O cão, caído no asfalto quente, ri para a couve. Uma decisão involuntária começa a desfazer o conjunto de acasos e a descaber a viagem: não coleciona mais nada nem ninguém.