O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

O xamã que caçou o totem — Sérgio Medeiros

O xamã que caçou o totem

Sérgio Medeiros* 

1. Ancestrais

 

Então os pássaros também fazem belas surpresas!

 

Desejando voltar à Terra, os ancestrais se reencarnam em animais, pois é assim que visitam os seus descendentes e lhes proporcionam alívio do ennui

 

No seu diário Aurélia, o escritor francês Gérard de Nerval afirma mais ou menos isso[1]

 

Meu propósito é comentar essa citação do século XIX, enriquecendo-a, se possível, com exemplos do século XXI, que agora vê o totemismo ressurgir no Brasil e no mundo

 

2. O pássaro que nos visita

 

Podemos imaginar esta cena: um xamã num quarto com janela baixa, aberta para um canteiro florido, numa manhã de Sol

 

O xamã senta-se a uma mesa para ler música xamanística, os manuscritos virtuais se empilham a sua frente, na tela do computador

 

Afasta às vezes os olhos da tela, distraído ou cansado

 

De repente, ao voltar o rosto para o canteiro ensolarado, vislumbra um pássaro no peitoril da janela, um filhote quase redondo

 

Os dois se encaram, o xamã na penumbra fresca do quarto, o pássaro de perfil numa faixa de luz amarela que banha a madeira pintada de azul

 

O xamã parece paralisado, mas é um amável convite para que o pássaro fique ali calmo, imagem congelada

 

Ao dirigir aparentemente o olhar para o xamã, o pássaro arredonda mais o perfil, e permanece mudo

 

Estão ambos no mesmo lugar, os olhos do xamã e o olho do filhote ainda de perfil se buscam, mas nenhum dos dois parece particularmente tenso ou apreensivo

3. A invasão do quarto

 

O peitoril da janela está vazio

 

(Não se conclua que o pássaro tenha desaparecido para sempre, como uma imagem que o xamã, com um toque impensado, tivesse deletado abruptamente!)

 

O pássaro voa velozmente até o teclado do xamã, desejando aquecer-se talvez na lâmpada acesa, debruçada sobre o computador

 

Redondo como um filhote

 

De perfil, o pássaro fixa o olhinho destemido no xamã, que é apenas um menino de oito ou nove anos

 

O xamã talvez se considere quase tão pequeno quanto o pássaro, embora bem magrinho e não redondo como ele

 

Vê o filhote abrir as asas e, sem motivo aparente, esvoaçar pelo quarto, buscando um poleiro longe da luz

 

4. O pânico do pássaro

 

Sem motivo para pânico, o pássaro começa a girar pelo quarto, voo inútil e desesperado

 

Não percebe a janela ensolarada, por onde poderia escapar, nem tampouco a porta aberta do quarto

 

Perplexo ante essa movimentação louca, e não desejando que o pássaro se fira nas quinas das estantes, o xamã gira a cadeira e levanta-se de pronto

 

Ergue as mãos, decidido a agarrar o filhote no ar, se possível

 

Nesse instante, sem que o xamã tivesse dado mais do que um passo na sua direção, as duas mãos vazias erguidas, cessa o voo turbulento do pássaro, que subia até o teto para em seguida descer até o chão, em círculo

 

O pássaro desapareceu por completo, como deletado

 

O pássaro havia girado pelo quarto até esgotar-se, até evaporar-se

 

5. Ossos esmigalhados

 

Acreditando que o pássaro, exausto, ainda poderia estar no quarto, pousado numa das prateleiras, o xamã prefere manter as pernas completamente imóveis, movendo discretamente a cabeça de um lado para outro, sob o lustre apagado

 

10 da manhã, calcula, ouvindo o som de costura que faz o computador operoso (e antigo) às suas costas

 

Atônito, atordoado, o xamã baixa os olhos para o piso de madeira, preparando-se cautelosamente para dar dois ou três passos pelo quarto

 

Silenciosamente afasta para o lado o pé direito, calçado num sapato novo, reluzente, que o desagrada

 

Depois, quase abruptamente e sem nenhum motivo, puxa um pouquinho o pé para trás, evitando, porém, arrastá-lo no piso

 

É só então que vê surgir, de sob o solado, o corpo achatado do pássaro, a cabeça de perfil esmagada

 

Mas…, pergunta inutilmente, e a  mãe?!

 

Trêmulo, pálido, não sabe o que fazer…

 

6. A fragilidade

 

Sentindo-se extremamente leve, como um galho seco numa corrente veloz, o xamã foge do quarto, levando o corpo esmagado do pássaro embrulhado numa folha de jornal

 

Sentindo-se menos leve, ergue a tampa da lixeira de plástico com a mão esquerda e, sem hesitar, com a direita, deita nela o embrulhinho

 

*este texto integra o livro inédito Quatro lendas ou uma só, do poeta Sérgio Medeiros, que fala do ato de esculpir o totem.

 


[1](…) il devenait clair pour moi que les aïeux prenaient la forme de certains animaux pour nous visiter sur la terre, et qu’ils assistaient ainsi, muets observateurs, aux phases de notre existence.”

 

Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga. Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga.