Documentário “Pelas Lentes do Palco” – Marina Veshagem

Documentário “Pelas Lentes do Palco”: história de um coletivo e seu contexto

Marina Veshagem*

Na Colômbia, a história do teatro sempre esteve vinculada à luta pelos direitos, à reivindicação social. Enquanto no Brasil tivemos um período de 20 anos de Ditadura, o que despertou nas artes um caráter político (em sua forma e conteúdo) e um afloramento posterior de movimentos sociais, a Colômbia vive até hoje uma ditadura constitucional. Isso se evidencia quando observamos dados que mostram que as despesas militares do país correspondem a 6% do PIB, que entre 2002 e 2007 quase 14 mil pessoas foram mortas – vítimas da violência -, ou ainda que, do total de quatro milhões de pessoas desalojadas desde 1985, três milhões o foram no governo de Álvaro Uribe.

Bogotá é uma cidade que possui, já há quase dez anos, uma forte política de segurança e até por isso se assemelha, por consequência disso, a grandes cidades brasileiras, como São Paulo ou Rio de Janeiro. A razão dessa maior aparência de segurança é revelada quando se vê, por exemplo, às 8h da manhã, uma tropa de militares extremamente armados reunidos numa das principais praças da cidade. Ou quando carros são parados na entrada do estacionamento de um grande shopping para serem examinados por cachorros treinados.

Partindo desse cenário, o documentário “Pelas Lentes do Palco” foi realizado em Bogotá como trabalho de conclusão de curso de Jornalismo na UFSC, durante o mês de fevereiro de 2010. O vídeo fala sobre o Colectivo Teatral Luz de Luna, um grupo que se dedica ao teatro comunitário no bairro Atanasio Girardot e cria espetáculos a partir de aspectos da realidade do país e dessa comunidade, como desaparecimento forçado, desalojamento, poluição, etc. Atanasio Girardot está entre um dos cinco bairros mais perigosos de Bogotá, num contexto de pobreza, violência e drogas. O Luz de Luna surgiu em 1987 com uma proposta pedagógica e de inclusão como alternativa para jovens que saqueavam os países vizinhos para sustentar suas famílias, praticavam violência e utilizavam drogas.

A ideia do documentário surgiu ao perceber que o pouco que nós brasileiros conhecemos da Colômbia chega até nós principalmente através da mídia. Essa cobertura midiática, no entanto, enfatiza acontecimentos isolados, descontextualizados, como um sequestro praticado pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), ou sobre a relação do presidente colombiano com o do país vizinho, a Venezuela, por exemplo. Esquece-se que os fatos que se sucedem na Colômbia têm um contexto maior e que, sobretudo, por se tratar de um país latino-americano, o que acontece lá tem relação direta com o Brasil (e que existe inclusive uma fronteira de 1.643 km entre os dois países). Ao contrário, esse tipo de informação que chega até nós reforça o estereótipo clássico que reconhece o senso comum sobre a Colômbia: a relação entre paramilitares, narcotraficantes e guerrilha. Essa relação é muito mais complexa do que a definição de como atuam hoje pode atingir; seus papeis se confundiram e muitas vezes ainda se confundem, mergulhados em interesses e forças políticas internas e externas.

O objetivo de “Pelas Lentes do Palco” não é falar de nada disso diretamente, mas sim, tendo noção dessa complexidade e, trazendo-a como pano de fundo, criar um dispositivo, a partir de um fragmento singular dessa realidade, para representar como vivem as pessoas no país. O dispositivo de relação com a realidade escolhido foi o teatro, e para além do teatro, selecionou-se um grupo que trabalha com teatro comunitário.

Segundo o que diz artigo “La Estética y la Política de la Amistad en el Teatro Comunitario del Grupo Patricios Unidos de pie” de Juliano Borba, o teatro comunitário seria um desenvolvimento cultural de grupos humanos que celebram juntos e têm projetos de valorizar suas idiossincrasias a partir da arte, que lhes possibilita interpretar e comunicar suas ideias. Esse tipo de teatro teria três características em comum: a) a participação de membros da comunidade com objetivo de garantir a autoridade coletiva; b) trabalho artístico gerado coletivamente, a partir de improvisações, sob a direção de um profissional que pode ou não pertencer à comunidade; c) Redefinição dos textos teatrais, os quais são geralmente substituídos por histórias locais e pessoais. Portanto, a ideia geral é praticar o teatro como um processo social, político e cultural e não somente como um processo estético.

A produção artística do Luz de Luna está inserida num contexto colombiano de anos de organização de festivais vinculados a universidades, desde os anos 60, com inspiração das teorias de Marcuse, da Revolução Cultural da China e do movimento de Maio de 68 na França. Já nos anos de 1988 e 1990, aconteceram as primeiras edições do “Festival Iberoamericano de Bogotá”, organizado pelo Teatro Nacional com a direção de Fanny Mikey, hoje o maior festival de teatro internacional da Colômbia.

Um aspecto que contribuiu para o desenvolvimento do teatro na Colômbia foi a abertura de salas e espaços teatrais, por iniciativa dos próprios grupos, que permitiu a realização de temporadas, ensaios estáveis e consolidação de elencos, com consequência da formação de um público cada vez mais constante. O teatrólogo Carlos José Reyes, do Teatro La Candelaria, de Bogotá (um dos mais tradicionais e consolidados grupos colombianos), aponta que um dos grandes obstáculos a serem superados pelo movimento teatral é a comunicação com o público. Em grandes metrópoles como Bogotá, é evidente o temor da população de sair de casa à noite e a insegurança pelo terrorismo leva as pessoas a viverem em bairros fechados como guetos e com vigilância armada.

Por isso, o Ministério da Cultura colombiano tem investido numa política que visa à inclusão. Em documento, o governo afirma que “na Colômbia se tem configurado historicamente uma cultura da exclusão que se expressa culturalmente em todos os campos de atuação dos colombianos e que afeta negativamente a construção do público e contribui para que uma grande quantidade de pessoas não ascenda aos benefícios do desenvolvimento.”

De acordo com proposta do grupo de investigação Ciudadanías Incluentes, da Universidade Nacional da Colômbia, a construção de noções de cidadania que aumentem o potencial de inclusão da sociedade colombiana é de grande importância. O conceito de cidadania chega à Colômbia no começo do século XIX, reestruturando o campo das relações políticas e inaugurando promessas democráticas. Com a Constituição de 1991, já num contexto de neoliberalismo, foram reconhecidas as características pluriétnicas e multiculturais da nação.

Assim, em Bogotá, desde 1988 se realizaram várias iniciativas em sentido da formação de cidadania. Segundo documento da Universidade Nacional, todas elas compartilhavam de elementos pedagógicos. É nesse contexto que se insere o Colectivo Teatral Luz de Luna. O grupo tem uma proposta pedagógica e uma filosofia muito bem delineadas.

A filosofia se baseia principalmente na noção de coletivo. Todos os oito (na época de produção do documentário) integrantes do grupo viviam em coletivo, tinham almoço garantido todos os dias na sede do grupo, além de outros direitos como Previdência Social. O espaço de ensaio do grupo foi adquirido com verba de um prêmio de direitos humanos conquistado por eles e foi reformado pelos próprios atores. Todos os integrantes vivem do teatro, através de projetos que permitem apresentações, normalmente na rua, e realização de oficinas. Tudo o que eles ganham é dividido igualmente entre todos, o que corresponde, em média, a 500 reais por mês para cada um.

Para um dos diretores e o criador do grupo, Ruben Dario Herrera, não se pode constituir um coletivo que perdure se não houver uma formação política sólida. Segundo Hans-Thies Lehmann, “a questão do teatro ser político para mim não é simplesmente tratar de temas e tratar de um conteúdo político, mas é ter essa forma política”. O Colectivo Luz de Luna construiu tal forma ao longo de sua experiência de 20 anos de fazer teatral. Hoje, exercitam sua proposta pedagógica através da Escola Luz de Luna, criada há cinco anos como uma forma de devolver à comunidade o que desenvolveram ao longo do tempo.

O primeiro espetáculo criado coletivamente pelo grupo – chamado “Donde Está”, sobre o desaparecimento, cometido pelo governo, do estudante Leonardo Gomez e sobre a dor das mães pela perda – foi sempre reelaborado desde 1987 até hoje e tem relação com a história pessoal de cada um dos integrantes. Suas biografias como atores e como personagens se confundem em muitos momentos. É isso que explora “Pelas Lentes do Palco”; a partir do entrecruzamento de histórias – explorado pela técnica de entrevista com os atores e com os personagens -, descobrimos como resiste hoje um grupo vive em coletivo, criando uma microssociedade à margem de uma sociedade que experimenta uma ditadura constitucional.

O grupo sofre até hoje algum tipo de perseguição. Segundo eles, o governo de Bogotá (em 2010) era mais democrático, mas eles sentiam vários tipos de censura do governo federal. Muitos dos membros do Luz de Luna eram identificados como ativistas, pela posição política expressa nos espetáculos apresentados sempre na rua ou em ambientes outros, como presídios. Uma das integrantes trocava regularmente o chip de seu celular para não ser identificada e teve o marido preso durante quatro anos sem que se comprovasse o motivo. No final de 2010, após o término da produção do documentário, o marido dela foi assassinado a tiros em frente à sede do grupo.

Hoje, o Luz de Luna conta com apenas cinco integrantes e segue vivendo em coletivo, investindo na Escuela Luz de Luna e apresentando seu trabalho na Colômbia e em outros países também. Em setembro eles estiveram no Brasil para participar de festivais de teatro.

Assista ao documentário de Marina Veshagem: http://vimeo.com/32341611

* Jornalista. Aluna do curso de artes cênicas da UFSC.