“João Sem-Terra”, de Ivan Goll – Tradução de Maria Aparecida Barbosa

“João Sem-Terra”, de Ivan Goll *

Tradução de Maria Aparecida Barbosa*

O herói do poema não é um famoso monarca inglês, mas um contemporâneo, o indivíduo, o sonhador, que foi expulso de todos os países e vaga de continente em continente à procura de Deus e da própria alma, com o profundo desejo de um dia libertar-se de sua sombra simbólica. João Sem-Terra sabe que o homem cá na Terra nada pode possuir, principalmente a si mesmo, já que é cativo de forças desconhecidas. A canção conta da ansiosa viagem de um homem em torno do irrequieto planeta e em torno de seu eu. Esse peregrino percorre não somente os caminhos da crosta terrestre, mas também da Via Láctea. […]

Em suma, João Sem-Terra é o homem que queima os olhos no planeta carregado de eletricidade. Que fere a testa nos espinhos das nuvens e as mãos nos arames farpados de fronteiras passadas e futuras. O peregrino de mil faces que oscila de sonho a sonho teme encontrar-se ou ser encontrado. O peregrino suspeito de olhos estrelados que em vez de passaporte apresenta o coração e por isso nunca tem permissão para entrar. O vagabundo sem nome, sem teto, que come à mesa servida sobre o abismo ou sobre a cratera de um vulcão, o estrangeiro do além, que nada deseja senão a passagem invisível: a do compassivo poeta que sente a dor de todos. 
 

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Eu sou João, o apátrida
Da velha origem
Que anda pela vida
Sem bagagem ou fim.
 
Quantos ancestrais
Um dia me precederam
 
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A canção de João Sem-Terra, o Duplo
 
À deriva
Entre rios rivais,
A margem do desejo, a margem do esquecimento,
Minha vaga divaga
Minha vida flui
À mercê do rio incandescente.
 
Eu sou o único e o ser duplo
O rio do coração em verso e anverso
Altos e baixos cruzando ao revés de sorte e morte
Sou o eu d’agora e já memória
 
Mire o rio: tu vês corpo e alma
Se te umedeces a mão, ela se cobre de nuvens,
A lua floresce em meio a algas alvas
O peixe chispa entre esferas de fogo
 
Eu sou o instante com dupla mensagem
Embora minha margem direita ignore a da esquerda
Meu nome casa oeste e leste
Sou as bodas entre o sim o não
 
Dos peitos de Leda bebi inocência e experiência
Da inocência à experiência trama a fatal aranha
Que tece pontes proibidas, as pontes de sonho
Malditas encantadas, as pontes do meio-dia.
 
O presente passa por santidade e sabedoria
A corrente liga ambos os pólos de morte e vida
E entre a rosada aurora e o crepúsculo púrpura
O rio tenebroso afixa um bloqueio espesso
 
Da mão esquerda de carne à mão pálida da alma
O rio de sangue conta as vagas do tempo
O rei do coração sou há muito a passagem
Jogando em dois lados ganharei a morte
 
Homem às duas margens sou eu, homem
De dois perfis: o santo e o assassino
Meu tronco heróico aporta nuca indolente
Meu fêmeo seio cerra meu viril flanco
 
Mão direita, que fazes de tua mão esquerda?
Ombro, não ludibrias a esquerda coxa?
As mãos direitas não se dão que às direitas
Solitárias como mãos d’árvore são mãos de coração.
 
Como minha mão esquerda alcança a direita?
É preciso atravessar o mundo para tocar a outra margem
Todavia, entre ambas, corre o cego rio
Pleno de imortalidade e de justiça.
 
* tradução da introdução e do segmento
“A canção de João Sem-Terra, o Duplo” de
“Johann Ohneland”, de Ivan Goll

** Tradutora, professora de língua e literatura alemães na UFSC.