Os anões olham para o teto, adaptação para o teatro do conto “Os anões”, de Verônica Stigger – Marina Veshagem

Florianópolis, 28 de agosto de 2011

OS ANÕES OLHAM PARA O TETO
Adaptação do conto “Os Anões”, de Veronica Stigger

Por Marina Bento Veshagem*

(Num lado do palco, dois anões deitados no chão, um casal. A altura dela dá na cintura dele. Ambos ficam cerca de três minutos observando o teto)

Anã: Branco, branco… Peraí, um ponto preto!
Anão: E o que é?
Anã (decepcionada): Ah, é uma mosca.

(Anão puxa um livro de seu lado, sem se levantar, e começar a folhear)

Anão: Mosca, mosca… Tá aqui, achei!
Anã: O que diz?
Anão: Pequeno inseto do filo dos artrópodes, que tem um par de antenas. Excreta por tubos de Malpighi…
Anã: Tubos… Eu também gosto de tubos.
Anão: Tá falando daquele doce cor-de-rosa em formato de tubinho da confeitaria, né?
Anã: Na verdade não. Mas agora que você falou, me deu vontade…

(Blecaute)
(Ilumina-se o outro lado do palco. Cena de uma confeitaria. Um balcão cheio de doces apetitosos, atrás dele, uma balconista, na frente, uma fila de cerca de sete pessoas. Entram os dois anões e passam na frente de todos e a balconista lhes oferece um banquinho para que eles possam subir e enxergar os doces por cima da bancada. Blecaute)

(Ilumina-se o primeiro lado do palco)

Anão: Preste atenção! Olha, as aranhas são parentes das moscas!
Anã: Mas, então, por que elas fazem teias para prender seus parentes?
Anão: Ah, sei lá! Meu pai disse que parentes são chatos e só sabem pedir as coisas.
Anã: Hum… Mas seu pai também constrói teias pra pegá-los?
Anão: Não, ele finge que gosta deles.
Anã: (silêncio) Seu pai é mau.
Anão: Qual o problema em fingir? Nós não fingimos o tempo todo que gostamos das pessoas mais altas?
Anã: Não, nós mostramos que não somos iguais a elas, o que é verdade, logo, não é fingir…
Anão: É verdade, no supermercado nós não fingimos.
Anã: Ah, mas foi ideia sua.
Anão: Não é verdade. Eu não queria carregar 20 produtos nas mãos, sem carrinho ou cesto. Mas é que não alcançava os carrinhos… e os cestos arrastavam no chão. (faz os gestos)
Anã: Mas a ideia de usar o caixa de até dez itens foi sua…
Anão: Os produtos cobriam meu rosto e não podia contar! Aliás, só sei contar nos dedos, e eles estavam ocupados. E existem caixas especiais para idosos… por que não para nós?
Anã: Quem não gostou mesmo foi a mulher grávida que estava atrás de nós na fila, que chamou o gerente, enfurecida.

(Blecaute)
(Luz na cena da confeitaria. Os anões apontam um a um os docinhos e a balconista explica calmamente do que cada um é feito.)

A última da fila (grita): Vai demorar muito?
Marido (ao lado da mulher): Nós não temos o dia todo para ficar esperando.

(Anões nem pestanejam, continuam a apontar para os doces pedindo explicações e até provando alguns)

Senhora (penúltima da fila, gritando): É pra hoje?
Senhor (primeiro da fila, mãos dadas com a neta): Escolham logo, seus imbecis!
Mulher (atrás): É, andem logo, seus molóides!

(O casal nem liga. Ela ainda limpa a meleca açucarada que se deposita nos cantos de sua boca com um guardanapo. Blecaute)
(Luz na outra cena)

Anão: O que mais tem aí em cima?
Anã: Hum… Tem uns buracos.
Anão: Não gosto de buracos…
Anã: Por quê?
Anão: Quando eles tão perto são tão escuros… E eu não os conheço, parece que o medo mora lá dentro.
Anã: E quando estão longe?
Anão: Aí o medo fica pequenino e dá uma curiosidade danada, uma vontade de ir lá!
Anã: Mas neste caso é bom!
Anão: Não é, porque se está longe é quase impossível chegar lá.
Anã: Mas o buraco longe não é o mesmo que o perto?
Anão: É…
Anã: Então, por que você quer o que não pode pegar, se há um igual do seu lado?
Anão: Não sei…

(Blecaute. Confeitaria se ilumina. Anões ainda provam doces. Pessoas da fila cada vez mais furiosas)

Na Confeitaria, por Marcela Trevisan

Senhor (voz mais alta): Andem logo, seus merdas!
Senhora: É, vamos logo!
Última da fila: Vocês deviam respeitar os mais velhos, pelo menos!

(Anã vira e olha a última da fila. A pequena ainda tinha a boca suja de doce. Pisca, passeia a língua pelos lábios e continua a olhar para a mulher por cima do ombro.)

Última da fila: Que foi? (Silêncio) Tá olhando o quê?

(Anã pisca, impávida)
Última da fila: Qual é a tua?
Senhor: Qual é a tua?
(Enquanto isso última da fila anda em direção à anã. Blecaute)
(Acende-se luz na primeira cena)

Anã: Olha, olha! Achei mais uma coisa!
Anão: O quê, o quê???
Anã: Um nada.
Anão: Um o quê?
Anã: Nada.
Anão: Como assim?
Anã: Olhe para aquele canto mais ali. O que você vê?
Anão: … nada…
Anã: Então, o nada tá ali.
Anão: Mas como você sabe que ele tá ali se não tem nada?
Anã: Tá vendo aquela sombra no canto?
Anão: Tô.
Anã: É o olho do nada que piscou pra mim.
Anão: Olha, tá se mexendo…
Anã: O quê?
Anão: A sombra, o olho do nada.
Anã: O que parece agora?
Anão: … um homem!
Anã: O que ele tá fazendo?
Anão: Tá andando.
Anã: Pra onde?
Anão: Pro buraco. Vai vê ele tá curioso para saber o que tem lá também.
Anã: Mas qual buraco, o perto ou o longe?
Anão: O longe, né!? O perto dá medo.
Anã: Tá saindo alguma coisa do buraco.
Anão: O quê?
Anã: Uma aranha, a parente da mosca.
Anão: O que ela tá fazendo?
Anã: Uma teia.
Anão: O quê?
Anã: É, uma teia.
Anão: E fez o que com ela?
Anã: … enroscou no homem e puxou pro buraco..

(Blecaute. Luz na outra cena)

Última da fila: Sua idiota! (Puxa o braço dela com força. Com a puxada, ela cai de cabeça no chão)

(Marido da última da fila chega e empurra o anão, que fazia menção de socorrer a esposa. Homenzinho também cai. Ele se levanta e tenta revidar, mas o marido acerta-lhe um joelhaço no meio do rosto. O narizinho começa a sangrar. O senhor vem correndo e dá outro joelhaço no rosto do anão, enquanto a neta chuta-lhe a canela. A senhora passa a dar bengaladas nas cabeças e nas costas do casalzinho. Aos poucos todos se aproximam. Uns chutam a barriga, outros a perna, outros ainda batem a cabeça do casal no chão. A cena segue até que uma fenda se abre na parte de trás da cabeça do homenzinho. Uma gosma espessa verde-amarronzada sai de dentro da cabeça do anão e mela o chão. Senhora continua batendo com a bengala no rosto ensanguentado da anã. Todos seguem batendo, chutando e cuspindo no casal)

Balconista: Gente, dá pra parar com isso que a dona Sílvia vem chegando, estou vendo ela dobrar a esquina.

(Aos poucos eles vão parando de bater no casal, que agora é uma massa quase informe, vermelha. Cansados e arfando, os clientes vão saindo da confeitaria. Alguns batem pela última vez na massa de sangue e carne e saem)

Senhor (puxando a neta, que ainda chutava o casal): Vamos, querida, deixa isso aí e vamos embora.

(Todos já tinham saído. Enquanto a luz vai baixando, a balconista, com um grande rodo, empurra para um canto toda aquela sujeira. Blecaute)

* Jornalista. Aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC.