Os Anões, adaptação para o teatro do conto “Os anões”, de Verônica Stigger – Jacqueline Kremer
Florianópolis, 28 de agosto de 2011
OS ANÕES *
Conto de Veronica Stigger
Adaptação: Jacqueline Kremer**
Ator vestido de negro (anão)
Atriz vestida de negro (anã)
Anão – (boneco)
Anã – (boneco)
Narradora/personagem (penúltima da fila)
Balconista da confeitaria
Marido (da narradora)
Senhora de bengala
Seu Aristides
Neta (do Seu Aristides)
Mulher de 30 anos
(Confeitaria, balcão com doces variados ao lado esquerdo do palco, levemente na diagonal. O casal de anões – dois bonecos levados por dois atores vestidos de negro – ganha vida, “furam a fila”que é composta de seis pessoas – todos de rostos pintados de branco, com figurino caracterizando detalhes de gênero, idade, etc. Chegam a frente do balcão. Dão saltinhos para poder ver os doces.)
Narradora/personagem (luz no palco diminui, congela-se a cena. No telão, narradora/personagem em close com rosto pintado de branco e ênfase na voz) – Os dois até que faziam um conjunto bonitinho. Não eram deformados, nem tinham aquele aspecto doentio característico de alguns anões. Pareciam tão somente ter sido projetados em escala reduzida. Poderíamos sentir compaixão ou mesmo simpatia por eles, se não fossem tão evidentes suas graves falhas de caráter. Não era a primeira vez que os víamos, e pior, não era a primeira vez que os víamos tentando furar a fila. O casal se aproveitava da baixa estatura para, semvergonhamente, das outras pessoas que esperavam por atendimento. Foi assim, outro dia, na farmácia. Os dois entraram no estabelecimento e foram direto para a boca do balcão, ignorando todos os que aguardavam pacientemente. Só não brigamos com eles porque não foi preciso. O balconista, desatento como sempre, não os percebeu e, benfeito! Nos atendeu primeiro.
(Luz no palco, geral)
Balconista (para os anões) – Olá! Vocês não querem um banquinho para subir e enxergar melhor os doces por cima da bancada?
Anã – Ah! Mas essa ideia é muito boa.
Anão – Quanta gentileza, sim nós aceitamos a sua sugestão.
(Os dois atores vestidos de negro, colocam os anões nos banquinhos e saem, mas continuam dando suas vozes ao casal. Os bonecos ficarão imóveis no palco.)
Anã – Veja este docinho!
Anão – Qual?
Anã – Este! Acho que quero este, me parece tão apetitoso!
Anão – De que é este docinho?
Balconista – É trufa de doce de leite.
Anão – Me parece meio doce demais…
Anã – E este aqui, do que é? É tão bonito…
Balconista – Este é docinho crocante de pera.
Anã – Hum! Parece muito apetitoso, você não teria uma provinha?
Balconista – Posso ver…
Anão – Então também veja uma provinha deste aqui, me parece muito bom.
Balconista (pega provinhas dos docinhos) – Pois não…
Anã – Hum! Hãmhãm, que delicia e tem gosto de pera mesmo! Hãmhãm…
Anão – Hum! Essa trufa, hãmhãm, de canela com pistache está deliciosa…mas não sei se é isso que eu quero.
Narradora/personagem – Vai demorar muito?
Marido – Nós não temos o dia todo para ficar esperando!
Anão – E este aqui…
Balconista – Qual?
Anão – Este.
Balconista – Ah! Sim, estas são trufas ao capuccino.
Anã – Vou querer uma provinha, adoro café.
Senhora (berra) – É pra hoje?
Seu Aristides – Escolham logo seus imbecis!
Mulher de 30 – É andem logo seus moloides!
Anã – Huuum! Que delicia.
Anão – Acho que vou querer este aqui. Como se chama?
Balconista – São casadinhos,senhor. Têm muita saída….
Anão – Aceito uma provinha.
Anã ( com ternura para o anão) – Ah! Casadinhos…
Anão (colocando na boca da anã) – Experimente querida, é muito bom.
Anã – Oh! Que gentil… hãmhãm… que gostoso!
Anão – Este, este aqui é de quê?
Balconista – De abacaxi e coco, senhor.
Anão – Ahãm! Não gosto de coco. Amm! Deixe-me pensar,e este?
Balconista – Docinho de uva, vendemos muitos deles.
Anão – Ah! Deve ser bom,né?
Anã – Ah! Sim, deve. Você pode nos ver uma provinha deste?
(Foco de luz na fila)
Senhora (fala com a narradora/personagem que está atrás dela) – Outro dia cruzei com este casalzinho no supermercado. Eles estavam com mais de vinte produtos nas mãos, e nas mãos mesmo, porque eles não usavam carrinho ou cesto. Acho que eles não alcançam nos carrinhos e os cestos arrastariam no chão, suponho… Queriam passar pelo caixa para até dez itens! A moça do caixa ficou meio sem jeito de dizer para os dois que eles não podiam estar ali e começou a registrar os produtos, mas uma mulher grávida que estava na fila se enfureceu e chamou o gerente. E eles ficaram bem assim, sem falar nada. Eles são bem estranhos,né?
Seu Aristides (com voz elevada) – Andem logo, seus merdas!
Senhora – É, vamos logo!
Narradora/personagem – Vocês deviam respeitar os mais velhos, pelo menos!
(Diminui a luz do palco ao som Charles Bernstein – White Lightning.)
Anã – (No telão,close na atriz/anã, vira-se lentamente para olhar a narradora/personagem, no sentido anti-horário, com a boca pequenina suja de doce, pisca com os dois olhos demoradamente, passa a língua pelos lábios e continua a olhar.)
(Foco de luz na narradora/personagem, no palco.)
Narradora/personagem (para a anã/boneco no balcão) – Que foi? Tá olhando o quê?
(Luz do palco diminui. Telão ao som de Charles Bernstein – White Lightning)
Anã – (Som pisca lentamente e fica a olhar enigmaticamente.)
(Luz na narradora/personagem)
Narradora/personagem – É, qual é a tua? (Vai até a direção da anã/boneco.) Qual é a tua?
Seu Aristides – É, qual é a tua?
Narradora/persoangem (aproxima-se da anã, puxa com força seu braço e ao falar a derruba) – Sua idiota!
Marido – (dá um empurrão derrubando o anão.)
(A luz diminui,ao som de Nick Perito – The Green Leaves Of Summer, dissolve-se a fila. Foco de luz no emaranhado de gente. Os golpes são intensos,movimentos de pancadaria abusiva,mas compassadamente,cada um revidando a sua maneira nos dois bonecos. No telão, rosto em close da narradora/personagem,que conta sem muitas expressões faciais, mas com expressões na voz.)
Narradora/personagem – Quando derrubei a anã, meu marido deu um empurrão no homenzinho, que parecia querer socorrer a esposa. Ele fez menção de revidar e meu marido acertou-lhe um joelhaço no meio do rosto. O narizinho começou a sangrar. Seu Aristides veio correndo e deu outro joelhaço no rosto daquele tipinho, enquanto a neta de seu Aristides chutava-lhe a canela. A senhora que estava na fila passou a dar bengaladas nas cabeças e nas costas do casalzinho. Eu chutava, com muita vontade, a barriga da mulherzinha caída. Minha perna doía, mas eu continuava a chutar, sempre no mesmo ponto. A mulher com cerca de trinta anos se ajoelhou ao lado do casalzinho, pegou o homenzinho pelo pescoço e começou a bater com a cabeça dele no chão, várias vezes, até abrir uma fenda na parte de trás. Uma gosma espessa verde-amarronzada saía de dentro de sua cabeça e melava o chão, várias vezes, até abrir uma fenda na parte de trás. Uma gosma espessa saía de dentro de sua cabeça e melava o chão. Nesse meio- tempo, a senhora que estava na fila se concentrou apenas na mulherzinha: ela levantava a bengala e a baixava com força naquele rosto ensanguentado. Meu marido pulava em cima das pernas do homenzinho, enquanto seu Aristides chutava seu tronco. E a neta de seu Aristides, imitando meu marido, pulava sobre a barriga da mulherzinha.
(Som vai diminuído. Luz na Balconista)
Balconista (falando alto) – Gente, dá para parar com isso que a dona Sílvia vem chegando, estou vendo ela dobrar a esquina.
(Baixa-se novamente a luz e foco volta para o círculo da agressão.)
Narradora/personagem (Ao som de Chopin-Nocturno – op 9, nº 2, em mi bemol maior, para piano –
no telão, com voz de cansaço, continua narrando. Luz nos atores no palco que reproduzem suas reações, com gestos lentos até a exaustão.) – Eu já estava cansada mesmo e parei de chutar o que já se tornara uma massa quase informe, vermelha. Arfando fui lentamente me dirigindo a saída. Ao me ver cambaleante, meu marido parou de pular e veio atrás de mim. A mulher de cerca de trinta anos, com a respiração também alterada pelo esforço, se sentou encostada à parede e pôs na testa as duas mãos com as quais batera com a cabeça só sujeito no chão. Ele estava transformado numa espécie de pasta de carne e sangue, com pequenos fragmentos de ossos desarranjando a uniformidade da mistura. A aparência de sua mulherzinha não era muito diversa. A senhora ainda deu uma última bengalada no que tinha sido um rosto, ajeitou o vestido, se apoiou na bengala e saiu. Seu Aristides, exausto de tanto chutar o homenzinho, parou e fez sua neta também parar.
(Música vai diminuindo…)
Seu Aristides (pega na mão de sua neta) – Vamos, querida, deixa isso aí e vamos embora.
(Música aumenta.)
(Foco de luz vermelha sobre a Balconista, com um rodo nas mãos, e o que sobrou dos bonecos completamente despedaçados. Balconista empurra a sujeira para o centro do palco.)
Narradora/personagem (no telão em close) – Do outro lado da calçada, olhei para trás para cumprimentar dona Sílvia, que entrava na confeitaria, e vi a balconista, com um grande rodo, empurrando para um canto toda aquela sujeira.
(Ouve-se o final de Chopin-Nocturno – op 9, nº 2, em mi bemol maior, para piano – , o telão fica vermelho, luz vermelha no palco e a balconista volta para trás do balcão de doces.)
Fim
* OS ANÕES, in. STIGGER, Verônica. Os Anões. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
**Professora de espanhol. Aluna do Curso de Artes Cênicas da UFSC