As Bichonas, adaptação do conto “Os anões”, de Verônica Stigger – Henrique Furtado
Florianópolis, 28 de agosto de 2011
AS BICHONAS
Adaptação do conto “Os anões”, de Verônica Stigger
Por Henrique Zielinski Furtado*
As Bichonas. Ele tinha um andar um tanto quanto afeminado, mas o outro, a outra, melhor dizendo, sim era uma mulher no corpo de homem. Eram tão afeminados que atraíam a visão de alguns homens destraídos que desaviavam o olhar ao perceber a gafe, claro. Ela tinha um rebolado acintoso ao ponto de um desequilíbrio iminente sempre a perseguir.
Não era a primeira vez que os víamos e – pior – não era a primeira vez que os víamos fazendo escândalo no balcão da farmácia, chegavam falando alto e se metendo na frente de todo mundo, as balconistas logo os atendiam para que não assustassem os clientes. O casal se aproveitava dessa fragilidade das funcionárias e chegava se direcinando às atendentes. Noutro dia, na lanchonete, eles fizeram a mesma coisa, ainda bem que só compraram chicletes e foram embora, o bairro todo já tá por aqui com eles.
Contudo, voltando a falar do dia da famácia, uma das balconistas não só os viu como – fragilizada pelo possível escândalo – os deu atenção instantânea, chegou a parar de atender quem estava atendendo para lhes prestar atendimento. E eles aproveitaram-se da situação e começaram a pedir pra ver os infindáveis cremes hidratantes, esfoliantes e o que mais que a indústria estética pode oferecer. Não demorou muito até começarem as reclamações. Vai demorar muito?, gritei do final da fila. Nós não temos o dia todo para ficar esperando, meu marido acrescentou. E eles começaram a falar cada vez mais alto propositalmente para não escutarem mais ninguém. Não deu um minuto e a senhora que estava na nossa frente berrou também: é pra hoje? Seu Aristides, que levava a neta pequena pela mão e se achava logo depois dos escandalosos, ajuntou: escolham logo, seus imbecis! Mas o casal aumentou o volume novamente. Ele se lambuzava com os cremes e ela cafungava por onde descorria o produto.
A senhora à nossa frente comentou comigo que cruzara com o casalzinho outro dia no supermercado. Eles estavam com mais de vinte produtos nas mãos, e não mãos mesmo, me disse ela, porque queriam disfarçar a quantia, eles queriam passar pelo caixa de dez itens! A moça do caixa ficou sem jeito e sedeu aos pilantras! Mas uma mulher grávida chamou o gerente e o gerente preferiu evitar o escândalo, ficou só olhando os dois.
Impacientemente, seu Aristides elevou a voz: andem logo, seus porcarias! E eu emendei: vocês deviam respeitar os mais velhos, pelo menos! Foi aí que ela, o mais afeminado, virou-se e olhou por cima dos ombros. A boca com gloss cerrou imediatamente, quedou-se fitando meus olhos sem nada dizer, piscou, continuou sem falar uma palavra se quer, como se não tivesse percebido que estávamos todos ali, esperando.
Que foi?, perguntei a ela. Tá olhando o quê? Comecei a andar na sua direção e continuei: qual é a sua? Nisso, a bichona virou-se e encheu a boca para falar, mas antes que pudesse responder, empurrei-a tão forte que caiu derrubando todos os malditos frascos que estavam no balcão.
Vagabunda! A outra bicha teve a ousadia de me xingar, meu marido, no entanto, severamente o puniu com um tapaço na cabeça que o fez bater com a cabeça no balcão abrindo um corte na testa, logo depois entontou e caiu no chão.
Qual é a de vocês?, perguntou meu marido. A bicha, que estava com a cabeça machucada, o apontou o dedo com menção de revidar. Nessa hora, já estava com parte do rosto coberto de sangue. Ficou de quatro para tentar levantar e começaram a pingar gostas graúdas de sangue no piso branco da farmácia.
No que levantou a cabeça para erguer-se de pé, meu marido acertou, sem piedade, um joelhaço no meio da cara. O nariz explodiu em sangue e a bichona caiu sentada enconstada no balcão. Seu Aristides não perdeu tempo, o velho veio correndo e chutou a que estava deitada, sua neta, por sua vez, chutava-lhe a genitália. A senhora que estava na fila também passou a golpear a caída com bengaladas.
E eu não pude ficar parada, comecei a golpear com covardia a que estava deitada. Bem que ela tentou se proteger, mas, mesmo com as pernas cansadas, chutei-a mais do que imaginei que conseguiria, fi-lo com muita satisfação. A mulher – com cerca de trinta anos – pegou pelo cabelo o que estava sentado encostado no balcão e passou a bater com sua cabeça no balcão, várias vezes, até que, além do corte frontal, passou a ter uma fenda na nuca. Além do sangue que escorria, uma gosma espessa verde-amarronzada saía de dentro da sua cabeça misturando-se ao sangue e melando o chão.
Nesse meio-tempo, a senhora que estava na fila se concentrou apenas na bicha caída, levantava e abaixava a bengala com toda a força que resta à velha ensanguentando o rosto da bicha. Meu marido passou a golpear a genitália do sentado. Seu Aristides chutava as costelas do deitado, sua neta passou a pular nas partes íntimas do mesmo que seu avô golpeava.
A atendente permaneceu muda por todo esse tempo, acho que por consideração a nós, que éramos clientes assíduos da farmácia – era a primeira farmácia do bairro e todos ali eram moradores de longa data – interveio. Gente, disse ela, dá para parar com isso que a dona Sílvia vem chegando, estou vendo ela dobrar a esquina. Eu já estava cansada mesmo e parei com a agressão. Foi aí que percebi que ele se transformou… se transformou numa massa quase informe, vermelha. Arfando, fui lentamente me dirigindo à saída, mesmo com todo aquele sangue, havia cheiro de cosmético, pois todos os vidros estavam estilhaçados ao chão.
A mulher com cerca de 30 anos, também com a respiração alterada pelo esforço, sentou-se encostada à parede e pôs na testa duas mãos com as quais batera com a cabeça do tipinho contra o balcão. Ele estava feito uma pasta de carne e sangue, com pequenos fragmentos de ossos desarranjado a uniformidade da mistura.
A aparência da bichona não era muito diversa. A velha ainda deu a última bengalada no que restara do rosto, ajeitou o vestido, apoiou-se na bengala e saiu. Seu aristides, exausto de tanto chutar as costelas já fraturadas, parou e tirou sua neta de cima do moribundo. Vamos, querida, deixa isso aí e vamos embora, disse ele para a neta, enquanto a pegava pela mão. Já do outro lado da calçada, olhei para trás para cumprimentar dona Sílvia, que entrava na farmácia e vi a balconista, com um grande rodo, empurrando para um canto toda aquel sujeira.
* Aluno do Curso de Artes Cênicas da UFSC